Miguel Portas (1999)
Em Fevereiro deste ano deu uma entrevista onde dizia que a política seria para si uma coisa passageira. Depois da experiência das eleições europeias, mantém esta convicção?
Sim. Concebo a política feita a tempo inteiro como comissão de serviço, não como profissão. Pode durar um ano, dois anos, três anos, um mandato parlamentar até. Mas a política em mim não é passageira, é absolutamente permanente. No sentido profissional é que é temporária.
Tem ambição de exercer cargos políticos?
Não. Explicando melhor, é evidente que só faz política quem de alguma forma gosta do palco. Não sou excepção. O que acontece é que tenho mais medo do palco do que gosto do palco.
Como se sente quando está no palco?
Tenho a noção clara, na política e noutras áreas que são de palco, envolve potencialmente um enorme risco de embriaguez. Depende das características de cada um, as fases de embriaguez são muito diferentes de pessoa para pessoa. Mas que o uso do poder, não para administrar as coisas mas para administrar as pessoas, é muito tentador e pode e transforma as pessoas que o fazem, disse não tenho dúvida nenhuma. Por isso defendo-me.
O exercício do poder pode criar vícios, é o que está a dizer?
Cria seguramente. Cria menos se uma pessoa estiver atenta, se se conhecer bem na relação com esse vício. Porque os vícios, em princípio, podem-se controlar.
Importa-se de especificar a diferença em gerir pessoas e coisas?
É talvez uma questão chave da política. A política deveria ser não a administração das pessoas mas das coisas. Do que hoje se trata é de administrar pessoas. A política enquanto exercício do poder contém perigos muito fortes, de que a democracia é uma contra-tendência, mas onde as possibilidades de manipulação são imensas.
Se bem percebo, as coisas existem para servir as pessoas.
Penso que a política deveria administrar as coisas e intrometer-se o mínimo possível na cabeça das pessoa e na forma como se organizam as pessoas para fazer as coisas. Estou um pouco filosófico.
Consegue concretizar?
É praticamente irresistível para um ministro ou vereador não usar o poder da decisão do dinheiro para construir a sua base social de apoio, a sua clientela. Usar o dinheiro, então, não para o conjunto das coisas que se querem fazer, mas para que o conjunto de apoios se possa estabelecer. Na minha opinião, só vale a pena fazer política (enquanto exercício do poder), se for para distribuir o poder para baixo e não para o reconcentrar em cima.
Acontecem frequentemente problemas de comunicação entre o baixo e o cima.
É evidente que problemas de comunicação têm de se colocar. A política (enquanto exercício do poder) permite um volume de informação e conhecimento que não estão disponíveis para quem está apenas na posição do protesto. Mas a politica em cima, se permite um maior conhecimento, aumenta brutalmente a responsabilidade. Saber para que se quer o poder e de como se pode distribuir o poder, é um problema central à Esquerda.
Como é que se pode distribuir o poder?
De duas maneiras: pelo que se faz. (Se as pessoas passarem a ter melhores condições de vida, mais decência na sua vida, tendem a ganhar mais auto-estima e a tornarem-se mais exigentes. É um enorme equívoco pensar que a miséria é uma fonte de exigência. Em regra, é a grande fonte de submissão).
Evidentemente, vulnerabiliza.
Fazer coisas para as pessoas, é uma forma de dar poder. Há uma segunda que é talvez mais qualitativa e a mais importante para o futuro: dar precisamente a essas pessoas o poder de serem elas a fazer, com apoio. Quando falo em distribuir poder, é exactamente isto. Ligar o Estado e a Sociedade significa em certo sentido aumentar a inutilidade do Estado. Porque ele se transforma, de instrumento de opressão e regulação, em instrumento de apoio a processos de libertação.
Estava a lembrar-me da sua longa passagem pelo PC onde as pessoas não se expressavam democraticamente.
Expressavam.
Ah, sim? Pensei que fossem justamente essas dificuldades de expressão que estivessem na origem da sua saída.
Foi uma das causas; mas não era o facto de não me deixarem falar.
Falo da possibilidade de estar em desacordo.
Sempre disse no PC o que quis, nunca fui impedido de falar.
Mas quando esteve demasiado em desacordo saiu.
O problema não foi terem-me cortado o pio. Quando me perguntam «Porque é que saiu do PC?», costumo dizer que a boa pergunta é «Porque é que estive lá 18 anos».
Importa-se de responder a uma e a outra?
As razões porque saí, e porque estou hoje no Bloco de Esquerda, são exactamente as mesmas que me levaram a estar 18 anos no PC: dar o meu contributo possível para que a Esquerda não morra de velha em Portugal. Esquerda política, porque Esquerda social e cultural haverá sempre. Onde é que há Esquerda política nos Estados Unidos ou em Inglaterra?
Faz sentido depois do ruir de todo o Leste?
O que foi uma enorme “catastroica”, pode ser a possibilidade de reconstruir um ponto de partida interessante.
Minado pelo capitalismo.
Mas repare, o socialismo, o comunismo, a ecologia, os modos diferentes de vida, eles já existem no capitalismo. A sociedade do futuro já se pode encontrar na sociedade de hoje. Da internet ao sindicato, à associação cultural, a uma vida ecologicamente decente. Não são praticados socialmente por todas as pessoas. São em regra mais por minorias que por maiorias, mas está cá tudo. Neste imenso caldeirão já cá está o socialismo, o socialismo a sério, não é o xoxialismo com dois xx.
O marxismo que reclama para si, esta Esquerda, decorre também da experiência dos últimos anos e da falência do modelo de Leste?
Quando entrei no Partido Comunista já era contra a intervenção na Checoslováquia. Nunca fui pró-soviético. Há pessoas que entram no Partido Comunista porque naturalmente é o partido delas. Vai para o Alentejo, por exemplo, e em princípio é-se comunista.
Carneirismo?
Não é carneirismo, é o «1900» do Bertolucci. É capilar. É a casa do povo e é ao mesmo tempo a tasca e a sede do partido; é uma forma de vida comunitária que parte de uma situação material, a do trabalho, em condições de latifúndio. Aqui a adesão é natural, digamos assim. Não era o meu caso. Sou uma pessoa de média burguesia, filho de pais intelectuais, ou ditos assim, portanto a adesão fez-se pelas ideias: o que é justo, o que não é justo, necessário ou não necessário, o que é o meu dever.
Dever porquê? Você diz que a política é um dever.
É, é um dever para mim. O Paulo Varela Gomes, um grande amigo meu, dizia que há três maneiras de se viver: como se pode, como se quer ou como se deve, e que a tradição dos comunistas é viver como se deve! [risos]. O que dá que às vezes sou difícil de aturar! Tem muito que ver com este sentido: eu existo neste mundo ou nesta cidade e o que é que quero para o conjunto das pessoas independentemente do que quero para mim. Em que mundo é que poderia gostar de viver. (Este é o primeiro gesto e é um gesto intelectual). Vou para o Partido Comunista porque era ali que estavam as pessoas com quem queria transformar o mundo, tão simples como isto. Mesmo que não estivesse inteiramente de acordo com o parceiro do lado. Se quiser, não mudei de opinião sobre o assunto. As pessoas que estão no PC, sozinhas, não creio que possam ir a nenhum lado; mas continuo a não querer transformar o mundo sem aquelas pessoas.
Não troquei de povo, saí do PC mas continuo no mesmo sítio. Digamos que sou uma marxista crítico; sempre fui razoavelmente heterodoxo lá dentro e continuo a ser cá fora.
Essa heterodoxia foi-lhe fácil lá dentro, em 18 anos?
Foi. Quando lhe disse que nunca fui impedido de dizer o que pensava lá dentro, é para repor a verdade dos factos. Mas havia um outro facto: quando as divergências políticas eram de monta, quem estivesse em desacordo com a linha decidida pela direcção, não tinha meio de comunicar ao conjunto do Partido essa discordância. Se me pergunta se o PC é um partido democrático, no sentido de ser possível discutir duas, três alternativas de linha política, abertamente, num colectivo de uns milhares de pessoas, digo-lhe que não.
Isto é uma democracia mas quem manda aqui sou eu?
Tem algo que ver com isso. A impossibilidade de formação de tendências que se agrupam à volta de plataformas políticas. O Partido Comunista é hoje dos últimos PC, haverá mais dois ou três no mundo, que ainda funcionam deste modo. Todos os outros funcionam de maneira a que quando há divergências elas possam ser discutidas organizadamente e não dramaticamente. O PC português não é assim. Vai acabar por ser.
Com a morte do Dr. Cunhal?
Até provavelmente antes, é inevitável. Não há modo de um corpo como aquele se poder aguentar propondo para a sociedade democracia e depois lá dentro não procurando executar uma democracia comparável. Não consegue convencer as pessoas. Há aqui um pequeno equívoco. O outro problema é prático. Tudo o que aconteceu no Leste, o fim do socialismo real, mesmo num partido como o português, é impensável que aquelas pessoas continuem todas a pensar como pensavam.
Que resíduos existem em si dessa longa convivência com o PC?
Os melhores!, aliás como se percebe. Quando saio do PC passo a ser um comunista sem partido. Quando estou no Bloco, não nego este meu passado, transporto-o por inteiro; até nas coisas menos elegantes, porque terei feito coisas menos elegantes na vida. Transporto histórias que não me pertencem. O Estalinismo faz parte da minha história.
Pensa que os crimes do Estalinismo são equiparáveis aos do Nazismo?
Um crime é um crime. O Estaline não é um criminoso menor que o Hitler. Mas o problema não é criminal, é político. O Estaline cometeu uma imensidade de crimes, a começar pela matança geral dos melhores comunistas do partido bolchevique, portanto é um criminoso sem apelo nem agravo. A diferença é que provavelmente devemos à União Soviética e àquele partido, o facto de a Humanidade poder hoje discutir o seu futuro. O Nazismo era um projecto de extermínio racial e de estabelecimento de uma superioridade rácica sobre o conjunto do planeta. Não tem nada que ver com a luta entre ideologias, entre capitalismo e socialismo. Isto não absolve em nada o Estaline, mas estabelece a diferença entre o Hitler e o Estaline.
Leu o «Crime e Castigo» de Dostoievski?
Li há muito tempo.
A ideia que perpassa o livro é a da absolvição do mal. Raskolnikov, o personagem central, mata uma velha usurária à machadada e talvez nenhum castigo fosse suficientemente forte se comparado com a consciência atormentada pelo crime hediondo que cometera. Ou seja, como é que convivemos com os nossos crimes, com as nossas partes hediondas.
Confesso que durmo bem, razoavelmente bem. Admito que haja alguma insensibilização. Terei feito asneiras, não cometi crimes, apesar de tudo; aprende-se com a vida, procuramos não repetir as mesmas coisas. Depois também relativizamos os crimes do Estalinismo. E essa degenerescência abismal, desastrosa, da ideia inicial conviveu em permanência com outros sistemas de crime organizado. O próprio fascismo é um produto do capitalismo. Toda a história da humanidade tem sido uma dura luta para sairmos do estado da barbárie. Mas a violência tem sido a condição natural da nossa vida.
A violência do caos necessária ao restabelecimento da ordem?
Toda a história do mundo é uma história de violência. O que há de interessante e preocupante no século XX é que é sem dúvida o mais violento dos séculos. Em termos absolutos, nunca se matou, violentou tanta gente como neste século.
Mata-se em nome de causas.
Sempre se matou. As causas prendem-se com a condição humana da sobrevivência. Ainda não atingimos os patamares em que a grande maioria pode fazer mais que tentar sobreviver. Não é por acaso que em África as condições de luta são incomensuravelmente violentas; é a pura luta pela sobrevivência. Isto é a história do homem. A história do século XX coloca esta coisa espantosa: é de longe aquele que mata mais quando teria em tese condições para ser aquele que melhor poderia tratar das pessoas. O grande factor variável é o aumento populacional.
Agrava-se a assimetria norte-sul.
Quando no Bloco, no documento inicial de fundação, colocávamos a alternativa barbárie ou civilização; a verdadeira alternativa que temos hoje para o próximo século é a de uma barbárie tecnológica, uma barbárie de um imenso gueto de ricos num primeiro mundo, pequenino e não só autofágico como absolutamente vampirizador do planeta, ou a possibilidade de um contrato de civilização. Esta opção nos seus grandes termos, põe-se à escala planetária e põe-se à escala de cada país. Por muito que isto possa parecer uma conversa de doidos, basta ver a televisão com atenção.
Continua a acreditar em utopias?
O papel da utopia é indispensável, até porque não há alternativa. Convém tratar a utopia com algum cuidado, porque a vulgata do marxismo transformou a utopia numa coisa perigosa. A vulgata marxista dizia «A gente chega lá de certeza»; era um destino obrigatório, um fim, e quaisquer meios que se empregassem se justificavam para atingir o paraíso.
É perigoso por legitimar, por exemplo, o Estalinismo.
Legitima os crimes, em nome de ideais podem-se cometer crimes. A utopia é importante não para amanhã mas para hoje, se tomar a utopia não como uma finalidade mas como horizonte. Quando pensa como é que hoje se combate o desemprego, só pode fazer de duas maneiras: admitindo como natural a ordem social que está estabelecida, cuja resposta é «Diminuam-se os custos para que as empresas façam mais negócio e empreguem mais gente», e isto acaba num mercado à americana, (um mercado de recibos verdes com uma segurança social em que cada um trata da sua). Ou então precisa de um horizonte, de um objectivo social, que é «Não é justo que haja pessoas que não podem trabalhar e não é justo que haja pessoas que trabalhem em condições infra-humanas». Temos mesmo de resolver isto.
A vossa proposta é revolucionária ou reformista?
É uma polémica com pouco sentido nos dias que correm. Eu diria que um bom revolucionário é o que consegue as melhores reformas! Ser revolucionário hoje é tentar convencer a sociedade da urgência de um conjunto de reformas que no seu conjunto estabelecem uma mudança civilizacional. Esse contrato de civilização, que é uma ruptura com a ordem neo-liberal, pode ser maioritário na sociedade; é exequível e aproxima-nos da ideia do socialismo.
Exequível? Um projecto como o do Bloco não faz muito mais sentido enquanto movimento contestatário que enquanto projecto que se predispõe para o poder?
Durante os próximos largos anos, seremos uma força de Oposição. Fundamentalmente o que interessa é como rompemos com o que é a tradição da Oposição até à esquerda. Ou seja, como é dois, três, quatro deputados, que é o que realisticamente é possível ter em Outubro, podem valer por 40 ou 50.
Diga lá.
Dou-lhe um exemplo: Esta questão da segurança no trabalho, dos contratos a prazo. O PS quer que passem para 4 anos. Nós achamos razoável que uma pessoa tenha um ano de trabalho à experiência e depois passe a uma situação de trabalho normal. Temos três maneiras de levar este assunto ao parlamento: apresentamos uma proposta e o parlamento maioritariamente vota que não; daqui a quatro anos chego-me à televisão, eu ou outro, a dizer «Nós propusemos mas eles não quiserem».
Olhe que o PSD até editou um livro com as promessas não cumpridas. Sem grandes resultados, pelo que se sabe.
Eles votaram tudo o que era essencial do PS.
Olha para o PS e PSD como um alegre pandilha que vota em consonância no que é essencial?
É evidente que são, independentemente de haver lá gente séria. Esta forma de governo ao centro é uma imensa fraude.
Voltemos à questão: como é que com dois, três, quatro deputados esperam valer por 50? O vosso parceiro preferencial vai ser o PC?
Não vamos ter parceiro preferencial. É natural que o PC seja o parceiro preferencial, porque vai votar connosco e nós com eles seguramente muitas propostas parlamentares. A renovação da Esquerda depende da capacidade de superar a lógica de estados maiores e de confrontar os deputados mesmo do PS com responsabilidades incontornáveis. Há mais duas maneiras de fazer isto.
A saber.
Temos consagrado na Constituição o direito de iniciativa legislativa popular. Se em vez de ser o Bloco, com os seus 2, 3, 4 deputados, ou o PC, com os seus 10, 12, 15, a apresentar um projecto sobre o sigilo bancário ou os contratos a prazo, porque não hão-de ser 75 mil cidadãos?
Está a esquecer a estrondosa abstenção dos dois referendos?
Isso é para o parlamento. Estou a falar de iniciativa legislativa popular. Se for uma campanha de 4, 5, 6 meses, com assinaturas na rua, movimento de cidadãos...
Como é que espera mobilizar as pessoas? Como é que espera que se pague tudo o que isso custa?
É uma forma extremamente barata de se poder fazer política a sério, na rua, com as pessoas. E há outra maneira ainda que é recorrer ao referendo. Uma das principais questões da Esquerda é saber restabelecer os laços entre a política e o social. Não podemos deixar cair as causas por que nos batemos e convocar as pessoas que estão de acordo com essas causas para se envolverem elas próprias. Não quero que se grite «Miguel Portas!» como ontem em Ramalde. Não lhes podia dizer, porque seria deselegante, que não precisam de gritar por mim, precisam é de acreditar suficientemente nelas mesmas. Só temos uma maneira de renovar a política em profundidade, dela não ser esta coisa de profissionais, de representantes, e de ela ser apropriável pelas pessoas normais: chamá-las. Aliás foi isso que foram os partidos políticos no princípio do século, tudo isto está inventado. A possibilidade de um analfabeto entrar num partido e também poder decidir, é uma coisa secular.
Curiosamente o Bloco está cheio de intelectuais.
Não só. O Bloco é em ponto pequeno uma Esquerda unida à esquerda da governação. Os intelectuais são claramente minoritários no Bloco. Há muitos sindicalistas, estudantes, uma base operária bastante razoável, vinda da UDP. Mais de metade do Bloco são independentes. Muitas dessas pessoas têm entre 35 e 45 anos e já foram várias coisas. Vêm ver se desta vez é a sério. Portanto, o Bloco é muito mais transversal do que parece.
Também para si é finalmente O seu projecto? Foi ensaiando várias coisas, está mergulhado na política desde os tempos das associações de estudantes.
O Bloco é seriamente o projecto mais importante de tentativa de renovação da Esquerda em Portugal desde o 25 de Abril, e mesmo pessoalizando é o mais importante. Se tivesse de dizer dois momentos importantes da minha vida política, um foi a entrada no PC, o outro é a formação do Bloco. Ninguém pode dizer o que vai ser o Bloco dentro de três, quatro anos. Numa grande aceleração estamos a procurar construir uma identidade, uma identidade feita de pluralidades. Tem estado a correr muito melhor do que podia imaginar quando, apesar das diferenças, dissemos «Vamos pensar nisto desta maneira». É evidente também que quando as coisas estão numa linha ascendente tornam-se mais fáceis.
O seu discurso é profundamente idealista, mas não sei se o podemos considerar inocente.
Não há inocência nenhuma nisto. Não creio que tenhamos grande alternativa. Havia uma frase de 68 com a sua graça: «Não tomes os desejos por realidades. E porque é que os desejos não hão-de fazer parte da realidade?». O desejo faz tanto mais parte da realidade quanto as soluções que foram experimentadas no passado têm de ser avaliadas, cotejadas, na sua aderência à realidade. Activistas já seremos dois ou três mil, uma força militante importante. Nas europeias distribuímos em mão 400 mil papéis, nas legislativas seguramente um milhão. De qualquer maneira, não estamos interessados em explosões eleitorais que depois não temos maneira de sustentar.
A forma como se movimenta, fazendo com que os seus projectos sejam financiados, pressupõe uma clara consciência do funcionamento de um mercado capitalista. Portanto, não sei como conjuga o idealismo com a inocência.
Nesse sentido, acho que você tem razão. A vontade move montanhas, como diria o outro, mas não chega. Em todo o caso há uma diferença grande entre a política e a comunicação social. A comunicação é uma profissão, um ofício; a política pode ser uma tentação mas é fundamentalmente uma permanência cívica. No caso dos jornais, tentei fazer três projectos, o «Contraste», o «Já» e a «Vida Mundial», demonstrando algo que é cada vez mais difícil: a possibilidade da existência de imprensa de qualidade fora dos grandes grupos de comunicação. A competição é demasiadamente desleal do ponto de vista dos custos e das possibilidades de receita.
Tem sido suficientemente convincente; os investidores têm sustentado os seus projectos.
Mas eu sou convincente, porque acredito naquilo que digo.
A inconstância é uma das suas mais fortes características, ou não?
Não. Sou, aliás, muito constante. Posso passar por vários projectos, quer no plano comunicacional quer no político. Repare que antes de fazer o «Já» estava calmamente como editor do «Expresso». Em princípio é um trabalho para a vida.
Porque raio havia de sair para me meter numa destas! Que inconstância se pode achar nisso? Quando muito, um tipo quer-se meter numa aventura.
Em si as aventuras são constantes. Os seus projectos são de um, dois, três, anos.
O projecto do «Já» falha por razões que têm muito que ver comigo. É uma publicação de que eu e os 30 que o fizemos nos podemos orgulhar, provavelmente aquele que se pode orgulhar menos sou eu porque errei no conceito. Pior do que isso, convenci uma série de pessoas que o conceito era muito interessante!, (que a hipótese de fundir um jornal e uma revista era viável). Aquilo acabou quando tinha de acabar. Depois perguntei aos accionistas se queriam fechar definitivamente ou partir para outra. Acharam que se devia partir para outra; não há aí qualquer inconstância. O «Já» veio dar na «Vida Mundial». Foi um ano doloroso, com salários em atraso.
Porque é que aos treze anos decidiu viver com o seu pai?
Não foi nada de especial. Os meus pais estavam separados; ou se vive com a mãe ou com o pai. Na altura, preferi viver com o meu pai, na sequência de um conflito de família e tal. Hoje em dia dou-me muito bem com a minha mãe, mas naquele período a relação teve alguma dificuldade.
Aos 13 anos era um rapaz muito opinativo, presumo.
Era tão opinativo como a minha mãe sempre foi opinativa! [riso] Hoje é que sou pouco opinativo, pacato e tranquilo! Era um filho terrível.
Viveu alguma vez no Porto?
Não. Vivi no Alentejo, no Algarve, em Lisboa. Estou agora a viver na casa que o meu pai me emprestou em Gaia; depois terei de arranjar uma. Ficarei a viver entre Lisboa e Porto, é inevitável. No Alentejo trabalhei como animador cultural, aí pelos 23, 24 anos. No Algarve trabalhei num projecto de desenvolvimento local na Serra Algarvia. Hoje já se pode viver, com melhor qualidade de vida média, numa cidade como Tavira que em Lisboa.
Defina qualidade de vida.
Tempo para si mesmo. Uma cidade como Tavira, Évora, Beja, uma cidade média, podem oferecer do ponto de vista do tempo em enorme ganho (por causa dos meios de transporte, da relação trabalho-casa, da convivialidade). O problema que ainda não conseguem resolver é o da oferta cultural. Na altura em que vivia fora de Lisboa vinha cá para aí de duas em duas semanas para ver cinema, porque sou fanático.
Tem preferidos?
Dos vivos, talvez o Coppola; dos clássicos, o Orson Welles. Gosto do filme do Griffith sobre o «Nascimento de uma Nação»; há um outro grande filme histórico, «Ivan, o Terrível». A tomada do poder da revolução russa feita pelo Eisenstein substituiu durante dezenas e dezenas e dezenas de anos a realidade. Sendo aquelas imagens historicamente falsas, são uma reconstrução da verdade histórica, uma reconstrução como o retirar de todas as fotografias. Apesar disso, traduziam uma verdade que não estava na verdade dos acontecimentos.
Faz atenção às coisas terrenas?
É o meu maior problema. A política significou para muita gente à Esquerda uma espécie de refúgio simpático, para não pensar na exigência que uma pessoa tem que ter consigo mesma. Em regra, os obsessivos são muito desatentos face aos que lhes estão próximo e até consigo mesmos. Eu, por exemplo, sou bastante abandalhado na maneira de me apresentar! Não é grave. É mais complicado na relação com os outros. É uma das coisas em que o poder é tramado, tende a instrumentalizar as relações, todas as relações.
Não estamos então a falar de política mas de poder: quem domina quem.
Todas as relações são relações de poder, incluindo em casa; aliás, começam na vida doméstica.
Porque é que decidiu estudar Economia?
Era o curso de Sociologia mais próximo da realidade que havia na altura!
Demorou dez anos a concluir o curso.
Não gostava particularmente do curso que estava a tirar.
Quando começou a trabalhar aos 16 anos foi uma necessidade? Porque é que não seguiu o percurso normal dos miúdos da burguesia?
Achava que tinha de perceber o que era isso de trabalhar. E tanto quanto possível depender de mim o mais cedo possível. É absurdo que hoje se viva até aos 30 anos na casa dos pais.
Os seus pais levavam-no a sério?
O meu pai vivia em Madrid, vinha cá de vez em quando. Vivi sozinho praticamente a partir dos 14, 15 anos. Até que um dia a minha mãe me disse, numa daquelas discussões que mães e filhos podem ter, «Tu trabalhas mas não sabes o que é trabalhar. Só se sabe o que é trabalhar quando se trabalha porque se precisa».
E não tinha razão?
Tinha uma enorme razão, vim a perceber quando tive de trabalhar para sobreviver, não muito depois. Ganhei autonomia desde muito cedo. Nunca ganhei muito; gasto mais tenho mais, gasto menos ganho menos. O meu primeiro salário razoável é no «Expresso».
Posso perguntar-lhe quais são os seus honorários?
Tenho meio salário na «Vida Mundial» de 200 contos e um subsídio de 100 contos do Bloco para despesas (gasolina, refeições de trabalho).
Ao longo destes anos teve alguma vez de trabalhar para pagar a renda da casa?
Tive sempre de pagar a renda da casa. O que sabia era que se me aparecesse um azar tinha quem me pudesse amparar.
O que, desculpe lá, pode fazer toda a diferença.
Claro que faz toda a diferença. Também sou uma pessoa mais livre que outras por causa disso. Não me preocupei com a Segurança Social até muito tarde. O meu primeiro contrato de trabalho sério foi aos 33, 34 anos. Nunca foi uma coisa que me preocupasse muito, o que faço quando estiver na reforma. Compreendo que seja um comportamento anormal. Tem que ver com uma filosofia muito pessoal de vida: quero viver enquanto puder fazer e trabalhar. No dia em que achar que estou a ficar xexé, ou que alguém me avise, prefiro não pesar.
É um pai ausente?
Sou um mau pai; hei-de ser bom. É outra das razões porque não encaro o palco como mais que uma comissão de serviços. Não há ninguém que tenha o dom da ubiquidade e isto paga-se, paga-se em desumanidade.
O que resulta no maior paradoxo: trabalha-se para as pessoas, descuram-se as pessoas.
Exactamente. As mais próximas são quem paga: é com elas que se berra, é com elas que não se faz.
No princípio da entrevista falava do dever da política.
É uma espécie de arrogância pessoal. Verdadeiramente, se não fossemos nós seriam outros. Esta ideia que as pessoas têm de que são insubstituíveis faz muito bem ao ego, mas de facto não é verdade. Mesmo que os projectos se façam com pessoas, concretas.
Esta entrevista foi-lhe mais fácil por não termos falado do seu irmão? Não lhe provoca um enorme embaraço responder a questões públicas que envolvam o seu irmão?
Sinceramente acho que esse problema já foi resolvido e até foi bem resolvido. Ou seja, já não é problema. Quando me fazem perguntas, «O Dr. Paulo Portas, não sei quê não sei quê», eu respondo com o Partido Popular.
Para a maior parte das pessoas do Bloco, o PP e o Paulo Portas são presenças não muito simpáticas. As reuniões devem envolver algum constrangimento. Se fosse outra pessoa consigo imaginá-lo a dizer que o líder do PP era fascista.
Bom, mas eu não penso que o líder do PP seja fascista, e ele é meu irmão. Penso, já lho disse, que o PP está a soltar forças que nem ele controla. Isto é uma avaliação política, não tem nada que ver com o meu irmão. Acho que não é impunemente que se pode actuar sobre instintos primários sem pagar a factura mais tarde ou mais cedo.
Já perguntou aos seus pais em quem vão votar?
Oh, o voto é secreto.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1999
Miguel Portas morreu em 2012