Matilde Campilho
Matilde Campilho é poeta. “Jóquei”, o livro de estreia, foi o livro mais vendido no último festival literário de Paraty. Há quem lhe chama meteorito, há quem lhe chame musa. É bonito mas não chega para dizer o que ela escreve.
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” – Fernando Pessoa. Pode falar-me de alguns dos sonhos do seu mundo?
O que me faz seguir um caminho é precisamente o contrário do sonho. O real é que faz seguir caminho. Aqueles gestos chamados mecânicos, como tomar um café de manhã, ver o jornal, decidir que roupa usar, passar a mão na cabeça dos sobrinhos. Saber dos meus amigos e da minha família. Ler, todos os dias ler os poemas dos outros, as crónicas dos outros, as entrevistas dos outros. O que me faz seguir é a aprendizagem diária. O concreto é que me segura. O sonho e as promessas são importantes, mas são a massa pastosa que junta os alicerces dos dias. Para dormir bem eu preciso do sonho, para sobreviver eu preciso do real. É que o real é cheio de falhas e imprevisibilidades. Acho que as falhas é que fazem a construção.
E o sonho?
O sonho restaura-me as energias e empurra-me para a frente, mas guardo-o para as noites. E a vida faz-se de dia. Digo tudo isto e depois penso em certos livros, nos livros do Borges por exemplo, e penso que estou enganada. Se eu não tivesse lido o “El Aleph” e se não acreditasse em cada palavra, o meu caminho era outro. Então: o real é que me faz seguir, mas o sonho é aquele fiozinho transparente ao qual todos afinal nos seguramos. Porque a vida não pode ser só isto.
O que se aprende nos livros, no cinema, na arte é muito diferente do que se aprende na vida?
Não sei se o que se aprende é diferente, é mais a maneira como se aprende. Vida prática e literatura são duas coisas bem diferentes. Mas acho que determinadas artes são armas de acção. E quando falo de acção não falo sempre de uma coisa violenta, podem ser armas que nos ensinam o sossego. São ferramentas de transformação do concreto. A vida real é outra coisa– é diária, imparável. Eu posso sair do cinema quando quiser, fechar os livros dos outros quando quiser. Da vida eu não posso fugir. Seja como for, com determinados livros eu aprendi a ver o concreto por um outro prisma. “O Som e a Fúria” do Faulkner, por exemplo, é um livro cheio de acontecimentos familiares e banais. Só que não. Porque através das descrições dele, tudo vira uma outra coisa. O Faulkner faz um zoom aos gestos mínimos, como talvez devêssemos nós fazer muitas vezes durantes os dias práticos. A literatura cumpre muitas vezes o papel de desviar o foco do olho para os detalhes, e os detalhes são da maior importância.
Atravessamos um deserto em que todos sabemos o nome do ministro das Finanças alemão ou grego. Antes de mais: considera que é um deserto? Onde fica o oásis?
O oásis fica muito longe do espaço político. É importante, claro, compreendermos o espaço físico e económico em que nos inserimos hoje. Todos pagamos as nossas contas e é preciso que estejamos atentos ao real que nos rodeia. Àqueles que nos governam. Mas este deserto é muito maior do que a política e do que as finanças. E muito maior que a Europa. O mundo atravessa um deserto emocional, ideológico.
Que quer dizer?
Estamos cansados, estamos feridos, e principalmente estamos confusos. Está tudo num ritmo que é muito mais acelerado que a nossa própria respiração, um ritmo que não nos é natural. Parece que agora tudo acontece à nossa frente, à frente dos passos que conseguimos dar. A existir um oásis, ele é interno. O oásis está na serenidade e no foco. Em aceitar fazer uma coisa de cada vez, mais devagar do que nos é pedido. Ninguém consegue fazer uma corrida sem alongar de vez em quando. O mundo, principalmente o mundo ocidental, está preso à corrida. É preciso alongar a cabeça e o coração, é preciso sossegar.
Demasiada conversa e negociação? Selvajaria e domínio dos mais fortes sobre os mais fracos? É tempo de quê?
Mais do que chamar-lhe selvajaria ou domínio, este é o tempo da transição. Isto é muito maior do que um jogo de vencedores e vencidos. Às vezes parece que o mundo está feito um malabarista que não sabe mais para onde ir. É preciso estar atento, fazer silêncio, olhar para a história para que não repitamos uma e outra vez os erros do passado. Estamos assustados, sabemos que está tudo a ficar diferente e o diferente às vezes leva ao medo. O medo é um animal terrível. Mas se ao invés de ficarmos petrificados aproveitarmos toda esta confusão, pode muito bem ser que inauguremos o novo. E o novo, espera-se, é despido desse domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. O mundo ensina muitas coisas. Se ele está tão rebentado é porque certamente nos quer alertar para a mudança.
Se pudesse escrever uma carta a alguém, gritar alguma coisa, seria o quê e a quem?
Faço isso através da literatura, todos os dias. Os poemas também são cartas. São missivas, umas vezes profundamente ficcionais e outras vezes nem tanto. Costumo dizer que só virei poeta porque tinha muitos postais para mandar. Tento escrever sobre o detalhe, para assim devagarinho chegar à verdade e ao grito. O grito não tem que ser necessariamente um acto de violência. A violência não me interessa agora, a verdade sim. A verdade é o que mais me interessa.
“Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, no sol de quase Dezembro, eu vou...”, canta Caetano Veloso. Já não vamos sem lenço, sem documento. Levamos atrás o quê?
Espero que levemos outras partes da canção. Os grandes beijos de amor, as fotos, os nomes, os olhos cheios de cores. É difícil, mas seja como for ainda é Verão. O Verão salva sempre um bocado. As estações do ano têm esta função fundamental de nos lembrar de que muita coisa passa e muita coisa volta. Volta diferente, mas volta. Levemos o verão.
O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?
Tendo em conta o que faço, é impossível dizer que desisti da palavra esperança. O trabalho de um fazedor – quem escreve, quem pinta, quem compõe – é cravejado de esperança. Mesmo quando ela não tem reflexo directo na obra feita, o seu processo leva sempre uma porção disso. Porque o processo de criação é diário, nada nele é imediato. Para se chegar a um objecto final, faz-se e refaz-se constantemente. Isso dá tempo ao pensamento e à inversão do pensamento, logo, à esperança. Não há porque ter medo do futuro. Afinal, ele é sempre outra coisa. A ter medo, às vezes tenho do presente, de não usar bem o meu tempo no presente.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015