Miguel Sousa Tavares
Portugal é o protagonista do último livro de Miguel Sousa Tavares, “Madrugada Suja”. É um país de autarcas corruptos, políticos que viram a cara para o lado, de aldeias de uma só pessoa. Um país onde se viveu o sonho. E que vive o embate com a realidade. Na entrevista fala-se do livro – que é um modo de falar do país. E da vez em que o pai de Sousa Tavares, o advogado e político Francisco Sousa Tavares, fugiu dos cuidados intensivos. Ou do tempo em que, com a mãe, Sophia de Mello Breyner, o jovem Miguel decifrava as cartas em código que o pai mandava da prisão. Miguel Sousa Tavares é cronista do Expresso e comentador da SIC. É um dos mais influentes opinion makers portugueses, é um dos raros autores em Portugal que vive da escrita. “Equador”, o seu romance de estreia”, tem 10 anos e vendeu 400 mil exemplares.
Quando comecei a ler o romance lembrei-me do poema que a sua mãe escreveu sobre o 25 de Abril. “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”. O poema ocorreu-lhe? Não é só a palavra madrugada; uma parte do livro passa-se no pós-Revolução.
Não me ocorreu, de todo, esse poema. Ocorreu-me um poema que se chama “Esta gente”. “Esta gente cujo rosto/ Às vezes luminoso/ E outras vezes tosco/ Ora me lembra escravos/ Ora me lembra reis (...) É a gente em quem/ Um país ocupado/ Escreve o seu nome”. É um poema anterior ao 25 de Abril mas que continua muito actual: define os portugueses, que ora são escravos ora são reis. São capazes do melhor e do pior. Este livro é (também) um retrato de nós.
Porque é que somos assim?
O meu pai tinha uma tese. Que os países não progridem sem elite e que a elite portuguesa morreu toda em Alcácer-Quibir.
Já lá vão uns anos. E o seu pai pertencia à elite (não a mesma elite de que falava e na qual descremos).
Ele dizia que foi o marco trágico da história de Portugal, Alcácer-Quibir. Eu respondia-lhe exactamente isso: “Já passaram uns anos, umas quantas gerações. Já era tempo de terem feito outra elite”. Se olhar para a História, há uma coisa que sei: os três males endémicos de Portugal são a dependência do Estado, o poder das corporações e a inveja.
Achei que ia falar de corrupção, à cabeça.
A corrupção decorre de tudo isto. Mas não acho que Portugal seja um país estruturalmente corrupto. Não ocorre a ninguém tentar corromper um polícia na rua. Conheço muitos países onde isso é natural. Também não ocorre a ninguém tentar corromper um primeiro-ministro. Nós não temos um Berlusconi, caramba. A Itália, que é dos países politicamente mais civilizados (no sentido em que sempre teve um grande debate de ideias), teve um Berlusconi durante anos no poder.
A dependência do Estado travou-nos sempre. Vivemos sempre à espera que o Estado nos resolvesse o problema. Depois, este é um país onde as corporações dominam tudo. Salazar percebeu isso e conseguiu pô-las ao serviço do Estado. Com a democracia, aconteceu o contrário: está o Estado ao serviço das corporações. Hoje em dia não é possível fazer nada sem esbarrar nos interesses de uma corporação. Curiosamente, encontram imenso acolhimento na imprensa e na opinião pública.
Porquê esse acolhimento?
Acho que a imprensa tem muita responsabilidade no que se passa em Portugal. De há uns 20 anos para cá, a imprensa adoptou uma atitude: quem quer que reclamasse tinha direito a uma tribuna preferencial. E tinha necessariamente razão. Fossem médicos, professores, militares... A notícia não era procurar saber se as reclamações tinham razão de ser. Reclamavam, manifestavam, ameaçavam – eram notícia.
O triunfo do chinfrim?
[riso] Sim, pode chamar-lhe assim. Quem não grita, não tem direitos. [Na segunda-feira], na reunião do Conselho de Estado, havia uma manifestação do Que se Lixe a Troika. Parece que começou por ter 200 pessoas. Estava lá toda a imprensa. No último noticiário a que assisti, deviam ser umas 11 da noite, estava um repórter sozinho com um manifestante. Mas continuavam a fazer um directo.
Isso revela um sentido acrítico? Que é uma coisa de que os portugueses são frequentemente acusados. Como se estivessem apenas a assistir. Não acontece só com os jornalistas. Perpassa a sociedade portuguesa. Concorda?
Concordo.
É ainda uma herança do salazarismo, da iliteracia?
Ter um sentido crítico é uma coisa que dá trabalho. Requer investigação, estudo, estar atento. Mais fácil do que isso é o bota-abaixo. Anda na rua, nos cafés, fala com as pessoas; dizem: “Eles...”. O “eles” é uma noção terrível. O “eles” são os políticos, uma máfia, uma gente horrorosa que anda a explorar um “nós”. “Nós” somos sempre inocentes, nunca temos responsabilidade nenhuma.
No seu livro, há “eles” e “nós”... E os que representam o “nós” também têm culpas no cartório. A divisão entre uns e outros não é a preto e branco, maniqueísta.
“Eles” vêm de “nós”. Havia um cartaz do Salazar que dizia: “O Exército é o espelho da nação”. Também podíamos dizer: “Os políticos são o espelho da nação”. Nem piores, nem melhores.
Essa imagem reflectida horroriza-nos. Não queremos ser esses. Sobretudo nestes tempos em que a imagem dos políticos anda pelas ruas da amargura.
Já tivemos grandes políticos. Basta olhar para a composição do Parlamento há 30 anos. Se havia uma elite política, estava ali. Este constante bota-abaixo em relação à classe política, a eterna desconfiança (“são todos uns ladrões, uns bandidos, bem pagos de mais” – é mentira) faz com que as pessoas de valor se tenham afastado. Por isso estamos hoje reduzidos aos Passos Coelhos e aos Antónios Josés Seguros. Que são o grau zero da política. São aqueles que, não tendo nenhuma outra vida fora da política, fazem política. Foi isso que conseguiu a imprensa e a opinião pública.
Explique melhor isso.
É onde desembocou naturalmente o bota-abaixismo, promovido pela imprensa e sustentado pela opinião pública. Há tempos escrevi um texto no Expresso que dizia que usar Sócrates como bode expiatório de todos os males que aconteceram ao país é bestial. Alivia a responsabilidade de toda a gente. O tipo que se endividou a passar férias na República Dominicana, agora que não pode pagar, acha que a culpa foi do Sócrates. Bom..., o que foi nas redes sociais a dizer: “Este gajo está vendido ao Sócrates...”.
Foi, com a Clara Ferreira Alves, um dos poucos opinion makers que defenderam Sócrates...
Ataquei-o muito.
Defendeu-o no ataque que lhe foi movido no processo Freeport. Isto numa altura em que era desporto nacional alvejar Sócrates.
O processo Freeport é das coisas mais vergonhosas da nossa justiça. Desde o princípio que se sabia que aquilo era uma montagem. Se fosse nos Estados Unidos, onde se fazem contas a essas coisas – quanto é que custou aos contribuintes o processo Freeport? –, e onde os procuradores têm de ser eleitos, aqueles (do Freeport) nunca mais eram procuradores. O dinheiro que nos fizeram gastar... Movidos, em minha opinião, unicamente, por uma ideia de perseguição política. Um processo que não tinha ponta por onde pegar...
Se me perguntar sobre o pequeno-almoço com Luís Figo, sou violentamente crítico de Sócrates. Perguntei-lhe isso numa entrevista (“Quer convencer-me que Luís Figo vai almoçar consigo na véspera da campanha eleitoral e à tarde assina um contrato de 370 mil euros?...). Foi o pequeno-almoço mais caro da história.
Sócrates tinha razão quando disse: “Não quero um resgate porque sei o que aí vem”. Toda a gente gritava: “Peçam resgate!”.
Mais uma vez, a pedir um salvador externo?
Exactamente. O resgate acabou por ser determinado por uma estranha coligação entre a extrema-esquerda e o centro-direita.
Serviu a quem, o pedido de resgate? No imediato, ao PSD e ao PP, que chegaram ao poder.
Serviu também ao PC. Infelizmente o PC ainda não se livrou do “quanto pior, melhor”. O PC vive da rua, da contestação, do movimento sindical. A grande incógnita é o Bloco de Esquerda. Perguntei a Louçã: “Explique-me como é que diz aos seus eleitores que se junta ao PSD e ao CDS para derrubar um governo do PS, sabendo que vinha aí a Troika”.
Era, ou não, inevitável que viesse a Troika?
Nunca saberemos. Agora até tivemos a surpresa de ver Lobo Xavier dizer que era melhor que não tivessem chumbado o PEC 4... A Espanha evitou-a.
Aquilo que parecia ser o começo do pedido de ajuda, dirigido apenas aos bancos, foi afinal evitável. Passou um ano desde isso.
Antes de pedirmos 78 mil milhões de euros, tínhamos mais liberdade para negociar com a Europa, para exigir condições. A partir do momento em que recebemos o dinheiro, ficámos nas mãos deles, completamente. Quem manda são os credores. Quem manda é quem paga, como dizia Manuela Ferreira Leite, e com razão.
E agora, nada a fazer? Esta semana saiu uma sondagem dizendo que uma grande parte dos portugueses acha que se devia, senão renunciar o memorando, renegociá-lo.
É evidente devíamos renegociá-lo. Mas uma negociação pressupõe o acordo das duas partes. Que queiramos negociar, é normal. Menos juros, mais prazo, etc. É preciso que haja interlocutor. Tomara que tivéssemos tido as condições que a Alemanha teve quando negociou a dívida da Segunda Guerra, em 1953. Se tivéssemos as mesmas condições, e é isso que digo aos meus amigos alemães, também levantávamos a cabeça. Se tivéssemos, como a Alemanha, taxas de juro para os seus empréstimos (a Alemanha pede dinheiro emprestado, as pessoas acham que não, mas pede) de -0,4%, a dez anos, também nos safávamos.
Neste momento, aqui em Portugal e não só, olha-se para Angela Merkel como a raiz de todos os males. É ela o bode expiatório.
Não só aqui. Há tempos, numa entrevista, Helmut Schmidt, (um senhor de 90 anos que se permite fumar em directo na televisão...) dizia assim: “Eu, no lugar da senhora Merkel, estava assustado. Porque está a crescer um sentimento anti-alemão na Europa, que, já sabemos, pela História, não dá bom resultado”. Mas acho abusivo e idiota vestir a Merkel de uniforme nazi, como fizeram na Grécia ou em Portugal, quando ela cá veio.
Vai a Berlim e consegue perceber o dinheiro que gastaram a reconstruir aquela cidade, as pessoas que trabalham brutalmente (a produtividade é 70% acima da nossa) e que se perguntam porque é que vão gastar o dinheiro dos seus impostos a ajudar aqueles preguiçosos... É um argumento contra nós, não há volta a dar.
Porque é que decidiu em “Madrugada Suja” pôr o país...
... como personagem principal? Nunca sei porque é que os livros decidem ir por aqui ou por ali. No “Equador” tinha uma história muito clara, há muitos anos. Mesmo assim, a certa altura, o livro seguiu caminhos que eram só seus. No meu segundo romance, “Rio das Flores”, aconteceu-me achar que determinado personagem era determinante e deixar de o ser. Neste livro parti de uma ideia: o despovoamento de uma aldeia. Uma aldeia onde vive só um homem. Essa aldeia existe e ainda lá está o homem. Fugiu tudo para o litoral.
E porque é que fugiu tudo para o litoral? Aí entra a história recente do país, a desertificação do interior.
A história do país começou a ser o background do livro, o tal personagem inerte, onde todos vão habitar. E todos tentam explicar que país é que fizemos e como é que se chegou ao ponto a que chegámos.
Isso é feito através do olhar de três gerações, o Filipe (criado no pós-revolução), o pai (Francisco, que vai fazer a revolução), o avô (que fica sempre na aldeia). A sua geração é a do Francisco.
Sou mais novo que o Francisco, ligeiramente...
Tinha 22 anos aquando da revolução. É a geração dos que acreditaram que era possível fazer um país novo. Quis fazer um país novo?, acreditou que era possível?
Todos acreditámos. Costumo dizer que nunca fui revolucionário. Nunca fui maoísta, nem comunista, nem nada em ista. Sou uma chatérrimo social-democrata desde os 15 anos. Vi o 25 de Abril, essencialmente, como a liberdade. A liberdade é tudo. O resto pode vir por acréscimo.
Aparentemente pode parecer mais fácil progredir economicamente em ditadura. Não há sindicatos, não há greves, não há contestação. A longo prazo, não resulta. Infelizmente, muitos portugueses, inclusive militares do 25 de Abril, confundem liberdade com bem estar. São noções diversas. A liberdade dá-nos a possibilidade de nos governarmos bem ou mal. Mas não garante, necessariamente, que vamos ser bem governados e que isto vai ser um mar de rosas.
O livro pode ser uma resposta à pergunta: “O que é que fizemos com a liberdade?”.
O que fizemos com a liberdade e com o resto. Os milhões dos dinheiros europeus. Com o perder o fardo das colónias (há muita gente que acha que foi ao contrário, que perdemos o tesouro). Com o entrar no mundo (já estivemos duas vezes no Conselho de Segurança da ONU, já presidimos duas vezes à Comissão Europeia). Tivemos muitas oportunidades. Isso é que é imperdoável: o que fizemos com elas. Quando me insurjo [contra o facto de] Sócrates ser o bode expiatório é por causa disto: as coisas não aconteceram de um dia para o outro. Não ficámos a dever 170 mil milhões de euros de um dia para o outro. Alguma coisa correu aqui muito mal.
No Alentejo, um vizinho meu fez uma plantação enorme de pessegueiros, para a qual tinha tido um subsídio. Passado um ano, recebeu dinheiro para os arrancar! Pensei: “Este tipo está-se nas tintas para a terra, para ver um pessegueiro crescer. Ele quer é o dinheiro”.
Conta essa cena no livro. Quis meter aqui o que sabia, as atrocidades que se fizeram no país?
Quis. O livro denuncia o que fui pensando e escrevendo ao longo dos anos. Embora tente ficar numa posição de neutralidade...
Neutralidade, porquê? No livro é romancista, não é jornalista.
Pois. Quis que os personagens fossem desligados da política, tirando aqueles que são políticos (o candidato a primeiro-ministro, o presidente da câmara). Enquanto narrador não escapei muito à minha visão sobre o que é o país.
Se existe em todos os livros um alter-ego do escritor, ou algo que se aproxima disso, em “Madrugada Suja” é o Francisco. Estava a vê-lo no desejo de construir um mundo novo, devoto do F.C. Porto, com experiência de caçador furtivo...
Não sou furtivo [riso].
Leitor de “Moby Dick”, de Melville. Curiosamente, Francisco morre cedo.
Acredite ou não, nunca pensei nisso. Mas o que acabou de dizer bate certo. Muito de nós escapa para os personagens. Não quer dizer que esteja tudo concentrado num. Há muitas coisas minhas no [personagem do] avô, na maneira de ser do avô – no que eu gostaria de ser. O tal homem que vive sozinho na aldeia.
Queria ser esse porquê?
Tenho um certo fascínio pelos homens que são uma espécie de Robinson Crusoe. Que consegue bastar-se a si próprio, no isolamento total, que cria galinhas, fala com o burro, vai à pesca. E que tanto está bem com os outros como sozinho (o que não é nada fácil). O neto também tem muitas coisas que ver comigo. A procuradora tem coisas em que me revejo: um certo idealismo da justiça, que eu tinha quando comecei a advogar, e que depois perdi.
Perdeu porquê?
Havia muito pouco de idealismo ali. Houve uma coisa que me derrotou: fui para advogado, em grande parte, por causa dos livros do Perry Mason, do fascínio pelo tribunal. E encontrei juízes que odiavam julgamentos e que faziam tudo para adiar julgamentos. “Que é que estou aqui a fazer? Quase não ganho dinheiro para manter o escritório, não consigo fazer julgamentos...; não vou estar a tratar de habilitações de jazigos de família e contratos de divórcio...”. E pronto.
Tinha o ímpeto do justiceiro?
Eu tinha. Embora os advogados estejam mal situados para falar de “fazer justiça”. Eles estão é ao serviço dos clientes. Que têm razão ou não. Entra-se na pele do outro... Adorava defender criminosos, adorava processo-crime. Cheguei a acreditar que tinha clientes inocentes, que eu sabia que eram culpados! De tal maneira me envolvia na defesa deles que acabava a confundir a razão do meu cliente com a verdade dos factos.
Fale-me do prazer de defender um criminoso.
Pelo jogo, pelo jogo do tribunal. Sempre tive, sobretudo depois de sair [da advocacia], uma ideia do que a justiça devia ser. Devia ser muito mais simples, eficaz, menos pretensiosa. Ontem recebi uma sentença de um processo em que fui acusado, pelo João Rendeiro, e que, felizmente, ganhei. Uma sentença muitíssimo bem feita, que tem umas 20 páginas. Porque é que a juíza há-de gastar 20 páginas a citar os acórdãos todos?
Abramos um parêntesis para lhe perguntar pelos seus inimigos. Alguns são exibidos como se fossem medalhas. Não por acaso, na badana do livro pode ler-se: “A sua reconhecida independência arrasta fiéis e acumula inimigos”.
Não sou o responsável por isso.
Não se opôs, não disse que não queria. Posso deduzir que não o incomoda que algumas pessoas sejam seus inimigos? Qual é o preço de dizer o que pensa e desta “reconhecida independência”?
O preço é criar inimigos. Houve uma época em que teve um preço financeiro, concreto. Quando eu era jovem jornalista na RTP, só se progredia, como acontece no Estado, se passasse a chefe; ou então ganhava como índio. Não havia aquela coisa: “Este gajo é um excelente repórter e vai ganhar mais”. Fiquei sempre como índio. Porque não tinha um partido atrás de mim. Revoltou-me imenso, vi uma colecção de notáveis medíocres que subiam à vez. Ora subiam os do PS, ora subiam os do PSD. E quando subiam, já não eram despromovidos. Fui-me embora ao fim de dez anos porque não tinha dinheiro para pagar a pensão de alimentos aos meus filhos.
Foi fazer o quê?
Dirigir a Sábado. Seis meses. Depois, porque era independente, porque não aceitei os fretes publicitários que queriam fazer, fui corrido. Foi a única vez em que fiquei desempregado. Três dias ou quatro. Foi uma experiência traumática. Sou muito sensível aos miúdos, e não só aos miúdos, desempregados. Eu tinha vergonha de sair à rua. Vergonha de sair ao meio dia, às três da tarde. E que as pessoas dissessem: “Este gajo não tem nada que fazer?”. Tive um avô que dizia: “Quem não trabalha, não presta”. Outro avô dizia: “Quem não come, não presta”.
No norte dizia-se “Trabalhar é honra”. É equivalente.
É. A independência, hoje em dia, pago em situações de mal estar. É entrar num sítio e pensar: “Quantos é que estão aqui e que não me falam?, ou a quem eu não falo?”. Há sempre alguém. Em ocasiões sociais é constrangedor. Paciência. Não é agradável. Mas não incomoda o suficiente para fazer de outra maneira. Num livro em que reuni crónicas políticas escrevi na introdução: “O dever de um cronista é ter opinião”. Conheço tanta gente que tem opinião e que nunca, nunca molha as mãos... Eu, este ano, fui bombardeado: Rendeiro, Mota-Engil, Gonçalo Amaral, Armando Vara. Todos me puseram processos, e todos perderam. O que quer dizer que eu sei os limites entre a ofensa e a crítica. Mas incomoda. Você tem que ir a tribunal, chatear testemunhas, gastar dinheiro. Mas se não faz isso, não tem o direito de ter uma coluna de opinião.
Com quem é que aprendeu a ser assim?
[sorriso] Está na cara, não está?
Com o seu pai?
Com o meu pai. Aprendi a conter-me com a minha mãe. O meu pai, por ele, acordava a espadeirar e deitava-se a metralhar. Havia sempre algum pretexto...
Não havia nada de que ele tivesse medo?
[pequeno silêncio] Nada. Nada mesmo. Nunca conheci ninguém com a coragem dele. Nem sequer tinha medo da doença. Chegou a estar internado duas vezes nos cuidados intensivos, e fugiu dos cuidados intensivos! Uma vez fugiu de noite, com aquelas batas ridículas, com o soro dependurado. Telefonaram-me do Santa Maria a dizer: “O seu pai fugiu”. [riso] Pensando nisso: não sei se seria a mais corajosa das pessoas. Acho que a coragem consiste em ter medo e ultrapassá-lo. Quando não tem medo...
Imagino que o seu pai se perguntasse: “Em última instância, medo de quê?”. Medo de perder o quê? Medo de ficar sem tecto?
Não faltam razões para ter medo de tudo.
Justamente. Estou a tentar perceber porque é que ele não tinha medo.
Acho que muitas vezes não tinha medo porque não tinha noção do perigo. Ao volante, era um terror. Também não tinha medo dos desastres e teve imensos desastres, a vida toda. Outras vezes achava que o perigo não era razão para o conter. Vi-o fazer coisas extraordinárias... A interromper o sermão de um padre, aos gritos, numa igreja, no tempo da outra senhora. O padre estava a fazer a apologia de Salazar. Mandou um berro: “Se quer fazer política, vá para a Assembleia Nacional”.
Alguma vez sentiu uma espécie de embaraço por causa de cenas dessas? Ou teve desde sempre uma admiração desmedida?
Quando se é miúdo, numa cena dessas, fica-se embaraçado. Sobretudo num país em que a regra era estar tudo calado. Percebi que as coisas iam ser diferentes a primeira vez que foi preso pela PIDE. Eu era um miúdo. Andava nos Jesuítas e um padre disse-me assim: “Já sei que há problemas lá em casa”.
Depois, virou herói. A minha mãe teve uma atitude muito pedagógica. Chamava-me para ajudar a decifrar as cartas do meu pai que vinham em código. Revelou-me o código deles, que jurei nunca revelar até à morte. Era um ovo de colombo que o meu pai inventou. Um enigma que demorava tempo a decifrar. Para mim, era uma sensação de aventura, de clandestinidade, coisa oculta. Passei a achar que era uma honra ter o pai na prisão.
Já revelou esse código?
Nunca. Jurei à minha mãe que nunca o diria. “Miguel, nunca revele isto. Se a situação virar – e pode voltar a virar – pode precisar disto.”
A sua mãe tinha a noção de que “isto pode virar” outra vez? É uma coisa de que se tem falado, sobretudo no último ano e meio, neste período de crise aguda. De estarmos na iminência de qualquer coisa, que não sabemos o que é, mas que pode ser mau.
Fala-se nisso?
Fala. Pacheco Pereira, há uma semana, neste jornal, dizia que estamos a caminho de coisas ainda mais tortas. Não se sabe é o quê.
Já não temos idade para brincar ao generais. O pior que nos pode acontecer é um Beppe Grillo, um Sidónio Pais. Mas não por via militar.
Pacheco Pereira dizia exactamente isso: “Pode-nos calhar um ditador populista, um palhaço...”.
Nós já temos um palhaço. Chama-se Cavaco Silva. Muito pior do que isso, é difícil.
Escreve no livro: “O Presidente nunca se misturara, nunca arriscara, nunca vira nada, nunca soubera de nada. E, quando os seus próximos caíam na lama, virara a cara para o lado, fazia um ar pesaroso, de amigo enganado”. Está a falar de Cavaco?
Não. Qualquer semelhança entre os personagens do livro e os reais é pura coincidência – devia ter feito esse aviso.
Está a falar das pessoas que viram a cara para o lado...
Não digo.
Também há no livro umas pessoas que se parecem com Miguel Relvas, com aqueles que tiram cursos em dois meses.
Relvas não é o único. Há outros.
Voltando ao livro: uma das partes mais denunciadoras é aquela em que fala da pequena corrupção e da grande corrupção. A pequena é aquela que toca o construtor civil e o poder autárquico, estas relações. A grande corrupção – o “grande dinheiro”, expressão que usa – é aquela que financia os partidos e que serve para fazer carreiras políticas. Apetecia que isto não se parecesse tanto com a realidade...
Pode fechar os olhos e imaginar que é pura ficção. [riso] Vai a uma vila do litoral; quando falam da corrupção é sempre apontada ao poder central [Lisboa], ao topo da pirâmide. E vivem com a corrupção autárquica. Percebem porque é que numa zona de hortas, de repente, apareceu uma urbanização. Sabem como se passa. Mas não reagem. Nem têm noção que aquilo seja corrupção.
Como assim?
É a tal proximidade do poder local, que é apontada como uma vantagem e que nestes casos funciona como uma desvantagem. Quando o corrupto é o meu vizinho, mais dificilmente o vou denunciar do que se for o ministro.
Vai ter de se cruzar com ele na escada, cumprimentá-lo no café...
E “é um dos nossos”. E depois diz que vai fazer um pavilhão para a terceira idade, uma piscina municipal. Há um capítulo sobre isso: um presidente da câmara que explica ao arquitecto [que deve assinar o parecer] que não quer ser corrompido quais são as vantagens de consentir certas coisas.
“Tenho 10% de desempregados no concelho e este projecto vai dar trabalho a muitos deles. (...) Quanto mais construções se autoriza, mais receitas vêm de impostos”, diz esse presidente da câmara.
É um argumento demolidor. Em matéria de construção, a Suíça tem uma lei extraordinária. Quer fazer uma casa. Vai à câmara, que explica quais são as regras – “agora faça”. Quando está pronta, a câmara vai ver. Se não cumpriu as regras, manda a casa abaixo. As coisas funcionam limpamente, rapidamente. Não há cá burocraciazinhas.
Os portugueses não são os suíços.
Não é difícil imitá-los. É preciso é querer.
Mas quem é que quer ser suíço ou alemão?
Em muitas coisas, não me importava de ser suíço ou alemão.
Em Portugal temos uma democracia abstracta a funcionar. A nível local, a corrupção passa, os caciques perpetuam-se no poder... Sabe a anedota do texano que vai visitar um amigo na Escócia e que fica fascinado com a relva?
Conte.
“Qual é o segredo da tua relva?” “Semeio, fertilizo o terreno e rego muito.” “Também faço isso e a minha relva não é igual à tua.” “Calma. Depois espera 500 anos.” O problema é que ainda só temos 40 anos de democracia.
E rapidamente a esperança que estava tão viva se esboroou. E parecemos atarantados com o estado a que isto chegou. Como é que foi tão rápido?
Já escrevo sobre política há mais de 20 anos. A mim não me surpreende. Vi as coisas virem. Naquilo que é essencial, e que é a liberdade, não me queixo de nada. Somos um país livre. (As pessoas às vezes dizem que há imensa censura. A censura está onde não se vê: na pressão dos anunciantes.) Não conheço ninguém que tenha sido impedido de dizer o que queria dizer, por mais iconoclasta que fosse.
Em termos do “D” de democracia do 25 de Abril, não tenho reclamações a fazer. O resto, deitamo-nos na cama que andámos a fazer. As coisas tinham que rebentar um dia. Só lamento que não tenha sido mais cedo.
Mais cedo?
O essencial não é nem o défice nem a despesa. O essencial é confrontar os portugueses com isto: em sua casa não pode viver com dinheiro que não tem. Se vive eternamente a dever à mercearia, ao senhorio, a escola, há um dia em que isso rebenta. Porque é que com os países há-de ser diferente? Essa coisa entranhada (que teríamos sempre as especiarias da Índia, o ouro do Brasil, os dinheiros da Europa) criou nas pessoas a sensação de que o dinheiro nunca seria um problema. Os portugueses não têm ideia que o dinheiro do Estado vem de algum lado. Vem do tipo que paga impostos.
Se isto fosse explicado, se os partidos não estivessem obcecados em ganhar eleições, se fosse possível ganhar eleições dizendo a verdade, teríamos evitado muita chatice. Em vez de uma evolução para a realidade, tivemos uma ruptura: chocámos com a realidade.
Quais são as batalhas, das que empreendeu, em que se enganou?
Boa pergunta. Apela ao meu sentimento de humildade. Onde é que me enganei? [riso seguido de longo silêncio] Vou pensar e digo-lhe. Fica-me pessimamente [não me lembrar]. Com certeza que me enganei.
No livro, o aspirante a primeiro-ministro diz: “Não existe essa coisa de um mundo perfeito e gente perfeita. Não há nada mais perigoso do que acreditar nisso”. Porque é que são perigosas essas pessoas?
Estou de acordo com ele. A natureza humana é, por definição, imperfeita. As pessoas que acham que nada lhes serve, nada menos que a perfeição, são perigosas. São movidas por um fanatismo quase religioso. São tão perigosas como aquelas que acham que devemos aceitar todas as imperfeições e que está tudo bem. Isso dá homens providenciais. Os Salazares nascem disso.
Outra passagem: “Partilhávamos o silêncio, e o silêncio a dois não é o mesmo que o silêncio sozinho”. Partilhar o silêncio só é possível num contexto de profunda intimidade. Com quem sente o prazer de partilhar o silêncio?
Com meia dúzia de pessoas de quem gosto muito, e que sei que gostam de mim.
Faz agora dez anos que lançou o “Equador”. O que é que mudou?
Na minha cabeça não mudou nada. Na minha vida, em concreto, mudou algumas coisas. O “Equador” foi uma aposta pessoal (era um sonho muito antigo), profissional e financeira (larguei o trabalho onde estava e vim para casa escrever o livro). Demorei três anos e tal a escrevê-lo. Sem saber se no fim estava arruinado, se tinha sucesso, se tinha de voltar a procurar emprego. O “Equador” demonstrou-me que podia viver de escrever e que tinha valido a pena. Não tenho ninguém a mandar em mim e não mando em ninguém. É o cúmulo da liberdade. Quem faz os meus horários sou eu. Se me apetecer (felizmente nunca me apeteceu) ficar na cama o dia todo, posso ficar. Se me apetecer ficar a escrever até às seis da manhã (como já fiquei), posso fazê-lo. Era o meu sonho de vida, depois de 20 e tal anos de assalariado. Não tem preço. Uma vez disse esta frase que parece pretensiosa: “Não trocava a minha vida pela de ninguém”. Sou uma pessoa imensamente feliz e cheio de sorte. E isso devo muito ao “Equador”, às pessoas que compraram o livro, que o leram.
Quando se sentou a escrever, tinha confiança em si?
Sempre sonhei, desde miúdo, ser romancista e jornalista. Lembro-me muito bem do primeiro dia, da primeira página. “Será que alguma vez chego ao fim disto?”. Durante um ano e meio escrevi; depois parei seis meses. Fiquei bloqueado. Achei que, afinal, era muito mais difícil do que eu pensava. Um dia, alguém me deu um conselho feliz: “Não penses no fim. Senta-te em frente à última frase que escreveste e retoma, só a pensar na frase seguinte”. E assim foi. Quando cheguei ao fim, a sensação, em termos pessoais, foi incrível. Consegui subir à montanha.
Não sei se era confiança se era teimosia... Saiu do pêlo. O outro a seguir saiu ainda mais do pêlo.
Aí tinha a pressão de escrever um segundo livro depois de um primeiro que tinha vendido 400 mil exemplares.
Meti-me numa empreitada demasiado grande, sobretudo em termos de investigação. Deixei de ter casa. Eram pilhas e pilhas de papel. Foi um tempo de vida suspenso. Olhei para mim e decidi que não queria voltar a passar por aquilo, pelo romance histórico. Só que a vida vai e vem, e em Outubro espero recomeçar a escrever um romance histórico. [riso]
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013