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Anabela Mota Ribeiro

Michelle sabe cantar a Grândola

06.08.23

Michelle e Evelyn conheceram-se na infância. Os seus pais, militares da Força Aérea, foram amigos próximos. A relação foi brutalmente interrompida em 1973. Alberto Bachelet foi acusado de traição à pátria e torturado por militares, Fernando Matthei aderiu ao golpe de Pinochet e integrou a Junta Militar. Quarenta anos depois, as duas mulheres defrontaram-se em eleições presidenciais. 

 

1. Ángela

Antes de Michelle Bachelet, foi Ángela Jeria, a sua mãe, que cruzou o átrio do hotel San Francisco. É um hotel de quatro estrelas, com veludos puídos e apliques de latão, que recebe tradicionalmente as campanhas dos candidatos de esquerda. Fica a dois passos do palácio presidencial La Moneda, numa zona da cidade onde as avenidas são largas e se encontram pobres duas ruas atrás. O ambiente não era eufórico. Às nove da noite já era seguro que haveria uma segunda volta das eleições presidenciais. Mas o contentamento de uma vitória folgada misturava-se no ar quente, ouvia-se nos brindes com pisco sour.

A candidata da coligação de esquerda Nueva Mayoria tinha 46, 68% dos votos contra 25, 01% de Evelyn Matthei, a candidata da coligação de direita (Alianza). Os resultados eram avançados pela CNN Chile, visíveis em vários ecrãs.

Ángela Jeria descia do quarto andar onde Michelle Bachelet ainda se encontrava. Era abordada a cada passo, a cada olhar. É uma mulher tesa, de 87 anos, expressão corajosa, quase desafiante. “De Portugal? Vem de Portugal?”, perguntou à repórter da revista 2. “A Michelle sabe cantar a Grândola de cor”.

A Grândola Vila Morena aprendida do outro lado do mundo. Talvez entoada como uma oração. Ou um grito de resistência. Sabida verso a verso. De cor. Uma senha de liberdade. Um sonho.

Quando Portugal celebrava a democracia, Michelle Bachelet tinha 23 anos, estudava medicina e militava no Partido Socialista do Chile. O pai, um general da Força Aérea, havia morrido de ataque cardíaco na prisão, em Março desse ano, na sequência da tortura a que tinha sido sujeito. A fidelidade a Allende e à Constituição, após o golpe de Pinochet, custou-lhe a vida.

Foram a mulher e a filha que reconheceram o corpo nos calabouços do cárcere público de Santiago. As duas mulheres prosseguiram a luta num país em fogo e em Janeiro de 1975 foram presas no centro de tortura Villa Grimaldi. Um ano depois, exilaram-se, primeiro na Austrália, depois na Alemanha.

 

2. Michelle e Carolina

Michelle não é Carla nem Francisca nem Macarena, as personagens da peça de Guillermo Calderón de 2010. Villa é uma hora de agonia emocional e põe três mulheres de 33 anos (ou seja, nascidas no ano do golpe) a discutir o que fazer no espaço antes ocupado pela Villa Grimaldi. Um museu?, um parque?, um centro documental?

“Quando terminou o antigo regime, nenhum presidente foi a correr a Villa Grimaldi, dizendo deixem-me passar. Que crime espantoso. Ai. A partir deste momento, este vai ser o novo umbigo do mundo, o quilómetro zero da justiça. Esta terra. Neste país não se dança mais uma cumbia, não se constrói nenhuma escola, não se borda nenhum pano até que solucionemos o problema desta Villa. Mas não. É como se isto nunca se tivesse passado.”

O texto de Calderón, nascido em 71, um dos dramaturgos mais reputados da sua geração, é uma maneira de interrogar o passado e saber como fechar esta ferida na sociedade chilena.

Três anos após a estreia da peça, o problema a que alude uma das personagens não tem solução. Mas aqueles anos deixaram de ser uma sombra de chumbo de que os mais novos tinham uma notícia pálida.

Os mais novos: os que nasceram depois do plebiscito de 1988, que formalmente afastou Pinochet do poder, e que viveram toda a vida em democracia. Esses, diz Carolina Tohá, a actual presidente da câmara de Santiago, começaram a interpelar os pais. “Quiseram saber o porquê de esta história tão dramática estar tanto tempo submergida. Quando se comemoraram os 10 anos do golpe, estávamos ainda em ditadura. Quando se comemoraram os 20 anos, estávamos numa frágil democracia. Quando se comemoraram os 30, fizeram-se as primeiras acções públicas e abriu-se um debate político. Mas agora, que se comemoraram os 40 anos, abriu-se um debate na sociedade em geral, e em especial nas novas gerações”.

Carolina Tohá nasceu em 65. Tinha oito anos quando o pai, ministro do Interior e da Defesa de Salvador Allende, foi estrangulado, seis meses depois do golpe de Pinochet. Estrangulado. Carolina viveu boa parte da infância exilada. Quando terá adquirido a gravitas que acompanha o discurso, os modos, e que o sorriso constante não apaga? É uma mulher franzina e assertiva. Militou em acções políticas desde a juventude, doutorou-se em Ciência Política em Itália, foi ministra no primeiro mandato de Bachelet (2006/2010).

Se ela podia ser outra coisa que não política? “Podia. Mas teria de ser outra pessoa. Se eu fizesse cinema, seria um cinema político. Se fosse académica, faria uma reflexão política. O meu irmão vive nos EUA, é arquitecto, tem uma cabeça tão política como a minha. A política está entalada na nossa biologia.”

As histórias de Michelle Bachelet e Carolina Tohá não são a mesma história, apesar da cicatriz comum – os seus pais foram vítimas da ditadura. As duas podem encontrar do outro lado do passeio uma personagem sinistra da sua tragédia pessoal. “Antes de se tornar chefe de Estado, Michelle Bachelet costumava ver um dos seus torturadores no elevador do edifício em que morava. Um dia ela disse-lhe: “Eu sei quem o senhor é. Eu não esqueci”. Embora ele nada respondesse, todas as vezes que ela o via, depois disso, o homem baixava a cabeça e ficava olhando para os sapatos. Os tempos mudaram, e o indivíduo no elevador finalmente foi processado e preso”, lê-se no livro A Sombra do Ditador, do político e embaixador chileno Heraldo Muñoz.

Michelle e Carolina encarnam o novo Chile que acerta contas com o passado e consolida a história numa diferente direcção – a democrática. Mas tudo foi ontem e foi há uma eternidade. “Há maneiras distintas de viver a dor e guardar a memória. Quando alguém reconhece outro que o torturou e a sua reacção é encará-lo e gritar-lhe e agredi-lo, não podemos condenar. É humano, profundamente humano. Também é profundamente humano dizer: “A minha forma de julgar-te não é agredir-te. É olhar-te nos olhos e constatar como somos diferentes,” diz Tohá.

A sua voz tem força física, ocupa todo o gabinete de trabalho. Encontramo-nos num sábado de manhã, véspera do dia de eleições (16 de Novembro). A câmara municipal fica na Plaza de Armas, ao lado da imensa catedral e do Paseo de Ahumada. É um ponto nevrálgico da cidade antiga, ruidosa e pobre. Nas galerias comerciais vendem-se próteses, utensílios de todo o tipo, pilhas, relógios, correias de relógios. (Nada se perde, tudo se recupera.) No meio da praça há um coreto onde se joga xadrez ao fim da tarde. Dezenas de tabuleiros, só homens. Há um piano público que convida “Play me, I’m Yours”.

O tema da reparação tem diferentes reverberações quando vivido familiarmente ou no espaço público. Porém, a resposta de Tohá é unívoca. “Eu estou do lado dos que acham que o grande acto de justiça é uma aprendizagem cultural desta história. Que nunca mais possa acontecer que, com a condescendência da sociedade, se matem chilenos. Pinochet morreu sem ser julgado. É uma história com a qual vamos ter que viver. Há casos em curso, como o da morte do meu pai. Há tentativas de encerrar julgamentos. Ou de fazer uma espécie de amnistia. Mas o nosso drama não é só penal. Os nossos familiares morreram e os que os mataram conseguiram deixar uma marca de sangue no país por décadas. Esse é o seu maior triunfo. Eles e o seu projecto continuam a definir os limites do que o nosso país pode fazer, os sonhos que podemos ter.”

Era a primeira vez que ouvíamos a palavra sonho. Não pareceu uma palavra deslocada, mas uma palavra assombrosa. Como uma flor que irrompe do cimento. Onde cabe a palavra sonho no discurso de uma política que perdeu o pai por razões políticas e que fez da política o instrumento para falar da palavra sonho?

 

3. Heraldo

Heraldo Muñoz passou 17 anos a lutar. Participou na resistência à ditadura, foi um dos fundadores do movimento que restabeleceu a democracia no Chile, em 1990. Foi ministro do governo de Ricardo Lagos (2000/2006), publicou o livro de memórias políticas A Sombra do Ditador (2010), é subsecretário geral da ONU e responsável pelo PNUD (o programa da ONU para o desenvolvimento) para a América Latina e Caribe. Quando lhe perguntámos se o passado está enterrado, assumiu um tom contundente. “Não totalmente. É difícil dizer: acabou, esquecemos, olhemos o futuro. Evidentemente uma sociedade não pode viver no passado, e o Chile tem feito um bom exercício no sentido de avançar. Mas estes crimes foram crimes de lesa humanidade. São crimes que não podem ser amnistiados.”

Está em Santiago para votar, vindo de Nova Iorque, onde mora. Acompanha a noite eleitoral no hotel San Francisco. Troca impressões com velhos compagnons de route, com o ex-presidente da Guatemala (que dirá, dias mais tarde, que a grande vantagem de um ex-presidente é poder dizer tudo o que um presidente não pode dizer), circula com elegância entre as várias esferas do poder. Muñoz sabe que é um nome que conta. A participação no governo de Lagos liga-o a um momento histórico da vida do Chile. O lugar que ocupa na ONU destaca-o na esfera internacional. Três dias depois das eleições, apresentou um relatório sobre Crescimento e Insegurança na América Latina, na sede da ONU no Chile.

Ricardo Lagos foi o primeiro socialista a ocupar o palácio presidencial depois do golpe e depois de Pinochet ter garantido que nunca mais um socialista se sentaria em La Moneda. Em termos simbólicos, foi uma vitória retumbante sobre o pinochetismo. Em termos efectivos, foi um governo de mudanças substanciais nos planos político e valorico (como se diz no Chile). Foram expurgados da Constituição os elementos mais militaristas e restituída a autoridade presidencial em relação às forças armadas; foram eliminados os senadores vitalícios; foi introduzida a lei do divórcio, a sodomia deixou de ser crime. O mais importante: provou que era possível manter um bom desempenho económico em democracia. Desse modo derrotou a diabolização da besta comunista que Allende encarnava.

“Vivo no exterior há muitos anos e as pessoas continuam a dizer-me: “Houve assassinatos e violações dos direitos humanos. Mas não foi com Pinochet que começou o milagre chileno?” Em Setembro, quando passavam 40 anos sobre o golpe, escrevi uma crónica para o Washington Post deixando claro que Pinochet não mudou o Chile. O Chile tinha mudado há muito tempo. Antes da ditadura tínhamos um banco central sólido, tínhamos instituições, tínhamos níveis de educação dos mais altos da América latina”, detalha Muñoz em entrevista à revista 2. A ideia de que os resultados em termos económicos e sociais são melhores com um congresso a funcionar e uma imprensa livre tinham sido explicitados no seu livro de 2010: “Os custos sociais das políticas económicas de Pinochet foram imensos. Ele não construiu um único hospital enquanto esteve no poder. (...) O Chile é o país da América Latina que mais cresceu entre 1990 e 2006.”

Estes foram os anos da transição para a democracia, de consolidação da democracia – o pior de todos os sistemas com excepção de todos os outros e que, no caso do Chile, tem sido “vigoroso, mas imperfeito”, na definição de Muñoz. “Não derrotámos militarmente o governo de Pinochet. Foi uma derrota política, num plebiscito. Uma situação idêntica à espanhola. Mas aqui “Franco” [Pinochet] ficou vivo. E não só ficou vivo como ficou chefe do exército. Imagina a transição em Espanha com Franco vivo e chefe do exército? Pinochet tentou ser o poder por trás do trono. Tivemos que negociar muito”.

 

4. Antonio

Foi em 1989, em plena transição para a democracia, que Antonio Skármeta regressou ao Chile. O autor do livro que deu origem ao filme O Carteiro de Pablo Neruda passara os últimos 15 anos exilado na Alemanha. Partira por razões políticas, com o propósito de voltar.

Santiago continuava repleta de ceibos, que em flor assumem uma cor escarlate, e de jacarandás iguais aos de Lisboa. A modernização era notória. Mas havia algo que não era o mesmo. A cara das pessoas tinha mudado. Estava mais crispada, menos exuberante, como se um manto de desconfiança as toldasse. “A energia espiritual, a espontaneidade, haviam sido mitigados. Pareceu-me que tinham transformado o Chile num país convencional. Era um período de uma repressão fina e cínica, mas sistemática, unida a uma abertura e tolerância, que trabalhei muito nos meus livros. Viver em águas turbulentas requer uma técnica muito especial...”

O que Antonio Skármeta viu quando regressou foi a expressão do medo. Um medo incorporado, nem sempre consciente, que ficou como uma membrana pela qual não se dá.

Passaram quase 25 anos desde o regresso. Falámos no seu gabinete de trabalho, ao lado do jardim, ao lado de casa. Cirandam por ali um gato que parece feroz e um cão que tem o pêlo de um peluche. Tudo ao contrário, uma estranheza boa. No gabinete há livros, memorabilia de O Carteiro, papéis.

“O medo era uma coisa que nós, os que vínhamos de fora, notávamos. Os que tinham ficado, acostumaram-se. Agora o país está estabilizado, a democracia está consolidada. Mas sabe como é uma casa que está degradada e que antes tinha uma cor colorida? É isso. É um país marcado pela prudência. Os chilenos puseram-se limites.” Os anos do governo de Allende foram o desregramento, a ausência de limites? “Não. Quando falava de energia criativa, não falava do período Allende. Os anos de Allende foram uma exacerbação disso. É preciso notar que o golpe de 73 é um golpe contra toda a tradição democrática chilena. Não é só um golpe contra um governo socialista que estava no poder há três anos.”

Skármeta também sabe cantar a Grândola, símbolo de terra de fraternidade. Canta alguns versos com a sua voz tonitruante, faz o corpo andar de um lado para o outro, como um pêndulo, como um alentejano da terra. Nesse momento ele é do povo, quer ser do povo. Alimenta-se de um “horizonte épico” que desapareceu da esquerda. “A palavra mais significativa que desapareceu do vocabulário político é “povo”. Desapareceu completamente! Agora diz-se “gente”. “É o que a gente quer”. “Há que estar ao lado da gente”. “Oiçamos o que a gente diz”. Recentemente escrevi um artigo e dei-me o prazer de escrever “povo” – conclui, com um riso provocador.

Povo é uma palavra com peso ideológico. Não é fácil encaixá-la no léxico reformista mas não revolucionário de Michelle Bachelet. Quem quer uma revolução no Chile? “Outra palavra que deixou de se usar: revolução”, aponta Skármeta. Ainda assim, a Alianza, a coligação encabeçada por Evelyn Matthei, usa esse fantasma para agitar o centro-direita que confia na temperança de Bachelet. É no centro que se joga o destino eleitoral. Não é despiciendo que na primeira volta um candidato à esquerda de Bachelet e um candidato à direita de Matthei tenham conquistado cerca de 10% dos votos, cada. Um quinto do eleitorado estava com eles, mas os dois juntos não obtiveram tantos votos quantos os de Matthei, e Matthei teve um dos piores resultados eleitorais da história da direita chilena (25, 01% foi a votação final).   

 

5. Victor

Skármeta saiu do Chile no ano em que se fundava em Portugal a Brigada Victor Jara. Saber da existência de uma banda que presta tributo ao músico e activista iluminou a cara do escritor. Foi quando cantou Grândola Vila Morena que lho dissemos.

Victor Jara morreu com 44 disparos no corpo no dia 15 de Setembro de 73. Quarenta e quatro. Quatro dias depois do golpe. Foi preso no Estádio Chile, com milhares de dissidentes, em grande parte estudantes e professores universitários, torturado e fuzilado. O seu corpo foi atirado para uma valeta. Tinha quarenta anos e um álbum chamado El Derecho de Vivir en Paz.

Oito oficiais foram acusados do seu assassinato. O principal vive nos Estados Unidos. A extradição foi pedida a despeito de o então tenente ser casado com uma americana (o que torna praticamente impossível a extradição). A acusação foi formalmente feita no final do ano passado, 39 anos depois. Trinta e nove anos.

O Estádio é um dos locais de voto mais populares de Santiago. Votam ali 68 mil eleitores distribuídos por 180 mesas de voto. São duas da tarde do dia 17 de Novembro, o calor está nos 26 graus. A circundar o estádio há militares de camuflado, postos da Cruz Vermelha, activistas que lembram os muertos invisibles. A afluência às urnas não é extraordinária. (A abstenção será próxima dos 50%.) Alguns poucos milhares de pessoas circulam com a descontracção de quem vai ao futebol. Votam porque querem votar. (É a primeira vez numas eleições presidenciais que o voto não é obrigatório.) Além das eleições presidenciais, há eleições para o senado, o parlamento e para conselheiros regionais. As urnas são de madeira, têm uma parede transparente e é possível ver a quantidade de votos que se amontoam. As mesas e as cabines sucedem-se ao redor do estádio, debaixo de um anel de betão. Lá dentro é o recinto de jogos, as bancadas, aquilo que há quarenta anos foi um campo de concentração. Mas é impossível visitá-lo naquele dia.

 

6. Pinochet e o pinochetismo

O golpe foi há 40 anos, o fim do pinochetismo formalmente aconteceu há 25 anos. Mas já aconteceu de facto? Desmontar pedra a pedra o pinochetismo teve marcos significativos. Um dos pilares, considera Heraldo Muñoz, derrocou em 2005 quando Pinochet foi preso por fraude fiscal e falsificação de passaporte. “Pela primeira vez, era processado e preso por acusações que nada tinham a ver com direitos humanos. Alguns pensaram estar testemunhando uma situação tipo Al Capone... (...) O caso custou a Pinochet grande parte do seu apoio entre políticos e empresários conservadores. No Chile, o país menos corrupto da América Latina, roubar era considerado um crime mais grave, digamos, do que ser indirectamente responsável pelo assassinato de presos políticos” (A Sombra do Ditador).

Antonio Skármeta destitui de importância real o pinochetismo. “Se houver uma missa para Pinochet, ainda encontrará 150 velhas e três jovens. Mas o pinochetismo acabou-se quando os partidos de direita aceitaram o jogo democrático. Falo dos grandes partidos, a UDI (Unión Demócrata Independente) e o Renovación Nacional. Há três, quatro anos, numas eleições municipais, neste bairro, que é um dos mais ricos do Chile, e completamente de direita, apresentou-se como candidato a um cargo de conselheiro um neto de Pinochet. O seu único lema era: sou neto de Pinochet. Não o aceitaram no Renovación Nacional nem na UDI. Apresentou-se isolado. Não conquistou mais do que 800 votos, coisa assim.”

Apesar desta recusa, sintomática de um desapego emocional que a classe abastada tem em relação ao pinochetismo, há uma sombra de Pinochet sobre a vida do Chile. Está expressa na Constituição e no sistema político binominal.

Resumido a traço grosso, este sistema eleitoral obriga a que haja dois candidatos por círculo. A coligação que tiver 33,4% tem tantos deputados e senadores eleitos quanto a coligação que tiver 66,6%. Na prática, o mecanismo impede que mudanças estruturais sejam aprovadas e concretizadas. Uma proposta menos consensual esbarra na força hercúlea da oposição.

O sistema político binominal foi imposto por Pinochet após a derrota no plebiscito de 88. O jogo continuou a ser jogado consoante as suas regras. “Foi o golpe legal de Pinochet. Um golpe genial”, acusa Skármeta. Um segundo golpe, depois do golpe militar de 73, que mantém a esquerda refém do seu jogo político 25 anos depois.

Carolina Tohá faz uma pequena pausa quando lhe perguntamos se o fim do pinochetismo já aconteceu. “Nos últimos meses viveu-se um dos capítulos mais importantes: a derrota do esforço que foi feito para matar a memória. Neste aniversário [Setembro 2013], o tema entrou massivamente nos meios de comunicação de todo o tipo”. O tema entrou inclusive em séries de televisão e documentários que abordavam o impacto emocional que o golpe teve nas famílias chilenas. Um passo na lua.  

Mas o grande passo talvez tenha sido dado pela direita, que começou a fazer um exame da herança pinochetista. Não a direita militar, mas a direita política, especifica Tohá. “Os protagonistas interpelados são os militares que exerceram directamente a repressão. Mas o suporte político deste governo ficou invisível. Esses políticos são os predecessores dos actuais políticos de direita. E alguns – muito poucos, mas relevantes – fizeram condenações categóricas. Afirmaram que havia uma responsabilidade por assumir.”

O presidente cessante Sebastián Piñera foi um desses quando falou de “cúmplices passivos” em Setembro passado. Um discurso audaz que não foi acompanhado pelo seu partido de centro-direita, o Renovación Nacional. “Nenhum dos candidatos de direita, nas primárias, se atreveu a dizer que o governo de Pinochet foi uma ditadura”, recorda a alcaldesa de Santiago tocando num ponto sensível. Falar de “ditadura” ou “governo militar” não é uma questão semântica.  

 

7. Lily e Evelyn

A senadora de direita Lily Peréz usa a expressão “governo militar” para se referir aos anos de Pinochet. Vamos ao seu encontro na sede de campanha de Evelyn Matthei, no hemisfério da cidade onde se situa o poder económico. É aí que ficam os bairros Providencia, Vitacura e Las Condes, com os seus edifícios espelhados e vivendas resguardadas por um muro. Nas ruas não se encontram índios mapuches nem homens pobres a engraxar sapatos. As pessoas têm (ou gostariam de ter) o ar lustroso de Evelyn Matthei. Os cartazes dependurados nas árvores ou nos edifícios são quase exclusivamente de candidatos de direita. Não é raro ver um cartaz de Michelle com a cara desta recortada. Explicam-nos que o vandalismo eleitoral é frequente e acontece dos dois lados da barricada.  

A sede é uma casa alugada para o efeito, com dois pisos, em frente à sede da UDI, o partido de Matthei. Lily é a porta voz da campanha e dá uma conferência de imprensa quando chegamos. Explica qual vai ser o calendário da sua candidata e tenta disfarçar o desalento que está no ar. As sondagens são catastróficas.

A entrevista com Lily não era sobre Evelyn. A senadora do Renovación Nacional, que proclama ser a mais liberal dos senadores do seu partido, não tentou desviar a conversa para a campanha ou para questões políticas imediatas. O grande tema era o momento de definição que a direita atravessa. “O mês de Setembro e estas eleições, independentemente dos resultados, vão implicar uma crise profunda e uma revisão sobre o lugar onde nos encontramos” começa por dizer.

Talvez por ser uma entrevista a um órgão de comunicação estrangeiro, Lily foi especialmente crítica em relação ao seu partido e à UDI, os partidos que apoiam a candidatura de que é porta-voz. “O que me decepcionou nos últimos anos foi o meu sector político.” Parece uma pessoa que traz um fato que sabe que não é o seu, mas que não pode despir completamente. Cola-se “100%” a Piñera no tom que o presidente assumiu em Setembro (além de falar de cúmplices passivos, Piñera encerrou a Penal Cordillera, uma cadeia exclusivamente dedicada a militares acusados de violação dos direitos humanos) mas não é capaz de usar a palavra “ditadura” para se referir ao pinochetismo.

A escolha de palavras não é aleatória. Mas o fervor com que é discutida diz respeito sobretudo ao sector político, pensa Lily. “As pessoas estão mais reconciliadas do que a sua classe política. Há pessoas de direita que votam em Bachelet. Houve pessoas de esquerda que votaram em Piñera (que ganhou com 53% em 2010).” O que falta então fazer para sanar este conflito ideológico? “É preciso que tenhamos um diagnóstico comum. Que não existe, de todo. Um diagnóstico que explicite que existiu violência política, que o golpe militar produziu violação de direitos humanos, que houve tortura, exílio, prisões. Há elementos de esquerda que justificam as acções de luta armada [nos anos subsequentes ao golpe]. Já são poucos os elementos de direita que justificam a violação de direitos humanos.”

O discurso da senadora Lily Peréz aponta numa direcção: destrinçar pinochetismo e direita. Não são equivalentes, mesmo que tenham coincidido ou que episodicamente coincidam. “O pinochetismo não é a direita. É um sector da população. É um sentir de algumas pessoas que viveram em carne viva os maus momentos do governo de Allende. Mas não são pessoas que ideologicamente sejam de direita. Não sei qual é o voto que identifica o pinochetismo duro... O voto é um fenómeno muito mais social do que político. No fundo, depende do candidato.”

Lily Peréz e Evelyn Matthei não defendem uma nova Constituição. “As reformas constitucionais que se fizeram foram as necessárias”, defende a senadora. Todas as intervenções da candidata presidencial são no mesmo sentido.

A esquerda considera que esta Constituição, no essencial, e apesar de todas as alterações que foram introduzidas, continua a ser a que Pinochet escreveu. Michelle Bachelet fez desta uma das linhas do seu discurso eleitoral. Os outros dois pontos foram reforma tributária e educação gratuita. (Na apresentação do relatório da ONU que coordenou, Heraldo Muñoz foi minucioso: “A educação universitária chilena é a mais cara do mundo! Os protestos [dos últimos anos] não são só dos estudantes, são também dos pais dos estudantes, que se endividam para pagar uma educação tão cara e de má qualidade.”)  

Há um aspecto em que Lily está ao lado da esquerda: a urgência de mudar o sistema político: “Os círculos binominais têm artificialmente dividido o país em duas metades”. Porque é que não se muda? Porque para isso é preciso ter uma maioria altamente qualificada (26 em 38 senadores e 81 em 120 deputados) para mudar a lei e a Constituição.

 

8. Michelle

Este domingo, 15 de Dezembro, é a primeira vez na história do Chile que duas mulheres estão na segunda volta das eleições presidenciais. É também a primeira vez que a direita está nas eleições presidenciais com uma candidata mulher. Não é um detalhe num país que tem “cafés com pernas”. Quer dizer, cafés frequentados por homens onde as mulheres atendem com micro-saias e sapatos vertiginosos.   

Um taxista explica-nos porque são duas mulheres que concorrem. “Porque as mulheres não roubam. Os homens roubam um bocadinho”. A mulher é a mãe de família, e numa sociedade tão tradicional e machista quanto a chilena, esse valor é importante. O taxista votará em Evelyn, ainda que considere que Michelle fez um bom trabalho no primeiro mandato (a Constituição não permite que os mandatos sejam consecutivos). “Pero a mí me encanta la derecha.”

Pode não ser só conversa de taxista. Pode ser que estas eleições, onde duas mulheres se apresentam, representem também a derrota de um período militar, masculino, com mácula. O que fica desses anos? Fica a perda da inocência para milhares de chilenos, cicatrizes emocionais que acompanham milhares de famílias. Segundo os relatórios da Comissão de Verdade e Reconciliação (conhecido como relatório Rettig) e a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura (relatório Valech), o número de vítimas directas da violação dos direitos humanos no Chile ascende aos 35 mil. Trinta e Cinco mil. Presos, perseguidos, desaparecidos, torturados, mortos. Camponeses, professores universitários, estudantes, militares, donas de casa. Pessoas iguais a outras pessoas.

Quando Michelle surgiu no espectro político, era uma pediatra socialista que Ricardo Lagos convidava para o Ministério da Saúde. Lagos lançou-lhe um repto impossível: terminar com as listas de espera nos hospitais públicos em 90 dias. No nonagésimo dia, Michelle reconheceu não ter sido capaz de acabar com o problema. Havia 750 mil operações em espera, baixou o número em 90%, ainda assim não cumpriu o pedido. Pôs o lugar à disposição. De repente, os chilenos deram por esta mulher que renunciava ao cargo por não ter sido capaz de resolver integralmente um problema que se tinha proposto resolver.

Depois houve a transição para a pasta da Defesa e uma fotografia que se converteu num símbolo da reconciliação nacional. Michelle, a pediatra socialista, torturada em Villa Grimaldi, filha de um militar morto pelos militares, chefia os militares, e está, num cenário de catástrofe natural, ao lado de militares, envergando um fato militar, num carro militar. Era uma metáfora do tempo que aí vinha. Que já era, incipientemente. Mas que já era, e que prometia muito. Não tudo, mas muito.

No táxi, o rádio emite anúncios das candidatas. A voz de Evelyn tem uma tonalidade dura e metálica, uma oscilação nervosa. A voz de Michelle é quente e maternal. “Chamo todas as pessoas moderadas, que não acham que é preciso fazer uma reforma completa da Constituição, que não acham que é preciso deitar abaixo a casa, a votar no número 7”, diz a candidata de direita. Michelle não se desvia do seu âmago e faz com que só se ouça a palavra desigualdade. O crescimento económico imparável, situado entre os 5 e os 6%, não é suficiente para resolver o problema – “a principal ferida do nosso país”, diagnosticou ela no comício de encerramento da campanha.

(A América Latina, diz Heraldo Muñoz, é região mais desigual do mundo. Não a mais pobre, mas a mais desigual. E ainda que o Chile seja o menos desigual dos países da América Latina, é mais desigual do que Portugal, que até à entrada da Bulgária e da Roménia era o país mais desigual da União Europeia.)

A não ser que se abata um cataclismo sobre a Primavera chilena, não é expectável que Michelle Bachelet não saia presidente destas eleições. Além de cumprir as promessas eleitorais, tem como tarefa para os próximos anos devolver o sonho a diferentes gerações de chilenos.

O sonho. Palavra assombrosa. Que durante anos pareceu deslocada. 

O dramaturgo Guillermo Calderón, a quem o teatro serve para pensar, resume o sentimento de muitos. “A diferença que tenho com a geração dos meus pais é que eles, sim, conheceram a democracia. Eu, ao contrário, cresci em ditadura. Eles queriam recuperar algo perdido. Mas eu sempre quis algo imaginário, que nunca vivi. Talvez por isso, o Chile nunca chegará a ser o que eu quero”.  

O que quer Michelle para o Chile? Talvez seja o mesmo que Michelle quer para si, honrando o pai, suturando o passado. A sua provável vitória não será uma vitória de uma mulher sobre um homem..., e talvez sim, talvez seja, se esse homem for Pinochet. Também é a vitória de uma mulher sobre outra mulher que tem manchas do passado. É seguramente a vitória de um tempo que supera outro. Uma forma de continuar a dizer “No”.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013