Mário Soares (80 anos)
Quem é Mário Soares? O Soares, o Mário, que brincou num jardim com vista para uma casa de malucos. Que apresentou Cesariny a Mitterrand. Que emprestou 20 paus a Luiz Pacheco quando saía, atordoado, de certa morada na António Maria Cardoso. Que acenava a Maria de Jesus da sua cela, no Aljube. O Mário que foi aluno do Cunhal. O Mário a quem o Agostinho da Silva chamava Danton. Que descobre num jornal amarrotado que a América aceitara o fascismo português num projecto atlântico defensor da liberdade. Que gosta de pintura. Que podia ter sido um escritor. Que se encontrou com a história quando as agulhas estavam afinadas. Depois do degredo em S. Tomé, do exílio em Paris, regressou a uma estação apinhada, era gente estarrecida, a clamar pelos seus heróis. Antes disso, reconstituiu os passos do general sem medo, defendeu centenas de perseguidos políticos, conspirou tanto quanto era possível. O Mário, sempiterno da política cá de casa, (leia-se: pátria), primeiro-ministro e presidente, a atiçar adversários, a medir a inteligência do Cunhal, a competência do Cavaco. A seduzir o povo. O descomplexado, que afronta uma multidão que lhe é hostil, que sabe o suficiente da natureza humana para nunca ter sido traído. Diz que de si vai ficar uma nota de rodapé nos compêndios de História. Tem uma espantosa relação jubilatória com a vida. Esta semana, o rei fez 80 anos.
Em todos os livros que folheei, artigos de opinião que li, preparando-me para esta entrevista, quase toda a gente diz em que há momentos em que parece fechado em si, inatingível. Não se consegue perceber muito bem em que é que está a pensar.
Se calhar são momentos brancos que tenho no meu espírito. Não dou por isso. Lembro-me do Conde de Abranhos, que não falava, só dizia duas palavras, e como tinha uma testa grande, toda a gente estava convencida que ele dizia coisas maravilhosas.
Numa dessas descrições dizia-se que estava na varanda do palácio, a olhar o rio, e que parecia distante.
Gosto de olhar o mar e o Tejo. A coisa que mais recordo do Palácio de Belém, onde nunca passei uma noite, e estive lá dez anos a trabalhar, é aquela varanda voltada para o Tejo. Tem cores fabulosas, então no Inverno... Quando tinha que reflectir sobre qualquer problema, em vez de estar sentado, ia passear para a varanda.
Mas ia mesmo reflectir?
Ia reflectir, naturalmente, sobre as coisas. E ia vendo, ao mesmo tempo, os barcos passar. Não direi contar os navios...
Pensa melhor sozinho ou conversando com outros?
Sabe que o exercício da Presidência da República é um exercício solitário (e também o de Primeiro Ministro). Realmente a responsabilidade é dele. Nunca me lembrou de dizer: «Houve um conselheiro que me disse isto ou aquilo». Tinha relativamente poucos, mas aqueles que tinha e com quem falava relativamente pouco, era para trocar opiniões e testar as minhas opiniões, mais do que qualquer outra coisa, porque a responsabilidade era minha.
Também é certo que nunca foi um homem de seguir os conselhos dos outros.
Essa é boa! Não, não.
Acho que pensa sempre pela sua cabeça e que faz o que lhe dá na real gana.
Penso pela minha cabeça, é verdade, mas vou-lhe já dar dois exemplos. O meu pai, que era um pedagogo, um homem político, um homem da cultura, influenciou-me muitíssimo e queria que eu fosse para Direito, dizia: Tu tens duas habilidades». Não sei fazer nada com as mãos. Nunca tive uma máquina fotográfica, quando era pequeno deram-me uma, mas pôr o rolo, tirar o rolo, nunca fui capaz de fazer. Mesmo a máquina de escrever só utilizei quando estava no exílio. Tinha uma máquina Baby e não tinha secretárias. Habituei-me a escrever à máquina nessa altura, com dois dedos.
O «Portugal Amordaçado», escreveu à máquina ou à mão?
À mão. Alguns capítulos reproduzi-os à máquina, mas o original foi sempre à mão, com canetas das que se deitam fora a seguir. Mesmo quando era Presidente, estava a assinar e as televisões estavam em cima, assinava com estas canetas. Depois havia tipos que me mandavam canetas, «Vi que o senhor tem uma muito ordinária..». Mas realmente nunca utilizei essas canetas.
Não tinha habilidade para as coisas manuais.
Não tinha habilidade nenhuma para as coisas manuais. E o meu pai disse-me: «Tu tens alguma capacidade de falar e escreves com facilidade, portanto deves ir para Direito. Também podias ser escritor».
E porque não foi?
Tive uma facilidade demasiada para poder ser bom escritor. Os escritores bons não são os que têm facilidade de escrever, são os que escrevem bem. Eu escrevo quase sem emendas, aquilo sai tudo direitinho, e por isso não sou um torturado da forma. Os bons escritores têm que ter o ofício da escrita, que é uma coisa que se adquire. Entre os meus defeitos, tenho a impaciência. Sou impaciente, às vezes colérico, nas coisas pequenas, nas grandes não. Estava destinado a ir para Direito, mas no sétimo ano três professores meus influenciaram-me bastante. Um deles foi o Agostinho da Silva. O nosso amigo não podia dar lições, tinha sido expulso do ensino, dava explicações, e o meu pai pôs-me lá. O Agostinho da Silva perguntou ao meu pai: «De quê é que quer que eu dê explicações ao seu filho?», «Cultura geral, o rapaz está muito pouco interessado pelas coisas, só pensa em jogar futebol, dizer asneiras, é insubordinado». O tipo passeava comigo e falava-me de tudo, era um encanto. Foi ele que me despertou para a cultura, para as exposições, ia comigo ao cinema. O outro professor, saiu-me no sexto e sétimo ano, era o Álvaro Salema, um filósofo comunista pouco ortodoxo que tinha estado preso na Ilha Terceira. O terceiro foi o Álvaro Cunhal, imagine.
Nunca lhe teve medo?
Nenhum. Fascínio.
Dizem que tinha um olhar gélido.
Ele tinha um olhar penetrante. Com a idade, ficou com esse olhar gélido. Eu tinha 15 anos e ele tinha 26, ou 16 e 27. Era jovem, muito magro, aquela fotografia que vem no livro do Pacheco Pereira, ele era assim. Tinha fascínio pela inteligência do Cunhal, porque era um visionário, estava sempre a falar da aurora da revolução que aí vinha, do comunismo como uma coisa mítica. Sucede que essa influência era um pouco compensada por um espírito crítico muito agudo do Salema e do Agostinho da Silva.
Onde é que vai buscar, nas suas influências, a ligação à terra, às pessoas, que é uma coisa que muito o caracteriza?
Isso é a minha mãe. A minha mãe era filha de camponeses, o meu pai também, mas a minha mãe era terra-a-terra. O meu pai montou um colégio, mas quem administrava e dirigia aquilo tudo era a minha mãe. Esse sentido prático de camponês, herdei dela. A parte visionária e sonhadora, talvez do pai. O meu pai era repúblicano, nunca foi sequer socialista, e católico progressista avant la lettre – nunca me obrigou a ir à missa. Esteve muito tempo fora, exilado e preso, e na clandestinidade em Portugal, durante o primeiro período da ditadura. Veio para casa em 1935 quando fundou o colégio. Depois ficou doente, perdeu uma perna. Só começámos a conviver com os meus 13, 14 anos. Antes, o meu pai aparecia como uma figura mítica, nos sítios mais estranhos, para eu o poder ver e para ele me poder ver a mim.
Esses encontros fugazes são inesquecíveis para si?
Então não são? Nunca mais esqueço na vida de a minha mãe ter começado a chorar, ela que nunca chorava, a dizer «Temos que ir a Peniche, que o teu pai vai hoje partir para os Açores». Fomos de carro, chegámos lá e vi o barco. A minha mãe desesperada, o meu irmão e eu, tinha menos de dez anos, vimos o meu pai a ir para os Açores, não me posso esquecer. Depois meteram-me num café em Peniche e uma coisa que fixei: a minha mãe ia a beber o café e tinha uma mosca dentro!
Esta pequena história já conta tanto daquilo que é! Descobre na graça, agarrando-se à graça, uma exaltação da vida e da alegria. Para não soçobrar.
Nunca tive problemas de soçobro. Isso é que não tive. Nunca tive depressões. Eu sou simples: não sou vaidoso, não estou sempre a posar para alguém, digo aquilo que penso, não quero fazer passar gato por lebre. A minha mulher costuma dizer: «Tu és mais do simples, és simplista!, não vês a complexidade das coisas». Talvez tenha um bocado de razão. O meu espírito é muito racional, não sou dado a desvios místicos, nunca fui tocado pela religião nem pela fé.
Nem pela xaropada do amor...
«Xaropada do amor», nunca disse isso.
Pois não. Mas disse que o «Werther» do Goethe era uma xaropada, que não conseguia conceber que alguém se matasse por amor.
Isso é difícil para mim, não consigo conceber. Mas acredito no amor.
Mas morrer pela coragem, é outra coisa.
Não é pela coragem, é o sentido do dever. O que faz avançar um tipo contra uma baioneta é o sentido do dever. O que pôs aquele chinês perante um carro foi o sentido de que ali está o povo, e que ele o representava, tem que morrer ali se for necessário. É o que é extraordinário naquele retrato, Tiananmen. Estávamos a falar de quê?
O início era ser permeável aos outros, ser influenciável...
O nosso amigo Agostinho da Silva chamava-me «Danton», um dos heróis da Revolução Francesa, o tipo da Liberdade, que está muito bem descrito n’«Os Miseráveis» do Victor Hugo. Os meus professores disseram: «Você não pode ir, vai agora servir a burguesia?, você está no caminho do Comunismo». Os professores de Direito são todos uma cáfila de reaccionários, isso é verdade. Fui para Letras. Estive praticamente nove anos na Faculdade de Letras, andei para lá a conspirar pelos claustros, fui preso sucessivas vezes, quase sempre na época dos exames. Portanto, ia perdendo anos, ou por outra, não passava.
Mas o seu pai não se preocupava com isso.
Não. E por outro lado, o meu pai tinha uma fraqueza: achava que politicamente tinha saído a ele, e, por isso, nunca me disse «Estás a perder anos». Eu saía da cadeia, entrava na cadeia. Comecei a ser politicamente conhecido. Os amigos do meu pai, tudo gente do reviralho, republicanos, alguns socialistas, alguns monárquicos, gostavam imenso de mim porque achavam que eu era um tipo que levava o facho. E não se importavam nada que fosse comunista. O meu pai chamava aos comunistas «os teus camaradinhas». Nunca fui um comunista propriamente dito, no sentido de acreditar no comunismo como uma religião...
Não dava vivas ao «Marxismo-Leninismo»?
Eu considerava-me marxista-leninista. Depois deixei de me considerar leninista e passei a considerar-me só marxista.
Isso foi em que altura?
Nos anos 48, 49, quando estava preso e a minha mãe, com o seu espírito prático, foi lá levar um tacho de metal com arroz, um arroz de bacalhau de que eu gostava, e disse aos polícias: «Embrulho isto num jornal para guardar o calor, não tirem o jornal, ou vejam agora que não está lá nada dentro». Era o jornal do dia, e então li o Diário de Notícias do dia em que, calcule você, o Caeiro da Mata assinou em nome de Portugal o Pacto do Atlântico. E eu disse: «Estou aqui a lutar pela liberdade, internado um mês na Penitenciária e os tipos da liberdade, da América, vão meter um regime fascista num pacto que é da defesa da liberdade? Estes tipos estão doidos, é uma traição completa!». Fiquei desiludido com aquilo mas, no dia seguinte de manhã, levantei-me logo bem disposto! Isso é que é a minha sorte, mas é genético, não sei a quem é que o devo.
Quando é que passou a ser só marxista?
Deixo de ser marxista-leninista na altura do Norton de Matos, em 49. O que eu tenho é uma formação marxista, porque li os textos do Marx. Não li «O Capital», nunca, não se pode ler, não aguentei, ao fim de três páginas estava na mesma. Mas li o «Anti-Dühring», uma coisa horrível de ler, pior que a xaropada do Goethe. E fiz as leituras clássicas, li a cartilha, o Staline, o Lenine. Entrei na prisão e o Tito era um herói fantástico, quando saio da prisão, o Partido Comunista manda dizer que o Tito era um traidor e estava ao serviço da CIA. Não aceitei!, «Bem, com estes tipos não posso entender-me, não faz muito sentido». Então, comecei a ler o Trotski. Nunca fui trotskista, embora o Trotski me tivesse impressionado muito porque era um grande escritor, as memórias são um livro extraordinário.
Isso lê-se como um romance, como o Freud.
Pois lê, e eu sempre fui sensível à escrita. A partir daí fiquei um pouco solto, os meus amigos comunistas deixaram de falar comigo. Recebi cartas de amigos a dizer «Nós gostávamos de ti, tu eras assim, eras assado, mas agora que cortaste com o Partido Comunista, és, objectivamente, um traidor». É verdade que saí e que eles me expulsaram, as dois coisas são verdadeiras.
Essas coisas doíam-lhe? Ou acordava bem disposto no dia seguinte, à mesma?
Não. Fizeram operações... Tentaram inclusivamente influenciar a minha mulher para se separar de mim. A minha mulher tinha muito prestígio nessa zona porque recitava poesia, era muito bem recebida nos círculos operários, era uma pessoa que o Partido Comunista utilizava muito para esse tipo de animação. Quando comecei a ser considerado traidor, tentar influenciá-la, fizeram diligências muito concretas, conversas muito sérias para dizer que ela não podia estar casada comigo.
Já era casada no papel ou era só namorada?
Já era casada. Eu casei no Aljube porque a minha mulher ficou grávida. A minha mulher engravidou na altura em que eu estava na campanha do Norton de Matos. Depois o meu filho estava para nascer e resolvi casar com a minha mulher.
Não era uma coisa mal vista?
Não era bem vista. Mas em minha casa não houve problema nenhum. O meu pai era generoso e aberto e eu disse: «Vem para cá a minha mulher, vou casar um dia destes», «Mas como é que vem para cá?», «Então, pai, vem para o meu quarto». Assim foi.
E as consciências católicas?
A minha mulher não era católica nessa altura. Ela converteu-se com o filho [acidente de aviação de João Soares, no qual este se salvou miraculosamente], muito mais tarde.
A sua mãe, o seu pai, estes professores, são as influências. Mas quem são, realmente os seus interlocutores? Parece-me evidente no seu percurso que são poucas as pessoas que estão à altura, aqueles que considera iguais.
Não, não. Sabe que sempre fui um aluno medíocre...
Sei que o percurso não foi brilhante.
Medíocre. Nunca chumbei, nunca fui um aluno que passasse do 12, 13, no sétimo ano fui um bocadinho mais acima. Na Universidade, a mesma coisa. Em Letras tive aqueles desaires todos, Direito fiz de seguida porque só ia lá fazer exames.
Marcello Caetano foi seu professor.
Um bom professor. Só o conheci na universidade. Um dia chamou-me, «Você é um aluno a quem demos uma boa classificação no primeiro ano, acho que lhe vou dar uma boa classificação no segundo, fazemos isto muito seriamente. Se estudar um pouco mais pode ficar cá na casa». Depois vem acompanhar-me à porta e diz assim: «Claro, tem é que abandonar essas fantasias da política». Eu olhei para ele e respondi: «Ó senhor doutor, mas quem é que lhe disse que tenho assim tanto interesse em ser professor desta casa?».
Nunca foi, portanto.
Nunca passei da nota que ele me deu, um 14, no segundo ano. Nunca tive esse complexo dos bons alunos. Eu lidei com muito bons alunos. Quando era Secretário-Geral do partido tinha o [Vitor] Constâncio que tinha tido as notas mais altas, o [António] Guterres tinha tido 20 no Instituto Superior Técnico, o [Jaime] Gama, o António Reis tinham sido excelentes alunos em Letras..., todos eram tipos notabilissímos. E eu, um pobre tipo. Mas nunca pensei que fosse superior a nenhum deles. Achava que eram tipos muito melhor preparados do que eu, tinham estudado nas alturas próprias, eu tinha passado muito tempo a ler romances, a ler isto e aquilo, nunca fui um estudioso. Mesmo como advogado, achava-me mediano, sempre achei. Tinha alguma capacidade de falar em público e de convencer as pessoas, tinha facilidade de me dar às pessoas, de me relacionar.
Como é que isso se faz? Como é que é tão sedutor, tão persuasivo?
Não lhe sei responder a isso. Se perguntar ao Júlio Pomar como é que ele é capaz de olhar para si e a fazer aqui neste papel, eu, nem que estivesse um ano, não era capaz.
O seu talento é chegar às pessoas?
É um dom. Tenho muitos defeitos, mas tenho, pelo menos, uma qualidade, que é comum aos romacistas, aos pedagogos e aos políticos. Tenho o que Pascal chamava de «sprit finesse»; quer dizer, a capacidade intuitiva de olhar para uma pessoa e a compreender. Tive muitos acidentes na minha vida política, mas nunca fui traído. Quando havia tipos que estavam para o fazer, eu entendia-os antes. As cisões que houve no Partido Socialista, várias, percebi sempre.
Percebe quando as pessoas falam verdade?
Normalmente sei. Nunca me senti enganado nem por uma mulher nem por um homem.
Isso é espantoso.
Não é nada espantoso. É uma coisa que nasce com as pessoas, não lhe sei explicar. Não era capaz de fazer discursos como fazia o Guterres, muito bem concatenados, que explicavam ali uma data de coisas... Nos algarismos engano-me sempre, confundo os milhões com os milhares... Tenho grandes lacunas na minha educação. Nunca me julguei superior. Estou a falar-lhe com sinceridade. Também há outra coisa: nunca me tomei excessivamente a sério. Conheço um pouco a natureza humana, essa experiência de vida tenho-a, e aprendi com os romances, com os filmes, as peças de teatro, com as coisas que me aconteceram na vida.
Com as pessoas com quem foi estando...
Muitos me influenciaram. Um tipo que me influenciou imenso foi o Manuel Mendes, escritor, desenhista, revolucionário, com uma graça esfuziante, extraordinária, podia ter sido tudo na vida, mas morreu antes da ditadura e foi toda a vida contra a ditadura. Nos anos 50 foi um dos meus amigos mais íntimos e constantes, estávamos presos ambos e ele foi o meu padrinho de casamento. Não faz ideia quantas coisas ele me contou que me vêm ainda hoje à cabeça. Mas conheci grandes figuras da cultura portuguesa. Fui amigo do Dr. Jaime Cortesão, do Dr. Azevedo Gomes, do Carlos de Oliveira, do José Gomes Ferreira, do Cesariny.
Do Cesariny?
Meu grande amigo, toda a vida. Apreciei-o sempre muito. Quando fui visitar Paris, levei o Cesariny comigo porque ele foi expulso de França, no tempo do De Gaulle, por causa da homossexualidade. Apresentei-o ao Miterrand: «Olha, vocês expulsaram aqui este amigo que eu trago, que é um tipo de génio, mas homossexual, como muitos outros». O Gide também era, o Oscar Wilde. Fui amigo do Luiz Pacheco.
O Luiz Pacheco está quase cego.
Uma vez, nunca mais me esqueço, ia a sair da PIDE. Tinham-me posto em liberdade depois de ter estado dois meses lá dentro. Eu vinha mais ou menos alucinado, a chegar perto da Brasileira, e o gajo diz-me assim: «Estás bom, Mário? Tens por acaso aí 20 paus que me emprestes?». E eu disse: «Por acaso tenho». E tinha.
Sentiu-se sempre confortável ao pé dos artistas?
Sim, sim. E eu tinha a singularidade de saber tudo o que se passava na política, portanto os tipos procuravam-me. Mas alguns também foram influenciados pelo Partido Comunista.
E viraram-lhe a cara, também?
Sim. Há o caso de um amigo, o Armindo Rodrigues, era um bom poeta, escolhi-o, aliás, para esta edição [Os poemas da minha vida]. Quando veio o vinte e cinco de Abril, o Armindo fez-se comunista, estranhamente, porque não tinha nenhum temperamento comunista. Ganhou-me um grande... não direi ódio, mas um grande azar. Os comunistas a certa altura acharam que eu é que tinha sido o tipo que impediu que eles chegassem ao poder – o que é verdade, de certa maneira. Não fui só eu, mas contribuí. Era eu Primeiro-ministro e ele tinha escrito já uns artigos um pouco impertinentes contra mim, morre o Ary dos Santos, com quem eu tinha boas relações, estava em câmara ardente na Sociedade dos Autores, era amigo dele e ele era um grande poeta; julguei-me no dever de ir lá. Os comunistas acharam que aquilo era uma provocação! A única pessoa que me falou foi a Isabel da Nóbrega. Cumprimentei uma irmã dele, uma hostilidade seca e um silêncio de morte, fui-me embora. No dia seguinte, dizem-me que o Armindo Rodrigues tinha escrito um artigo contra mim no jornal: «Mário Soares, ontem assisti a um acto inaudito da sua parte! O descaramento com que foi à cerimónia de um camarada que morreu! Pus-me a pensar nas relações que tivemos antes de você ser o nosso inimigo, e, uma vez que sou mais velho, devo morrer antes de si...».
«Escusa de ir ao meu funeral»?
Escreveu: «Venho proibi-lo de ir ao meu funeral, e dei ordens em minha casa para, se isso acontecer, o expulsarem a pontapé escada abaixo». Isso não me impede de considerar o Armindo Rodrigues um grande poeta, foi por isso que o seleccionei. Houve muita gente que me fez coisas dessas. Não tenho nada que me amargure na vida. Realmente não tenho nenhum ódio a ninguém, sou assim constituído.
O Salgado Zenha foi o único que lhe ficou “atravessado”? Porque aquela separação, aquela zanga fraternal magoou-o mesmo.
O Zenha não me magoou muito porque não foi uma coisa que considerasse inesperada. Percebi que havia um distanciamento dele em relação a mim a partir dos últimos anos. Sempre tive pelo Zenha uma grande admiração. Era muito melhor jurista do que eu, muito melhor advogado do que eu, com uma formação jurídico-administrativa muito superior à minha, um homem de grande consciência e rectidão moral. Sempre lhe chamei a consciência moral do partido, e não retiro. Fui Secretário-geral porque o Zenha nunca disputou o lugar de Secretário-geral; naquelas coisas das conspirações dizia: «Esses gajos gostam todos de ti»; a verdade é que, talvez pelo feitio, eles gostavam de mim, o Jaime Cortesão e tal. Quando chegamos à altura de eu ser convidado para o governo disse: «Quem tem de ser convidado, também, é o Zenha». Entrou para Ministro da Justiça e aquilo passou-se muito bem. Depois, quando houve a crise da Fonte Luminosa, saímos do Governo, não participámos no Quinto, derrubámos o Quinto e veio o Sexto. O Almirante Pinheiro de Azevedo convidou-me para ser vice-presidente do Governo. Eu não queria ficar, achava que era melhor ficar na Assembleia, que o mais importante era ganhar as eleições.
Mas Zenha entrou, e foi Ministro das Finanças.
Aquela história da greve do Governo foi feita em parte por mim, mas instalei-me no Ministério das Finanças onde estava o Zenha. Fizemos as eleições, ganhámos pela segunda vez as legislativas e é posto o problema de formarmos governo. O General Eanes, que apoiámos, fez uma declaração, sem nos consultar, dizendo: «Se for eleito Presidente, nomeio Primeiro Ministro o Secretário Geral do Partido Socialista» – era eu. Mesmo assim, quando estávamos a trabalhar para formar o Governo, propus que fosse o Zenha Primeiro-ministro, porque achava que o Zenha estava muito mais preparado do que eu.
Mas é evidente que era o senhor o animal político.
Os meus colegas do secretariado, a começar pelo Zenha, entenderam que não queriam. De modo que ele não quis ir para o Governo, ficou na Assembleia. Ele gostava que eu fosse para Primeiro-ministro e ele continuasse nas Finanças. Eu achava que na Assembleia devia ficar um de nós. Ele ficou na Assembleia, um pouco a contragosto, e eu nomeei para Ministro das Finanças um tipo indicado por ele, o Medina Carreira. Era uma coisa feita em colectivo, havia um slogan, não sei quem o inventou, talvez Manuel Alegre, que dizia «Soares e Zenha, não há quem os detenha». A partir daí o Zenha ficou um bocadinho... não digo melindrado, ressentido. Ele não se sentia um tipo muito amado pelas pessoas, tinha um feitio um pouco sarcástico, tinha alguns complexos. Quando apareceu candidato, fiquei espantado, mas não muito, estava numa certa lógica de separação.
Como é que soube que ele ia ser candidato?
Pelos jornais.
Já não se falavam há algum tempo?
Nunca deixámos de nos falar, mas houve uma separação. Eu tinha tido a coisa com o Eanes, o Eanes ainda era Presidente, o Eanes era grande amigo do Zenha porque o Zenha tinha seguido o Eanes. A cisão entre o Zenha e eu próprio foi a propósito do Eanes, da crise do ex-Secretariado, como se chamava. Fiz ali umas malfeitorias, ganhei o congresso e depois tive que varrê-los, tive que exercer o poder. Um belo dia, quando se fez a lista de deputados, (eles representavam no congresso quarenta por cento), queriam ter a mesma percentagem [na lista de deputados] do congresso. Eu disse: «Não faço isso», «Então, nenhum de nós fica», «Então, não fica nenhum». Perdi os 40 melhores deputados que tinha num dia.
Mesmo assim ganhou as eleições.
Ganhei as eleições por maioria em relação ao que tinha ganho antes, mas não por maioria absoluta. Depois comecei a pescá-los à linha. Claro que o Zenha nunca se deixou pescar. Pensei sempre que íamos restabelecer a nossa velha amizade. O que me chocou mais que tudo foi quando na televisão eu lhe disse: «Ó Zenha, nós somos da mesma família» – família política –, «fizemos todo o percurso juntos, desde comunistas até à fundação do partido». Ele diz-me: «Não sou da tua família, estás muitíssimo enganado». Aí levei um murro no estômago, confesso. Perdi aquele debate, foi talvez o único debate que perdi com o Zenha. Não fui capaz de lhe responder nos mesmos termos porque tinha uma grande amizade por ele.
Acabou por ganhar as eleições.
No dia em que fui eleito mandei um ramo de rosas à esposa do Freitas do Amaral. E a primeira pessoa que chamei como Presidente da República foi o Zenha.
Conte-me lá o teor dessa conversa.
Chamei-o para o ouvir sobre uma história, talvez do Conselho de Estado, ele entrou na sala e disse-me, com um sorriso: «Como é que trato o Senhor Presidente?», e eu disse-lhe um palavrão!, «Como é que nos havíamos de tratar se sempre nos tratámos por tu?». Sempre tive uma enorme amizade por ele. Foi o meu companheiro de sempre, fez-me coisas extraordinárias, auxiliou-me quando estava no exílio. Depois, deu-se aquele incidente. Às vezes acontece. Com o Felipe Gonzalez e o Alfonso Serra sucedeu a mesma coisa.
Tenho dificuldade em perceber em que momentos se sente abalado, hesitante, receoso.
Não sou muito dado a receios, para dizer a verdade. Mas, por exemplo, quando o inspector Sachetti, às três da manhã, naquela sala fatídica do terceiro andar da PIDE, um cochicho onde punham os tipos a fazer a tortura do sono, que me aplicaram a mim por duas vezes, três dias e quatro noites sem dormir, e o inspector Sachetti, sorridente, perfumado, bem vestido, entra ali e diz-me: «Tem andado a brincar connosco, não responde às nossas perguntas, não colabora, o Dr. Salazar cansou-se, vamos mandá-lo para S. Tomé». Um tipo está preso, não sabe o que lhe vai acontecer, é um choque. A única coisa de que me lembrei foi que havia um livro que o meu pai tinha feito com dois pintores, que se chamava «Quadros da História de Portugal», e num dos últimos quadros havia uma pequena ilha, com um coqueiro imenso e um preto lá em cima, por baixo estava «S. Tomé». Era tudo quanto eu sabia de S. Tomé. Ele continuou: «É como quem atira uma pedra a um poço: vai fazer umas onditas, mas daqui a uns meses ninguém se lembra que existiu um advogado chamado Mário Soares».
Sentiu-se intimidado?
O pior é que acreditei que o gajo estava a dizer a verdade! No outro dia levam-me para o Instituto de Medicina Tropical para me darem umas vacinas, e eu disse: «Porque é que me querem vacinar, se me querem matar?». Mas o que eu pensava era: «Nunca mais vou sair de S. Tomé». No avião puseram-me em primeira classe.
Porquê esse luxo?
Porque ia acompanhado de um inspector da PIDE, e porque havia muita gente na classe turística. Via-se pancadaria no aeroporto, varreram aquilo tudo à pancada porque estavam lá tipos a dizer-me adeus. Eu estava quase sem comer desde a véspera e vem comissário de bordo muito delicado: «Os senhores querem jantar?». O inspector da PIDE diz: «Não queremos, já jantámos». Eu digo: «Senhor inspector, se me dá licença, eu quero. Não sei se é o meu último jantar, deixe-me ao menos jantar bem». Aquilo era muito bem servido na TAP, eu bebi aqueles vinhos franceses, e por fim o homem disse assim: «O senhor fumará um charuto?», «Fumo, com certeza!».
Acreditou que podiam eliminá-lo?, que ousariam tanto?
Eu tinha sido advogado do [Humberto] Delgado, que tinha sido eliminado. Fui sozinho a Badajoz. Os espanhóis estavam danados, não queriam arcar com a responsabilidade do crime! Fui falar com o juiz e fiquei no Hotel onde ele tinha sido raptado.
Tudo isso é uma aventura! Dizia numa entrevista que não precisava de ler o Sandokan quando era jovem porque a aventura estava na rádio quando relatavam as últimas da Guerra Civil de Espanha. Não há aventura maior do que a vida. Ciente dos riscos que corria em Badajoz, reconstituindo os passos de Delgado, não conseguia prescindir da dimensão da aventura.
Sim, sim.
Se pensar na eternidade, o que é que acha que vai ficar de si?
Não faço ideia nenhuma e é coisa que me interessa relativamente pouco. Não acredito na eternidade, na imortalidade, na alma. O que fica de mim é um rodapé num livro de história.
É assim, de um modo tão sucinto, que vê o seu nome?
É. Homens que para mim foram gigantes, como Jaime Cortesão, António Sérgio, Afonso Costa, essas figuras da república, quem é que os conhece hoje? As coisas são muito relativas e há que ter a humildade de as considerar como tal. A vida é sempre curta. O que é preciso é que a gente viva com dignidade e deixe uma memória simpática do que fez. Sobretudo as pessoas vivem no coração dos seus amigos.
Quando se pensa na eternidade, podem fazer-se várias aproximações. Há a aproximação metafísica, que exclui, porque a especulação metafísica interessa-lhe pouco...
A especulação metafísica interessa-me muito, eu não acredito é na imortalidade da alma. Acredito na memória, e que a memória possa transmitir-se de pessoa em pessoa. Mas essa mesma memória, que é muito afectiva, na primeira geração é total, na segunda é diluída, na terceira geração quase desaparece.
Tem sobre a secretária a fotobiografia do António Lobo Antunes. Daqui a 50 anos ler-se-á um livro do Lobo Antunes? Daqui a 50 anos persistirá uma memória de si?
Não, não, é diferente, o Lobo Antunes é um grande escritor.
E o senhor não é um grande estadista?
Não, não sou um grande estadista. Nem sequer me considero estadista, para lhe dizer a verdade. Considero-me um político.
No sentido de homem de Estado que interveio...
Intervim, fui político. Aconteceu-me que estava nos bons sítios nos bons momentos. Se começar a pensar por que é que me aconteceram certas coisas, há sempre uma grande dose de arbítrio e de mistério. Ajudei a fundar o Partido Socialista, dizia aos meus camaradas: «O Partido Socialista é como um Stradivarius que podemos vir a tocar e que nos serve admiravelmente quando houver democracia». Éramos uns dois ou três mil socialistas em todo o país no vinte e cinco de Abril, dispersos, alguns bastante desencorajados, dez dias depois éramos cem mil. O partido teve uma expansão extraordinária porque foi talhado num bom momento, e nós estávamos ali, tínhamos um programa. As pessoas afluíram, fomos o partido mais votado, e foi isso que me levou a ter várias posições que vim a ter. Se não tivesse sido isso, talvez tivesse entrado como qualquer outro exilado.
Estou a tentar a perceber se é apenas um exercício de humildade, esse que está a fazer, ou se está mesmo a relativizar a sua importância no curso do século XX português.
Não é um exercício de humildade nem de relativização. É um exercício de realismo. Eu acho que foi assim.
Podia ser qualquer outro se estivesse no mesmo lugar à hora certa?
Pois podia, então não podia ser?
Então e as suas características pessoais? O seu carisma, o seu famoso carisma que fez que rapidamente mobilizasse as pessoas...
Talvez... Uma vez um psicanalista disse-me que quatro ou cinco psicanalistas analisaram os políticos na televisão, no 25 de Abril, a ver quais eram os complexos, as deficiências, os pontos altos e os pontos baixos. Acharam que eu era o menos descomplexado de todos, o menos aflito com a sua imagem, o mais seguro das coisas que dizia.
O tom descontraído, o estar bem na sua pele, é um ponto essencial do seu carisma. As pessoas dizem sempre que é das poucas pessoas que está bem num bairro de lixo ou num hotel de luxo. Foi sempre muito seguro de si e descontraído?
Acho que sim.
Isso é porque o seu pai o educou para ser um príncipe, um lutador, um vencedor?
O meu pai educou-me não sei para quê. Tentou educar-me o melhor que pôde e eu senti que fui um filho querido. O meu pai e a minha mãe, o único filho que tiveram em comum fui eu. A minha mãe tinha um filho anterior e o meu pai também.
Os outros irmãos não viviam consigo?
Quando o meu pai esteve exilado, viviam. Tinham mais 17 e 18 anos do que eu. O meu irmão mais velho tinha um nome horrível, chamava-se Tertuliano. O meu pai era professor de História, gostava muito de Roma e pôs-lhe um nome romano. Como me pôs a mim, e pôs a um sobrinho meu Augusto. Eu disse-lhe: «Olhe que o pai, se me tem posto a mim Tertuliano, nunca mais lhe tinha perdoado».
Seria um complexo na televisão, ter um nome desses.
O meu irmão até gostava do nome, tanto que o pôs a uma data de afilhados. Os meus pais, apesar da vida agitadíssima do meu pai, viviam muito concentradas sobre mim. Suponho que fui asmático até aos 16 anos, pela ansiedade da minha mãe. A minha mãe estava sempre a encher-me de camisolas, punha-me pachos de algodão em rama com álcool para não me constipar no Inverno, punha-me botijas na cama...
Tem uma memória física disso ou lembra-se de ouvir falar?
Perfeitamente física. Estou a ouvir os gritos do meu pai e da minha mãe, «Mário, não andes sem chapéu, estás a apanhar sol na cabeça», parecia que era uma coisa terrível apanhar sol na cabeça. Aos 16 anos explodi, comecei a ir para a praia, aprendi a nadar. Era muito magro e tinha um certo complexo junto dos meus colegas que eram fortes; davam-me encontrões e eu ia abaixo. Nunca tive grande musculatura nas pernas e nos braços. Mas a verdade é que quase todos os meus colegas de liceu morreram já, e eu resisti. À medida que os anos foram passando, tornei-me mais forte, menos vulnerável.
Sentiu-se, então, um filho muito querido.
Sim, e isso deu-me uma grande segurança interna. As atenções dos pais, dos irmãos, da família. O meu pai tinha a mania de me pôr em cima de um banco para eu falar, «Faz lá um discurso». Talvez achasse que era o centro do mundo. Depois percebi que não era. Mas isso deu-me uma certa confiança em mim próprio.
No liceu gostava de brincar aos políticos e queria fazer de Primeiro-ministro. Quis sempre ser político, o que interessa é isso.
Sim, mas nunca achei que a política fosse mais importante que outras coisas. Fui um pouco político à força. Fui político porque não podia viver na ditadura. Era uma incompatibilidade física. Não era possível viver num regime como aquele, em que uma pessoa para conseguir alguma coisa era preciso ser subserviente. Isso levou-me a ser resistente à ditadura desde muito jovem e depois enveredar pelo Partido Comunista. Depois tive as minhas lutas com o Partido Comunista, como se sabe, porque também não concordava com aquele modelo. Se tenho vivido numa democracia inicialmente, podia ter sido advogado, escritor, jornalista.
A sua importância na história ter-se-ia diluído?
Com certeza. Vivi numas circunstâncias muito excepcionais. Pronunciei-me muito cedo contra a guerra colonial e paguei por isso, estabeleci laços de solidariedade com os militantes dos antigos movimentos coloniais, recebi a simpatia da gente política europeia por causa disso e por causa de ter sido advogado da família do Humberto Delgado. Com esse facto tive uma grande solidariedade das organizações judiciárias e da Associação Internacional dos Advogados. Isso condicionou um pouco a minha vida. Depois, o exílio. A seguir ao exílio, vinha com ideia de que podia ser talvez deputado, podia fundar um jornal, era a minha ideia, quando vim no comboio. Nunca esperei que o Estado aluísse como aluiu. Não se esqueça que era uma ditadura feroz e, de um dia para o outro, aquilo aluiu, ninguém a defendeu.
O mais espantoso é que aconteceu sem sangue.
Caiu como um fruto podre. Estava eu e estavam outros e tomámos a dianteira das coisas. Fui secretário do Norton de Matos, em 49, depois fui do Humberto Delgado, mas não tive grande importância na candidatura do Humberto Delgado. Se o Estado tem caído numa outra altura, não era eu que tomava a dianteira, eu ia na onda. Por acaso caiu quando eu tinha 49 anos.
Está a dizer-me que não falhou o encontro com a história.
Mas não dependeu de mim, não é mérito meu, isso é a minha certeza.
Gostava ainda de voltar atrás e de lhe perguntar: na cadeia, quando não falou, foi para honrar o seu pai?
Aí não entra o meu pai. Entro eu e os meus companheiros, só. O meu pai, sempre foi uma pessoa que me ensinou a dignidade e a honra, mas o que se passava é que eu, perante aqueles esbirros da polícia...
Esbirros é uma palavra que já não se usa. Mas as pessoas da sua geração conheçam-na bem. É engraçado quando uma palavra situa uma geração.
Esses esbirros tentavam sacar-me o que tinha. Eu não fiz o que fizeram alguns comunistas que defendi, estou a lembra-me do Octávio Pato, meu colega do MUD Juvenil. Era um dos principais dirigente do Partido Comunista e com grande espanto meu convidou-me para ser advogado dele_ eu já tinha saído. Ele não disse sequer como se chamava, apanhou cargas de pancada monumentais, foi espancado em pleno julgamento, na minha frente! O juiz disse que ele o estava a insultar e os polícias começaram a bater-lhe, eu aos berros!, os juízes fizeram orelhas moucas, arrastaram-no da sala, uma tragédia. Ele é um herói, não abriu a boca. Eu não fui assim. Em primeiro lugar nunca me bateram na polícia, deram-me assim uns encontrões, mas nunca uma sova.
Por que é que não usaram a violência física sobre si e recorreram a outros métodos?
A repressão era de classe. Os operários e os tipos rurais eram espancados. Os intelectuais e os tipos da burguesia, como eu era, filho de família, eram tratados de outra maneira. Não eram batidos porque isso podia ter um reflexo muito maior se se sabia cá fora. A heroicidade dos que passaram pela cadeia e que resistiram é extraordinária, tem que se prestar essa homenagem. Nunca denunciei um colega, mas quando diziam: «Como é que você se chama?», «Chamo-me Mário Alberto Nobre Lopes Soares», «Onde é que mora, quem é o seu pai, quem é a sua mãe?», isso sim, respondia. Quando diziam: «O senhor encontrou-se com o senhor fulano de tal?», «Não senhor, não me encontrei», «Ah, mas temos a informação de que...», «Então, a informação é falsa». Isto é uma coisa diferente, bastante mais articulada e subtil. Se for ver os meus autos que estão na Torre do Tombo... Eu nunca os vi, mas sei o que lá está.
Nunca viu?
Nunca tive curiosidade. O tal Sachetti disse-me: «O senhor é um limão que não deita suco, a gente aperta, aperta e não pinga». Eu tinha uma cultura jurídica e a experiência dos interrogatórios que faziam aos outros, defendi dezenas, senão centenas de presos políticos. Vou contar-lhe esta coisa que não sei se já contei a alguém, acho que não. Havia um tipo, tinha sido meu colega de curso na Faculdade de Letras, chamava-se Farinha, fazia trabalho para a PIDE e ninguém sabia. Um dia fui preso, e quem é que me calha em rifa como inspector? Eram três horas da manhã, estava ele sentado à secretária e eu em frente. Abre uma gaveta e tira um pistolão, começa a falar comigo e fazer rolar a pistola. «Você sabe que posso matá-lo agora, e não me acontece nada, se me chateia muito, eu mato-o». Eu respondo: «Não me admira, você é um criminoso». «Vou dizer que tentou fugir ou agredir-me e eu defendi-me, que foi em legítima defesa. Toda a gente acredita, ninguém me vai condenar, se calhar, até vou ser condecorado aqui na polícia». Isto que hoje parece uma coisa ridícula tinha uma carga emocional naquele tempo... A gente acreditava, aquele gajo era um desvairado.
Foi nessa altura que percebeu que era um tipo resistente?
Costumo dizer que a cadeia é uma grande universidade. Porque se aprende imenso, sobre si próprio, antes de mais nada. Percebi que resistia, que tinham uma máquina e eu era um grão, mas que não me esmagavam. E isso é a sensação mais exaltante que se pode ter na vida: um tipo dizer «Eu resisto», e resiste. Se não resiste, é o diabo.
Amar e ter medo é o normal das pessoas? É isto que caracteriza o humano, o amor e a palpitação do medo, da coragem, da bravura?
São dois fenómenos muito diferentes. Eu do amor não lhe falo, aí não entro.
Oh, que pena!
Faz parte das questões de natureza mais íntima que não têm interesse para os outros. Mas do medo, sim. Li uma vez um livro sobre a Joana d’Arc. Ela é interrogada antes de ir para a fogueira: «Então tu não tiveste medo?», «Tive, mas venci-o primeiro que os outros. Não tinha medo quando os outros começavam a tê-lo». Medo toda a gente tem, mas há alguns que o vencem e outros que se deixam ser vencidos.
Se falasse inglês, podia ter sido um Clinton?
Um Clinton não!, porque nasci num pequeno país que se chama Portugal, e nesse país atingi o possível. O país é pequeno e isso condiciona o nosso próprio estatuto. Mas tenho a sensação de que uma das minhas deficiências foi não falar inglês. Tem a ver com a minha geração. O meu pai dizia: «Tens que saber francês porque é a língua da cultura e da diplomacia». Eu não tenho jeito nenhum para as línguas, é sabido, não tenho bom ouvido, não apanho as pronúncias, sou incapaz de fazer certas distinções nos «ens» franceses, por exemplo.
Estudou inglês?
Estudei no liceu, não aprendi nada, mas passei. Depois disso, fiz quatro ou cinco tentativas para aprender inglês. Uma vez, um amigo meu, que era um homem notável e que foi Primeiro Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, chamado Callagan deu-me uma bolsa, de uma Fundação, e fui para Inglaterra. Mas logo calhou que naquele mês em que devia estudar intensamente o inglês, o Marcelo Caetano fez a sua última viagem a Londres e resolvi, com outros amigos, organizar uma manifestação enormíssima contra a presença do Marcelo Caetano. Foi uma coisa homérica, foi quando inventaram a história de que pisei a bandeira nacional, uma coisa completamente absurda. A bandeira da República era a última coisa de que eu me lembraria de pisar.
Ficou o inglês adiado.
Se tenho sabido inglês, com a capacidade que sempre tive de me relacionar e provocar simpatias nas pessoas, tinha entrado em organizações internacionais e ido muito mais longe do que foi. Disso não tenho a menor dúvida.
Entre os seus pares: Eanes, Cunhal, Freitas, Cavaco, Guterres, da nova geração, admira uns mais do que outros. Mesmo que tenham tido brigas monumentais, há alguns que são de estimação, que respeita.
Citou o Guterres, que é do meu partido, e portanto, meu companheiro.
Mas é de outra facção.
Sim, mas não se esqueça que quem o meteu no Secretariado, quem o pôs na direcção do partido fui eu. O Guterres inscreveu-se no Partido Socialista em 74 e quando percebi que estava ali um tipo muito esperto, muito dinâmico, comecei a puxá-lo para as coisas. Prezo muito a inteligência do Guterres, tem uma extraordinária inteligência política, tem uma grande facilidade para línguas.
Vai ser uma vantagem quando se candidatar, se se candidatar, às presidenciais?
No caso das presidenciais, a língua não serve para nada.
Não tem que ver com uma teia de relações e uma afirmação no plano internacional?
Sabe que a reputação que se tem internacionalmente, falo por experiência própria, não tem nenhuma influência na interna. Eu tinha sempre muito boa reputação internacional e internamente ninguém ligava às coisas que fazia, só se diziam graças. Não se lembra de uma vez ter dito «Mon ami Miterrand», e toda a gente [ter pensado] «É tão amigo do Miterrand como de nada, está aí a presumir...». E depois veio a verificar-se que realmente era amigo íntimo do Miterrand. Ele fez coisas comigo que não fez com muita gente, incluindo franceses, fui uma das últimas pessoas a vê-lo já no estado final da sua doença.
Consta que essa perda lhe foi particularmente dura.
Pois foi. Mas para ser Presidente da República, [o inglês] é um pormenor. Toda a gente usa intérpretes, o Gorbachev só fala russo, os chineses só falam chinês. Claro que um tipo de um país pequeno, se falar a língua dos próprios, facilita os contactos. Mas pode haver relacionamentos efectivos mesmo sem se falar a mesma língua.
Regressemos então aos pares.
Tenho respeito por eles todos, incluindo o Cunhal. O Cunhal é de uma inteligência superior e de uma grande cultura, não só marxista-leninista. Mas é um tipo com talas, só vê aquilo que quer ver e não sai dali, uma teimosia enorme, não reconhece o erro, está convencido que o mundo todo errou e que ele é que está certo. Vai morrer assim. Talvez seja bom para ele, e até ficávamos desiludidos se ele agora aparecesse a dizer que se tinha enganado. O Freitas do Amaral é um grande jurista, um homem inteligente, um grande político, um homem de bem. O General Eanes é um militar, prestou grandes serviços na altura em que foi preciso normalizar as Forças Armadas, é um homem de uma grande seriedade, não é um homem de uma grande cultura. O Cavaco é um homem extremamente sério, honrado, competente na sua esfera que são as finanças e a economia. Mas não é um homem com uma grande cultura política, nem sequer literária. É muito profissional, no sentido americano do termo: sabe tudo da asa da mosca, mas não sabe mais nada, como dizia o Eça de Queirós.
E o senhor? Como é que se descreveria em duas linhas?
Descrever-me-ia como um literato frustrado que caiu na política.
Não, não. Como é que se descreveria, a sério.
É o que lhe estou a dizer. Depois tira lá as suas conclusões. Evidentemente, sei que tenho qualidades políticas, não podia ter chegado onde cheguei se não as tivesse. Fui apreciado como Presidente da República, nos dois mandatos, não fui apreciado como Primeiro-ministro. Acho que fiz um bom papel nos governos, sinceramente lhe digo. Tomei medidas que foram impopulares, mas que foram úteis para o país. Sou um patriota e tive sempre uma ideia para Portugal. Sabia perfeitamente quando aqui cheguei o que é que queria que acontecesse a Portugal: que era preciso acabar com as guerras coloniais, que era preciso fazer a descolonização para ter a democracia, para entrar na União Europeia. Era a favor do socialismo, da luta contra as desigualdades. Fui Primeiro-ministro três vezes e nesses três governos tive grandes dificuldades e grandes antagonismos, fui muito criticado e afrontei grandes confrontações, mas fiz o que entendi que devia fazer. E estava tão convencido [disso] que quando estava no mais baixo do meu percurso político, candidatei-me à Presidência da República. Com as sondagens a dizerem que tinha sete por cento.
Acreditou que podia ganhar?
Isso nunca tive dúvidas. Sempre pensei que tinha um relacionamento afectivo com o povo português, que eles estavam zangados comigo, mas que gostavam de mim. Era uma questão de família. Precisava de os convencer que o tinha feito não contra eles, mas para os defender. Era o meu problema.
Perante uma plateia em fúria, não recua. Tem sempre a convicção de que os pode seduzir.
A minha maneira de ser é de os afrontar, nunca de recuar. Vou contar-lhe uma cena que se passou com o Champalimaud. Eu vou a Minas Gerais. O Governador vai buscar-me ao hotel e diz que é melhor sairmos pela porta de trás, porque [na porta principal] há uma manifestação contra mim. «Então, saímos pela porta grande»! No outro lado da rua estavam uns 200 gajos com uns grandes cartazes a dizer «Abaixo o vendedor de Angola, o ladrão que roubou Angola e a entregou aos soviéticos», insultos desse género. Avancei para um dos que estava a gritar aquela coisa, brasileiro, «Sabe quem é esse que você diz que roubou Angola», «Não, patrão, não sei», «Sou eu. Pagaram-lhe, não pagaram?», «Pagaram sim», «Quem é que lhe pagou?», «Foi o senhor Champalimaud», «Já fez o seu serviço, enrole lá isso e disperse». O Governador estava espantado. Eu disse «É preciso não encarar estas coisas com dramas». Muitos anos depois, era eu Presidente da República, o senhor Champalimaud tinha um interesse numa coisa, o Dr. Cavaco tinha-me dito que era importante do ponto de vista nacional e que se devia apoiar. Estudei aquilo e achei que o Cavaco tinha razão. Pediu-me uma audiência o filho dele [Champalimaud], e apareceu-me lá com um advogado de quem sou amigo, o Proença de Carvalho. Eu disse: «Antes de falarmos sobre esse assunto, vamos falar de outra coisa. O senhor Champalimaud-Pai, sem me conhecer, no estrangeiro, pagou uma manifestação contra mim». O filho disse: «É verdade, fui até eu que organizei a manifestação». «Se você reconhece que é verdade, não se fala mais nisso. Está aqui a pedir-me uma coisa, não está? Já está resolvido, mesmo que me dissesse que não era verdade, está aqui assinado».
O senhor não esquece.
Eu não gosto de esquecer, perdoo, mas não esqueço.
Uma última pergunta: qual é a memória mais antiga que tem de si?
Se lhe contasse... Não lhe posso contar, a verdadeiramente mais antiga, não. Mas tenho memórias dos meus três ou quatro anos...
A que não me pode contar é anterior a essa?
Não, é desse tempo, mas vou-lhe contar outra. Eu vivia na Rua Gomes Freire, onde nasci. Nas traseiras da minha casa, que tinha um jardim, via-se os malucos_ por isso é que os malucos nunca me fizeram impressão. Eu brincava ali e era muito amigo de uma pessoa que se tornou ilustre na vida portuguesa, o Moniz Pereira, que é talvez o meu mais velho amigo. Eram dois irmãos, eles viviam no primeiro, eu vivia no segundo, tínhamos jardins colados e brincávamos ali.
Publicado originalmente no Diário de Notícias em 2004