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Anabela Mota Ribeiro

Marta Crawford

26.06.14

Nas sessões com casais que a procuram, faz perguntas do tipo: “O seu marido costuma tocar-lhe no clítoris durante a relação sexual”. Nos livros que assina, responde a questões como: “Gostava de ter um vibrador, mas tenho muita vergonha de o comprar”. Na entrevista, revela coisas como: “Mesmo que o discurso seja contrário, que saibam da importância dos preliminares, a verdade é que na situação o que importa é o pénis-vagina”.

Marta Crawford fala sem tabus. Licenciou-se em Psicologia e especializou-se em sexologia. Tornou-se conhecida do grande público no programa da TVI “AB Sexo”. Colaboradora regular da comunicação social, publicou dois livros em que fala sobre o inesgotável enigma que é o sexo… Numa linguagem simples e clara.

Conversámos numa esplanada, a dois passos do consultório. Tomou um café. Revelou a segurança e determinação que lhe conhecia da televisão. E naturalidade. É uma mulher bonita que diz “movimento masturbatório” com a mesma facilidade com que se diz “hoje está um lindo dia”. E porque não haveria de dizer?

 

 

Num dos seus livros, transcreve um pedaço de uma sessão com um casal; aí se lê que a maneira de os homens dizerem que gostam das mulheres é através da procura sexual, e a maneira das mulheres é a das palavras.

A maior parte de pedidos que tenho no consultório é de casais que têm um problema de desejo. Mulheres que dizem ter falta de desejo e homens que dizem ter o desejo intacto, “como sempre tiveram”.

 

Isso coincide com o estereótipo de que eles gostam de sexo, e elas, verdadeiramente, gostam é de ser amadas. 

Na maior parte das conversas persiste essa ideia de que eles só querem sexo – é uma frase dita de várias formas. Se houver sexo, está tudo bem, se não houver, está tudo mal. Elas entendem o contrário: dizem que o sexo é bom quando estão bem na relação. “Bem” quer dizer: há um entendimento e um equilíbrio a vários níveis, desde a divisão das tarefas domésticas à rotina das crianças, da partilha à comunicação com qualidade.  

 

O sexo pode ser um modo de o castigar? Ou premiar.

Pode não ser consciente, mas o entendimento é: “Se não me dás aquilo que quero, vou dar-te aquilo que sei que queres?”... Uma pequena vingança. Algumas mulheres dizem que nunca tinham pensado nestes moldes, mas a verdade é que acaba por ser uma reacção. Isto para dizer que a leitura dos homens e das mulheres da relação é muito distinta. E as histórias são tão semelhantes… O tipo de sentimentos, de comportamentos, pensamentos…

 

A mecânica das relações é previsível e assenta muito mais em estereótipos do que se pensaria. Ou desejaria – porque todas as pessoas querem crer que o seu caso é diferente do de todos os outros.

Por mais que nos distanciemos da forma como os nossos pais, ou avós, ou amigos – que são as referências mais próximas –, viveram enquanto casal, o que é certo é que herdamos sempre uma carga. Nas situações de ruptura, há muitas vezes [no nosso comportamento] qualquer coisa da nossa experiência enquanto filhos, por exemplo. Não é uma coisa directa, mas há muito esta menção, ou o peso da opinião dos pais.

 

Amamos e desejamos como os nossos pais?

Nós amamos e desejamos independentemente do que os nossos pais fizeram. Aliás, durante muito tempo, nós achamos que eles nunca “fizeram” nada.

 

Não pensamos na sexualidade dos nossos pais. É normal olharmos para os pais como assexuados…

E se pensarmos nos nossos avós, então… É como se não existisse sexo entre eles.

 

Disse “amamos e desejamos” propositadamente: parecem zonas separadas se pensamos nos nossos pais. É um território sagrado para onde não cai o nosso pensamento…

Há uma fase da nossa vida em que deixamos de nos preocupar com a nossa família de origem. Acredito que na adolescência haja uma especial curiosidade: será que eles fazem aquilo que nós temos tanta vontade de fazer? É certo que quando a porta do quarto está fechada à chave alguma coisa se deve estar a passar… Mas será possível? Depois, quando a pessoa começa a conquistar a sua sexualidade, deixa de fazer comparações com a dos pais. A não ser que a nossa seja difícil.

 

Mas a equação “amor e desejo”, deve ser separada? Ou são indissociáveis?

É possível amar e não desejar o outro. A maior parte dos casais que aparecem no consultório, uma das primeiras coisas que dizem é que se amam. Salvo os que estão em pré-ruptura, a maior parte diz: “Nós damo-nos muito bem, mas o sexo não está a funcionar”. E quanto mais fazem esta menção – que a relação é óptima – mais eu sei que à terceira sessão estamos a fazer terapia de casal pura e dura.

 

É possível desejar e não gostar, e vice-versa?

É. E é mais comum do que se pensa. As pessoas dizem: “Quero continuar com aquela pessoa, aquela pessoa faz sentido para mim. À minha maneira, gosto dela…”. O “à minha maneira” também é muito comum. “Amo-a”, não se diz tanto. Amar é uma palavra difícil de utilizar.

 

Por pudor?

Por haver diferentes entendimentos do que é o amor. O que é o amor, afinal? É estar apaixonado? É adaptar a vida ao outro, orientar todos os momentos da sua vida em função do outro, pensar constantemente no outro? Ou o amor é um gostar mais calmo? O companheirismo, às vezes, é insuficiente. Alguém me dizia ontem no consultório: ela quer sentir borboletas na barriga outra vez…

 

As pessoas acham que são assim e assado, têm preconceitos muito firmes em relação ao seu modo de ser. E têm dificuldade em descolar de estereótipos.

Porque a maior parte das pessoas não gosta de se sentir confusa em relação aos seus sentimentos, desarrumada. Mesmo que diga que não, e por mais que seja moderna, gosta de entrar numa caixinha. Há sempre uma caixa à espera, nem que seja a dos alternativos. E é difícil conviver com muitas dúvidas – gostar ou não gostar, por exemplo, ou o que é gostar.

 

Mas se gostam, porque não desejam?

Dizem muito: “Aquela pessoa tem tudo, é ideal para mim; então porque é que não gosto dela?” Está na gaveta do amor, mas falta estar na gaveta do desejo. Como é que se faz? Vai-se embora? Que recursos encontra cada um para ficar naquela relação? É possível redescobrir a paixão naquela relação, com aquela mesma pessoa? Eu acho que sim.

 

Como conseguir isso?

Penso que passa pela criação de espaços no casal. Tem de haver um espaço de manobra. Se o outro está sempre lá, disponível, como desejá-lo? A pessoa não tem o sentimento ou a ameaça da perda – que são do estado da paixão.

 

Ter o outro como adquirido…

É mau para a relação. Assim como estarem sempre juntos. Às vezes, há a noção de que o Eu e o Tu deixa de existir e passamos a ser um Nós. E o Nós é um bocadinho fusional demais. Vamos sempre às compras juntos, sair com os mesmos amigos juntos, estar com a família todos juntos.

 

Estamos reféns da ideia de que o amor perfeito é o fusional.

Mas não é.

 

A maternidade, mais do que a paternidade, altera radicalmente a sexualidade do casal? Provoca um distúrbio irremediável?

Não tenho tanto essa ideia. É verdade que muitos dos casais que me pedem ajuda têm como ponto de referência para o momento em que os problemas começam o nascimento do primeiro filho – agrava-se sempre com o segundo. Depende de como correu a gravidez, do pós-parto, das noites bem ou mal dormidas. Para já, o ritmo biológico, hormonal da mulher é alterado. O desejo flutua muito nessa fase – ao contrário do que acontece com o homem, que tem uma estabilidade na sua libido. Há alterações hormonais e também motivadas pelas fantasias deles e delas em relação ao “estado de graça” da mulher – que fica imaculada e não se pode tocar… Uma espécie de Virgem Maria. Mas mais do que a gravidez, o momento de crise é o que vem a seguir. Muda porque o papel é outro: passa a ser o da parentalidade.

 

E é preciso juntar a este processo, o período de amamentação…

Diminui a libido, claramente. O carinho que se troca com um filho, muitas vezes alimenta uma mulher. Aquilo é tão intenso, que não precisa de mais. E o homem fica excluído deste duo. Mas normalmente isso acontece em situações em que já havia um afastamento. [A gravidez] apela à descoberta de uma sexualidade mais lata, sensorial, que não tem que ser coital, pénis-vagina. E para muitos casais, se não funciona assim, então não funciona de maneira nenhuma. Este é que tem que ser o ponto de mudança. 

 

É quando o quadro é alternativo?

Há situações em que a mulher se liberta com a maternidade. Em relação ao seu corpo, em relação à sua sexualidade. Parece que agora já tem autorização para sentir uma data de coisas… “Agora já és mãe, já és “digna” de usufruir do teu corpo”… Há esta coisa dúbia – sou mãe, não devia ser amante – mas o que é certo é que algumas mulheres ficam menos envergonhadas, libertas de fantasmas e da educação que tiveram.

 

Nunca se falou tanto de sexo, as imagens no cinema e na publicidade nunca foram tão explícitas. Contudo, a desinformação persiste. As pessoas continuam presas a medos e ideias atávicas. E a ideia dominante é ainda a do pénis-vagina, como se tudo se resumisse a isto.

É assim. E é uma coisa que não se percebe. Tenho uma filha com 16 anos; quando ela tinha 14, lembro-me de constatar que as conversas das amigas dela eram similares às da minha avó – os mitos, os medos, eram os mesmos! Mas como é que é possível? Como é que têm discursos tão retrógrados? Mesmo que o discurso seja contrário, que saibam da importância dos preliminares, a verdade é que na situação o que importa é o pénis-vagina.

 

É como se na receita entrassem os preliminares, a fantasia, a privacidade. Mas na prática, se esse quadro falha, parece que nada faz sentido.

E a cereja em cima do bolo é o orgasmo. Orgasmo da mulher. Se ela não tem, põe em causa aquele pénis… [Num tom irónico e provocador:] Um pénis, por si só, não é grande coisa. Um vibrador é mais funcional: põe-se pilhas e está disponível quando se quer, faz-se ao ritmo que se quer. Se calhar para a mulher, aquele pénis não é o mais importante. Mas os homens não entendem isto. 

 

Os homens precisam de se sentir viris, de ter provas de que aquele pénis funciona. Homens e mulheres estão preocupados com a vagina, mas o ponto nevrálgico do prazer é outro…

É um desencontro… O prazer da mulher está mais situado fora da vagina, resulta da estimulação fora da vagina, mas as mulheres aparecem-me no consultório a dizer: não tenho bem orgasmo, sinto-me incompleta e inferiorizada porque não consigo ter um orgasmo através de uma relação coital. O meu namorado/marido diz que não devo funcionar muito bem…, porque as outras tinham. Este é um grande mito.

 

E qual é a resposta? As outras fingiam o orgasmo?

Há mulheres que têm prazer assim, mas não são a maior parte. 90% das mulheres precisa da estimulação clitoriana durante o coito para terem prazer. E muitos homens continuam a achar que isso não é necessário, porque já tiveram os preliminares. Eu digo: antes, durante, e com boa vontade depois do coito! O sexo não tem de terminar com uma ejaculação.

 

Este quadro está enraizado onde?

Passa pela função inicial do sexo, que era a reprodução. E para a reprodução não era preciso que a mulher tivesse prazer. No caso do homem, entendia-se que ele tinha de ter orgasmo e ejaculação.

 

Há imagens, cenas de filmes, que fazem parte do imaginário colectivo. E todas apelam à perfeição, ao delírio, ao êxtase. É verdade que as pessoas ficam frustradas porque querem reproduzir as posições do “9 ½” e depois não encontram nisso o mesmo prazer?

Tentar imitar algumas posições, do cinema ou do Kamasutra, provoca maior desprazer que prazer… O filme mais sensorial que vi nos últimos tempos é “Lady Chaterley”. Não tem que ver com posições ou prestações, mas com um levantar do véu. Apela à vontade de estar intimamente com alguém. Muitas imagens funcionam como trampolim para as fantasias colectivas: no elevador, no cavalo, no avião…

 

O rol de fantasias colectivas não tem fim. Mas relacionadas com a infidelidade há umas “clássicas”. Como trair com a cunhada ou o melhor amigo… Neste caso, estamos a falar de posse e de sentimento, mais do que de sexo, não é?

Há vários círculos à volta do casal que têm impacto na relação. E nestes círculos há príncipes e princesas encantados. Todas as pessoas que estão à volta, dependendo do estado do casal, surgem como mais compreensivas, mais interessantes, e funcionam como pretexto para a pessoa olhar para o lado… Eles e elas olham à volta. E, sobretudo quando as relações não estão tão harmoniosas quanto isso, é fácil encontrar noutras pessoas fora da relação o melhor do mundo. Os outros não partilham os lados podres da nossa relação. Os outros correspondem à visão mais perfeita.

 

Uma parte significativa do desejo passa mais pela imaginação, pela construção social do que pela biologia?

Costumo dizer que o principal órgão sexual é a cabeça. E nas mulheres, ainda mais do que os homens. São mais emocionais, pensam mais. A cabeça feminina é mais contextual do que a masculina. Mas as mulheres não são só isso. As mulheres continuam a ter desejos de uma noite por uma pessoa, por uma questão meramente química, e a não querer ter compromissos. Cada vez mais as pessoas são independentes e individualistas na sua forma de se relacionarem com outras.

 

A masturbação é considerada uma prática adolescente, exploratória; como se fosse um estado incipiente de viver a sexualidade. Sou levada a dizer que não concorda com isto, atendendo ao espaço que lhe garante nos livros…

Mais uma vez, aos homens é permitido muito mais do que à mulher. O pediatra, ao pai e à mãe do menino, diz: não se esqueça de puxar a pilinha para cima, o prepúcio para trás e para a frente – um movimento similar ao masturbatório. É logo uma creditação por parte médica de que é suposto fazer-se isto! A seguir, a criança descobre que, mais do que qualquer action man, o melhor brinquedo que tem é o seu pirilau. No caso das mulheres, a reacção é: «Isso é muito feio, tira a mão, isso não se deve fazer». Como se aquela parte não fosse para tocar.

 

Esse é outro mito: de que a masturbação é, sobretudo, uma coisa de homens.

Há imensas mulheres, de diferentes idades, que nunca se masturbaram. Tive uma pessoa no consultório que foi lá agradecer-me! Tinha 48 anos, já tinha tido uma experiência sexual, mas no seu entendimento puritano a minha conversa sobre masturbação era quase uma agressão. Contudo, experimentou e teve um prazer e um orgasmo como nunca tinha tido. Fez uma descrição sensorial da sua primeira experiência masturbatória de uma enorme beleza poética. Fiquei muito emocionada a ouvi-la. Em relação à masturbação: tenho uma amiga com algum pudor que me dizia: “É preciso explicar como fazer? Cada um sabe de si. Exageras na descrição. Mexe aqui, pancadinha acolá”. De facto, cada um sabe de si. Mas uso a visibilidade que tenho para dar permissão.

 

Como assim?

O primeiro passo é a permissão. E por muito estranho que isto pareça, porque ninguém dá permissão a ninguém, opera-se um clique. A descrição exaustiva tem também que ver com o seguinte: se ela escreve isto tudo, é porque não é porco.

 

A sua amiga dizia que toda a gente sabe como se faz…

Sabe? Não sabe. Senão, não receberia as pessoas que recebo no consultório, e são as mais intelectualizadas. Digo sempre: faça se quiser, se não quiser, não faça. É uma forma de dizer que a masturbação é possível, sem culpabilidade. É uma porta que se abre.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2008