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Anabela Mota Ribeiro

Millôr Fernandes

24.01.23

Tudo se passou em três semanas de Agosto. Primeira dificuldade: encontrar o número certo para falar com Millôr Fernandes. Passo seguinte: deixar recados no gravador ao longo de dez dias. Diários. Sem resposta. O gravador atendia assim: “Fale ou fax”. Num tom de sentença. Numa voz de velho irado. Uma vez atendeu. Que maluca era eu que lhe entupia o gravador com um pedido de entrevista que ele iria recusar? Iria oferecer-me um cafezinho, e era tudo. Decidi ser assertiva: “Vai dar-me a entrevista, sim!” E Millôr obedeceu: “Adoro mulheres autoritárias, se chegar muito perto peço você em casamento…”. Após o que nos escangalhámos a rir, que era a única coisa a fazer. Houve ainda aquela angústia do guarda-redes antes do penalty, sentada na entrada, ao lado do segurança, e o Millôr atrasado, atrasado quase uma hora. Finalmente chegou: “Ah, você veio mesmo?”

Ele manda e-mails nos quais assina: O Millôr. Porque o O é um personagem. Millôr é uma daquelas figuras que só poderiam ter nascido no Rio de Janeiro. Cartoonista, caricaturista, humorista, escritor, dramaturgo, jornalista, tradutor, director de revistas míticas da história brasileira do século XX. Autor de frases famosas.

“A verdade é que na vida nos dão muito enredo e muito pouco tempo”. A vida dele tem enredo para uma telenovela de cinco mil novecentos e quarenta e oito capítulos, pelo menos. Porque, além do que acima se disse, foi um amoroso. Queria ter sido atleta. Não quis ser atleta sexual. Mas da fama não se livra. Deu-se com toda a gente, pertence a uma geração mítica de sul-americanos que viveram muito intensamente.

Já escreveu o seu epitáfio: “não contem mais comigo”!

 

 

Ouvi dizer que chegava ao Pasquim e vangloriava-se de ter comido cinco mil. Confirme ou desminta.

O termo vangloriar é inexacto. Tinha dado cinco mil trepadas. E não estou me vangloriando, não. O homem casa, come aquela mulherzinha dele, e depois não está mais nem aí. Sempre fui uma pessoa, sob este aspecto, livre. Nessa altura, [do Pasquim], tinha apenas 30 anos de sexo. Se botar uma incidência sexual de três vezes por semana, que não é nada de extraordinário – quando tem 15, 18, 20, 30 anos às vezes faz isso numa noite – se fizer três em 30 anos, no fim de um ano tem 150, no fim de dez anos tem 1500, no fim de 30 anos tem cinco mil.

 

Pensei que se vangloriava de ter comido cinco mil mulheres.

Imagina!, imagina. As pessoas assumem as coisas pelo lado vulgar. Não estou interessado, nem nunca estive, em ser atleta sexual. O meu interesse foi sempre, e consegui isso inúmeras vezes, comer a alma da mulher.

 

Comer a alma da mulher…

Um homem com algum dinheiro: se quiser uma mulher de 20 anos, olho azul, paga duzentos, e ela está aqui, às sete horas da noite. Resolve o problema de alguém? O problema anímico, o problema maior, não. Passaram pela minha vida mulheres extraordinárias, e não foram cinco mil.

 

Isto, no fundo, é um intróito, um preliminar...

Então esquece, apaga! [risos]

 

O sexo, na escrita ou sob a forma de caricatura, surge como linha principal daquilo que faz. O que me interessa é saber o que é tem de irresistível para comer tanta mulher. E porque é que o sexo é a linha principal.

A linha principal, não. Não sei qual é a linha principal. Uma das linhas principais, tenho a palavra exacta em inglês, é contempt [desprezo]. Eu não sou conquistador, mas não sou mesmo. Ou por outra, sou conquistador quando, estando diante de uma mulher, se me sinto atraído, sem querer faço gracinha, sem querer sou interessante. O Vinicius de Moraes?, o Vinícius é um amador! Quem quer casar, tem cem mulheres! Para mulher, “casar” é uma palavra mágica, até hoje. Não me lembro de ter falado em casamento com nenhuma mulher.

 

É casado.

O primeiro casamento da minha vida, eu preservei: me livrou de todos os outros!

 

Porque é que casou?

Eu era muito jovem, fazia parte da prática. As mulheres com quem tive coisas intensas são minhas amigas, a vida inteira.

 

Amigas é um eufemismo para dizer “lovers”? Amantes.

Amantes durante um certo período, sem nenhuma promessa de fixação, de casamento. Chega um momento em que uma pessoa se cansa, naturalmente; porque aparece um mais curioso, um mais bonito. Sofre. Mas uma pessoa como eu acha que isso faz parte do jogo.

 

Sofrer por amor? Cansar-se do outro?

Sofrer por amor só existe quando a pessoa, de uma forma ou de outra, é afastada, é abandonada. Agora cansar-se do outro, meu Deus do céu, é universal! Não há hipótese! Eu tenho uma frase que é muito aplicada a isso: “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos muito bem!” O casamento é isso. Como é que um casal, duas pessoas, se sustentam vivendo num quarto e sala conjugado? No fim de um mês, um quer matar o outro! Evidente.

 

Não há relações sem esse enfastiamento? Felizes.

Quando entra o valor do espírito. Quando tem um outro tipo de relação em que o sexo passa a ser uma coisa ocasional – porque um homem sofre de problemas hidráulico-mecânicos. [risos] Mas aquela mulher se estiolou, se exauriu para ele.

 

Iniciou-se aos 15 anos. Como é que um rapaz do subúrbio, há 70 anos, se iniciava sexualmente?

Eu sou do Meyer. Vivi lá até aos 12 anos. Com 15, já vivia na cidade [Rio], em pensão. A relação sexual: ou começava com uma pessoa muito inferior, que eram as empregadas domésticas, ou na prostituição.

 

Vamos lá à história da sua vida…

Se você quiser eu mudo!

 

Inventa já outra biografia?

Uma outra...

 

Você mente?

Não. Meu pai era espanhol, minha mãe era de família italiana. Eu podia ter nascido em Madrid, em Nápoles, e meus avós vieram trepar aqui, para que eu nascesse aqui. O meu pai veio muito moço da Espanha, com 24 ou 25 anos, era formado em engenharia – não que fosse engenheiro, mas quando chegou tinha um aparato intelectual maior do que o dos nativos. Ele devia ser muito malandro... Sabe o que é malandro?

 

Dê-me a sua definição de malandro.

O malandro antigo era o vagabundo que andava com navalhas. O malandro é aquela pessoa que percebe a realidade do mundo, que dá um jeitinho nas coisas. Meu pai, com esse aparato…, nós éramos de classe média por causa dele. A nossa casa no Meyer era muito boa, com um belo terreno; devia ter sete, oito metros de frente por vinte de fundo, quatro quartos enormes. Tenho muitas fotografias do meu pai – tinha, na gaveta; ele próprio se fotografava. Com uma farda bonita, branca.

 

O seu pai era garboso?

Era. Quando morreu, aos 36 anos, descemos para o proletariado. Na família, se fala que foi envenenado. Encontraram o cofre da firma comercial aberto, tinham roubado coisas. Mas essas lendas de família, sabe como é que se formam... Por outro lado, dizem que teria morrido com uma intoxicação alimentar, que naquela época era coisa séria. Eu tinha um ano, ou não tinha nem um ano.

 

A imagem do seu pai foi-lhe passada pela sua mãe, pelos familiares?

Não tenho essas recordações ou relatos romanescos. Não tinha ninguém proustiano na minha casa! Minha mãe tinha 27 anos, quatro filhos; que educação é que ela tinha? Nenhuma. Então, começou a costurar para fora e alugou metade da casa a uma irmã. Com isso, nos sustentava. Essa irmã trouxe minhas primas, com quem muito cedo entendi que prima não é irmã! Já começa... Aquelas experiências vagas, mas já começa!

 

A sua mãe morreu muito cedo, também. Tinha 36 anos.

Por exorcismo, não se falava da doença. “Deu uma coisa, deu um tumor nela...”. Possivelmente teria sido câncer.

 

Quem é que se ocupou das crianças?

Minha irmã casou, foi viver a vida dela, e levou a [irmã] menor. Eu, eu comecei a trabalhar na imprensa com 13 anos. Curiosamente isso está registado na minha carteira de trabalho. Era um menino louco, eu era louco...

 

É surpreendente que não tenha querido saber exactamente de que morreram os seus pais.

Acho que as pessoas morrem. Depois disso, fui morar com um tio num subúrbio bem mais distante. Era um tio pobre, também. Evidentemente, eu comia mal… Fui para o cemitério, não chorei. Voltei para casa, depois do enterro, entrei em baixo de uma cama, numa esteira; lembro que era fim de semana, normalmente se lavava a casa, o chão estava húmido. Ali, comecei a chorar. Mas feito um desesperado. E sentindo a injustiça do mundo. Dizia “Que Deus… Sem mãe, sem pai, não tenho nada”. Senti uma coisa que designei de a paz da descrença.

 

Habituou-se a não desejar nada? A não esperar nada, senão aquilo que ia conquistando?

Nunca pensei o que é que ia ser quando crescesse. Nunca pensei qual seria a minha profissão. Quando vi, estava trabalhando nos jornais. Já é uma fortuna extraordinária fazer aquilo que gosto de fazer. Cada vez mais me convidam para fazer uns negócios, e eu faço.

 

Gosta de ser adulado?

Desde que comecei, sempre fui tão adulado que me acostumei. E só penso: “E se não fosse? E se cessasse de repente?”. É feito o telefone: toca, às vezes toca o tempo todo; e se não tocasse? A pessoa que envelhece, está sozinha em casa, o telefone toca, ele vai a correr, e a pessoa fala: “É engano!”

 

Está a falar de solidão. Mas sempre andou muito acompanhado…

Vou te contar uma história: eu estava em Roma, na casa de um amigo; algumas semanas depois, a mulher do meu amigo pegou o avião e veio para cá, para se entregar para mim. Pensa que é uma doidivanas, uma louca? Pensa que fiz alguma graça especial? Não! Eu estava lá, simplesmente vivendo.

 

O que é que fez? Deu-lhe atenção?    

Não, não é atenção. Tem um escritor, que morreu há alguns anos, morreu jovem, Carlinhos de Oliveira, pequenininho, vesgo: impressionante o número de mulheres que teve. Porque ele tinha vontade! E aquela vontade reflectia.

 

O que é que disse à mulher do seu amigo quando ela desembarcou no Rio?

Não disse nada, fui vivendo com ela. Um tempo assim adobedebeubeudedede... Porquê não sei. Vamos mudar de assunto. Isso aqui vai ficar uma conversa que é uma parte pobre da minha personalidade. Já me pediram para escrever a minha biografia, me ofereceram dinheiro – eu não quero. Tenho umas notas que escrevi através da vida. Não toco no assunto mulher pelo seguinte: qualquer coisa que diga a respeito de uma pessoa estou, sem querer, ferindo outra.

 

Vamos voltar ao menino que chora, zangado com o mundo, e depois conhece a paz. Foi a primeira vez e a última que chorou? Parece uma coisa diluviana, definitiva.

É, eu não choro. Mesmo quando tenho um sentimento que me levaria a chorar, não choro. Quando comecei a trabalhar, ganhava cem reais por mês – não dava… Com essa coisa que eu tinha de menino louco, não tendo ninguém por trás de mim, um dia cheguei na empresa e disse: “Só fico se me derem trezentos reais”. Aí, deram.

 

Antes dos jornais: como é que aprendeu a ler e a escrever?

Estudei em colégio público; no meu tempo e na minha recordação era muito bom. Tudo o que sei, aprendi no curso primário. Tinha uma professora velha, velha, que depois descobri que tinha 21 anos! Mulata, uma criatura de uma ternura formidável. Me lembro do dia em que ela me ensinou, no relógio, como os ponteiros marcavam as horas; foi um deslumbramento! Tinha uma varanda que circundava o colégio e eu saí pela varanda para ver os outros relógios; de repente percebi que um relógio não era igual ao outro, e que aquilo era o tempo que passava [risos]! Se me perguntar quais são as preposições, eu digo. Definição: deve ser clara, breve, geral e verdadeira. Não é bom?

 

São princípios que seguiu a vida toda?

Pois é. Uma frase deve ter sujeito, verbo, predicados na ordem directa – a ordem indirecta deixa pró Camões. Fiquei uns dois anos ou três sem estudar, fui morar na cidade. Quando recomecei, ganhava já trezentos reais. A primeira coisa que fiz: entrei para colégio nocturno. Eu trabalhava das oito da manhã às seis da tarde, sábado também. Pagava para estudar. Quando saía do colégio, andava um quilómetro até pegar um bonde, andava uns três, quatro quilómetros de bonde, depois andava num trem uns vinte minutos até chegar em casa. Eu me chamava a mim mesmo de “piscina”, porque chegava, batia na parede e voltava para o trabalho!

 

Já nessa altura produzia as frases, os aforismos que foram ficando famosos pelos anos?

É, é uma coisa natural. Eu não paro e digo: “Vou fazer uma frase”. Ou faço ou não faço. Fazia, sem querer.

 

Era um menino espirituoso, que fazia rir os colegas? Como é que era quando a sua mãe era viva? E depois?

Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos, minha recordação com ela é uma recordação de carinho.

 

Duas frases: “Mãe, que é a carreira mais difícil do mundo e para toda a vida, não precisa de exame psicotécnico, nem curso de faculdade nem atestado de bons antecedentes.” “Super mãe é uma mulher que corta um “petit-pois” [ervilha] em dois para o filho não ter que mastigar.”

Tou achando bom!

 

A sua mãe fazia-lhe isto?

Não tenho ideia como é que escrevi isso. Não sou muito biógrafo, não. (Olha, e antes que me esqueça: considero o Ivo Pitanguy o homem mais realizado que conheço. Ele percorreu o mundo de cima para baixo. O pai dele já era médico, era prestigiado; Ivo entrava no palácio de Buckingham para operar uma terceira prima da rainha, e quando entrava, era esperado, era o Dr. Ivo! Ele fazia tudo, fazia esporte, fazia natação… Na casa dele, tem Picasso, Dalí… Mas não comprou, não: Dalí deu pra ele.)

 

Falamos mais tarde da geração notável a que pertence e das pessoas com quem se deu, entre eles Pitanguy. Mas sobre o seu pai, escreveu: “O Noel Rosa diria hoje que o vizinho rico morreu. Eu tinha um ano”. Noel é um dos maiores compositores da história da música brasileira. O seu bairro era Vila Isabel, e o vosso era ao lado.

Meu pai morava na Rua Teodoro da Silva. Noel era um homem pobre, baixa classe média. Chegou a estudar. Era um génio.

 

Evoco o seu pai e a sua mãe para perguntar pelas suas memórias de infância.

Tenho fotografias, uma ou outra, poucas com minha mãe. Me lembro de uma coisa de afecto, de carinho. Também tinha muita tia, porque meu pai trouxe duas irmãs; depois que envelheceram ficaram reaccionárias, chatas, e nunca mais quis ver. Você fica falando de relação com mulher e eu vou te dizer: minha avó materna foi a primeira mulher realmente apaixonada por mim.

 

Como sentiu esse amor?

Ela tinha 72 netos e bisnetos, teve dez filhos. Quando fiquei nessa fase de miséria, e fui morar nessa casa longínqua, com meu tio, eu tinha um quarto no quintal. Essa mulher largou tudo e foi morar comigo. Quando eu chegava, a altas horas da noite, às vezes sem comer, dizia: “Milton...” – me chamava Milton – “Tem uma sardinha no fogão”. Reservava uma sardinha para mim. De onde é que vem isso? Porquê essa preferência? É misterioso.

 

E nesse gesto sentiu o amor da sua avó.

Quando você é um menino, como se diz em inglês, “take for granted” [toma como garantido]. Foi o que foi. A relação com mulher: uma prima de 18 anos ia tomar banho ali; tinha um daqueles guarda roupas com um espelho enorme, não tinha nem banheira, era uma bacia; ela ficava se ensaboando e eu ficava para morrer! Mas para morrer! Para mim, aquilo era o mundo!

 

Mais tarde, desenharia muitas mulheres nuas. Quando começou a trabalhar, desenhava. Como era O Cruzeiro, a famosa revista onde se iniciou?

A revista era uma sala, a sala teria três metros por seis ou sete; isto era O Cruzeiro. Foi meu primeiro emprego. A revista vendia dez mil exemplares por semana, quando vendia dez mil e quinhentos era um sucesso. Eu era contínuo, carregador, ia fazendo tudo o que aparecia; e do lado – para ver a pobreza – tinha o director da revista, no fundo tinha uma prancheta em que o desenhista fazia o que se chama hoje design. Isto me deu uma grande oportunidade.

 

Como?

Eles não tinham dinheiro nem para comprar envelope, e recebíamos envelopes bonitos, de companhias americanas, que mandavam fotografias. Eu pegava as fotografias, arquivava, e nos  envelopes botava “Praia”, botava “Moda”, botava “Políticos”. Não vai acreditar: isto se transformou no maior arquivo da América do Sul! Foi crescendo, crescendo. A revista explodiu. Aparecia uma história de quadradinhos para traduzir, e eu traduzia.

 

Como é que um rapaz do Meyer aprendia inglês?

Dicionário!

 

Anos mais tarde traduziu Shakespeare. Como é que aprendeu inglês?

Sei lá como é que a gente aprende! Como é que a gente aprende as coisas? Devo ter lido dez mil livros. Eu não sei nada, eu aprendo lendo. Inclusive, esta é a minha definição de cultura – sei que vai concordar com ela... “Cultura é aquilo que amplia a nossa ignorância”. Não estou fazendo uma frase, não. O idiota que leu duas coisas acha que sabe tudo! A nossa ignorância é maravilhosa.

 

O Cruzeiromudou a sua vida, porque lhe deu espaço para aprender, expandir o seu mundo.

Assim como eu tive a sorte de perder os pais...

 

A sorte de perder os pais?

É, não fui massacrado pelo sistema familiar, não fui massacrado pelo sistema religioso.

 

Deu-se com toda a gente, conhece toda a gente.

Pois é. Uma das primeiras pessoas que vi entrar, [Dorival] Caymmi, dizia que a primeira pessoa que conheceu fui eu. Era menino, chegou, foi procurar um desenhista que o iria apresentar ao director da Rádio Tupi, também baiano, para dar uma oportunidade para ele. Outra pessoa, Gago Coutinho! O Gago Coutinho, no ano 40, tinha atravessado o Atlântico; era almirante, com aquele dólman, aqueles botões; fez uma entrevista. Mais tarde é que vi a importância dele. Em dez anos, a revista estava vendendo 750 mil. Todas as pessoas, as vedettes, as pessoas importantes, não há um nome da imprensa brasileira, actualmente, que não tenha passado por lá.

 

Foi um sobrevivente, com uma vontade de aço.

Não era vontade. Eu estava vivendo. Eu ambicionei ou a vida me arrastou? Não sei.

 

Não sabe? O que é que aconteceu aos seus irmãos? Tiveram uma carreira tão fulgurante quanto a sua? Uma vida tão entusiasmante quanto a sua?

Fulgurante, gostei! Minha irmã trabalhou no Ministério de Educação; a minha irmã menor era uma mulher bonita e se casou com um diplomata equatoriano; e Hélio, meu irmão, que era mais aventureiro do que eu, pegou um jornal chamado Tribuna de Imprensa, do político Carlos Lacerda, e escreve editorial todo o dia.

 

Num dos seus livros, faz uma dedicatória à sua irmã: que continua a acreditar na bondade do ser humano. Quando é que deixou de acreditar na bondade do ser humano?

Quem deixou de acreditar na minha bondade foi você! Pelo contrário: a coisa que mais admiro no ser humano não é a cultura, não é o carácter, é a capacidade de ser bom. Mas quando encontro uma pessoa boa, quando acredito que ela é boa, a bondade já está fugindo.

 

Qual é a sua definição de bondade?

Não é Madre Teresa de Calcutá – essa é uma exploradora da bondade, não toma banho e cheira mal; aquilo é o cheiro da santidade; quer ser boa em Calcutá, depois quer ser boa em Nova Iorque…

 

Sobre a bondade.

Quero ver o que é que eu disse!

 

Num livro que reúne as mil citações mais famosas diz o seguinte: “Pode ser engano, mas pela situação do mundo parece que o leite da bondade humana azedou de vez”. Estava num dia mau…

Não, não...

 

“O génio do ser humano não é o talento, é a bondade”. E ainda: “Só vi a bondade uma vez, tem muitos anos”.

O facto de estar decepcionado por não encontrar a bondade, não quer dizer que não preze isso.

 

Que vez foi essa, há muitos anos, que encontrou a bondade?

Não sei! Deve ser poético! [risos]

 

Definição de bondade: respondeu com uma negativa, disse que não é a Madre Teresa de Calcutá. Nesta tarde, neste momento, que definição de bondade é que lhe ocorre?

Quer que eu seja definitivo…

 

Ao contrário: se é a definição para esta tarde, para este momento, só pode ter um carácter pontual.

O que está mais perto da bondade é uma coisa que se chama humanismo. Por exemplo, todas as pessoas que trabalham comigo, trato como se fossem pessoas da minha casa. Talvez por isso consiga conviver com elas tanto tempo. Não gosto da palavra respeito, mas há esse sentimento humano. (Como é que vai ouvir isso depois?

 

Ouço, transcrevo e edito.

Sabe que tenho horror de dar entrevista? A pessoa vai me ouvir duas ou três vezes e vai passar a me odiar, não vai mais nem me cumprimentar...

 

Há quanto tempo não dava uma entrevista assim?

Há muito tempo.

 

Obrigada. Decidiu-se por causa da minha persistência?

Foi a sua persistência, e porque é em Portugal. Aqui não, aqui tem uma repercussão negativa). Então você quer saber do desenho e da escrita… Fui fazendo. Nunca tive essa consciência de “vou ser escritor”. Derivando um pouco, há uns duzentos anos descobri o haikai [forma poética oriental]; peguei o haikai e comecei a fazer haikai à minha maneira. A noção de desconstruir é minha, sempre. Você pega os idiotas que continuam a fazer haikai falando de Primavera, de colibri, de pirilampo… Eu peguei e fiz um negócio carioca! Fiz mais de 400 haikais, mais do que o Bashô [poeta japonês]! Fábulas? Fiz mais de 300 fábulas. O que é o instinto…

 

Fez por instinto? Começou por ser só um instinto de sobrevivência?

Uma naturalidade minha. Pode pegar as fábulas: não tem uma fábula moralista!

 

Muito me surpreenderia se resultasse de si alguma coisa moralista.

Pega La Fontaine, pega os outros, são todos moralistas. O desenho: eu tinha dez anos quando apareceram aqui no Rio as histórias em quadrinhos que começavam a fazer sucesso nos Estados Unidos. Como é que se chama em Portugal?

 

Banda desenhada.

E apareceu aquela figura... Foi a maior relação do desenho intelectual comigo: Flash Gordon! Eu copiava aquilo. Era um desenho infantil, claro. Minha irmã, durante anos, guardava, depois se perdeu. Gostaria muito de ver hoje.

 

E foi assim que começou a desenhar? Copiando o Flash Gordon.

É. Para mim, a minha coisa mais essencial, mais orgânica, é o desenho. Desenho a bico de pena. Fazia árvores de dois metros a bico de pena, fiz meia dúzia. Tem mais de 30 anos que não faço exposição. Para quê expor? Expor porquê? Tenho horror, acho muito engraçado: o ser humano sacrifica a sua vida toda, fica quatro, cinco anos estudando um salto, para brilhar um minuto. Não quero sacrificar a minha vida.

 

Viveu a vida muito intensamente?

Sim. Fazia tudo quanto era esporte. Comecei a praticar depois dos dez anos, quando já era tarde. Antes, não tinha tempo nem ocasião.

 

Correr na praia é gratuito.

Sim, mas naquela época eu morava no Meyer, não tinha praia... E era tudo muito longe.

 

O que é que representou para si a vinda do Meyer para o Rio?

Era uma cidade pacífica. Não foi um grande acontecimento. Vim morar numa rua que não existe mais, Rua São Pedro, onde é a Avenida Presidente Vargas, numa pensão. Uma pensão muito boa: tinha uma sala ampla, tinha comerciários, tinha motorista de táxi e tinha empregadinha deliciosa...

 

Ficou sozinho? Ou já antes tomava conta de si?

Enquanto minha mãe era viva, era ela. Não me vem ideia nenhuma de sofrimento. A vida era cheia, fazendo coisas, estudando. Entrei no Liceu de Artes e Ofícios; o curso era de seis anos, estudei quatro ou cinco. Saí, porque, entre aspas, já era famoso, e não tinha mais sentido estar naquele colégio... Se quiser saber do meu temperamento, não posso lhe dizer. Esse colégio era um edifício art noveau, tinha umas escadarias de mármore; uma noite, um professor, no meio do patamar das escadas, com todos os alunos ouvindo, me parou e disse assim: “Olhe aqui, nunca mais me faça isso na aula, o que você fez é imperdoável, você zombou do seu colega”. O pessoal riu e ele achava isso imperdoável.

 

Alguma vez se riram de si?

Que eu sentisse, não. Quando se faz humor, provoca-se o riso. É uma matéria muito delicada, sobretudo quando nos pomos nesse lugar, o do alvo... Existe uma frase que acho idiota: “Você perde um amigo, mas não perde uma piada.”

 

Nunca tomou essa frase como sua?

Não tem nenhuma necessidade.

 

Está muito mais dócil do que eu imaginaria. Esperei encontrar o Millôr de faca espetada!

Mas de maneira nenhuma.

 

O que é que fez de si famoso? O humor?

A grande coisa que tenho é a capacidade de processamento. Qualquer coisa que me falam, sou capaz de processar de dez maneiras diferentes. Com meu irmão, que é muito hábil também, começávamos a brigar, e quando a briga chegava a um certo ponto, ele falava: “Agora vem para o meu lado e eu vou para o teu!”

 

Quando é que deixou de ser o Milton para passar a ser o Millôr?

Precisei tirar uma carteira. Devia ter 17 ou 18 anos, e vi que estava Millôr na certidão. O tabelião escreveu Milton na boa caligrafia daquele tempo: o R, com a rapidez de escrever, ficou solto, o N ficou solto, e traçou o T em cima do O. Millôr, não tem mais dúvida. Todo o mundo passou a me chamar de Millôr!

 

Como é que a sua mulher lhe chama?

Eu já era Millôr... Ninguém me chama de Milton. Quem me chamava, morreu. É isso. Não tenho mais nada a dizer, já que descobriu que não sou aquilo que você pensava...

 

Quero que me conte o seu encontro com o Walt Disney.

Normal, normal. Nesse tempo, não havia essa coisa desta estrela ou aqueloutra. Aquilo era uma tropa de elite. As pessoas eram as pessoas que se conheciam do botequim ou da praia. Fui para os Estados Unidos, estive três vezes lá, tinha 24 anos. Eu era famoso – como dizia você – e fui fazer algumas entrevistas. Quando cheguei a Los Angeles, Hollywood, o Vinicius de Moraes, que já conhecia daqui, era cônsul; o César Lattes, cientista, ficou meu amigo, e duas ou três vezes fomos para casa da Carmen Miranda.

 

Carmen Miranda era uma espécie de embaixatriz da comunidade brasileira em LA. Eram amigos?

Jogávamos cartas com ela. Uma noite olhei para uma estante e vi 13 volumes pequenos, livros de capa dura, com A História Universal do Humor. “Você me dá?” Está aqui, nessa estante. São livros ingleses, perfeitos, têm cem anos e ela me deu. Nadava na piscina dela com César Lattes, ele nadava melhor do que eu. Atravessei os Estados Unidos de onibus, parava onde queria, descia no Grand Cannyon. Vim de navio de lá para cá, demorava 12 dias; namorei uma moça alemã, e a viagem foi tão divertida que o comissário de bordo me emprestou o apartamentozinho dele para conversar melhor com a moça! [risos]

 

Pergunto-lhe pelo Walt Disney e acaba por falar das moças… A punchline são sempre as moças.

Eu já disse: até a minha avó, porquê me preferiu? Não tenho a menor ideia.

 

O Cruzeiro, O Pasquim, O Pif Paf são grandes momentos da sua vida ligada à comunicação social. Foram os anos gloriosos?

Posso te botar a Veja, entrei na Veja no início.

 

Além das revistas e jornais, onde fez caricatura, cartoonismo e escreveu, fez peças de teatro e tradução. Face a esta versatilidade, importa saber se a qualidade é constante, ou se considera que algumas destas coisas são menores.

Não acho que seja bom em tudo, talvez eu seja melhor em tudo... Vamos falar de teatro: pensa que eu queria fazer teatro? As pessoas dizem: “É apaixonado por teatro...”. Não sou.

 

Porque é que fez teatro?

Um casal de actores chegou ao pé de mim e pediu para fazer uma peça. Como sou uma pessoa gentil, aceitei e fiz a peça. E como sou uma pessoa muito gentil, para não ficarem envergonhados, fiz uma peça boa! [risos] Depois fiz outras.

 

Entra o brio…

Brio é uma corruptela de brilho? Comecei a fazer teatro, chegou um amigo ao pé de mim e me pediu para traduzir uma peça. Traduzi. Era um trabalho profissional, porque o teatro tinha um público razoável e a gente recebia pela bilheteira. Fiz essa tradução, depois fiz outra; em pouco tempo, no panorama de teatro, tinha 30 peças, cinco com traduções minhas. [O encenador] Gianni Ratto me pediu que traduzisse “A Megera Domada” do Shakespeare.

 

“A Fera Amansada”, em Portugal.

Como é que é?, “The Taming of the Shrew”. “Negócio de traduzir essa peça, não sei...” – para você ver a minha atitude. À terceira vez, ele jogou na minha prancheta a peça, “Quem vai traduzir é você!”. Peguei 20 traduções já existentes, em várias línguas, incluindo português; fiquei impressionado com a mediocridade das outras, a mediocridade pretensiosa, uma merda aquilo tudo. Se pegar a peça e comparar, vai ver que a minha é mais perto do original do que a deles.

 

O tamanho do génio do Shakespeare não foi dissuasor?

Chega um momento em que não tenho medo do Shakespeare. Comecei a traduzir. “Hamlet” vendeu 80 mil, “A Megera Domada”, não sei, o “King Lear” 60 mil...

 

Não tem medo do Shakespeare. Não se deixa intimidar por ninguém?

No papel, não. Se aparecer um negão, tenho medo!

 

Quem é que admira?

Literatura, não sou especialista, não quero ser. O meu negócio é uma opinião de pessoa que lê. Só gosto do que gosto. Não tem esse negócio de fulano. Pode ser Confúcio, pode ser quem for. No Brasil, quais são os grandes escritores? Guimarães Rosa, Euclides da Cunha. Machado de Assis não é meu preferido. Tenho uma tendência natural para escritores difíceis. Eu escrevia no jornal Brasil e botei um Top: “Amor nos Tempos de Cólera”, de Garcia Márquez, é um livro admirável, “Memorial do Convento”, de José Saramago, é definitivo. Gosto muito do Saramago, Rubem Fonseca, João Cabral de Melo Neto, Drummond. Portugal tem poetas sensacionais.

 

“Requiem: Quem matou Millôr Fernandes? Perguntará a manchete do dia, enquanto o assassino vai ao enterro disfarçando a alegria.” Disse isto em 1971. Como é que imagina a sua morte?

Tenho grande dificuldade em imaginar a minha morte porque não sou muito bom em ficção!

 

Escuda-se nos aforismos, não é?

Não! O que é que vou dizer? Que estou chorando? Não sei.

 

Está com 84 anos, pensa muito na morte?

Talvez. Quem sabe se chego aos 85... Sabe aquelas pessoas de 80 anos que ficam indignadas porque um cara botou no jornal que estava com 81? Que diferença faz um ano?

 

E faz?

 Ué, talvez seja o último! Não faz diferença quando uma pessoa tem 18 anos, ou 30, 40. Na verdade, nem gosto de falar nisso. Aquelas figuras admiráveis do Cruzeiro, meninos como eu, quase todos morreram. Você está sendo esperado, a qualquer momento… Como é que vai ser? Conhece aquela coisa anedótica, que diz assim: César morreu, Jesus Cristo morreu, Lincoln morreu, e eu não estou me sentindo muito bem!

 

Quando é que o dinheiro e a necessidade deixaram de ser uma coisa premente na sua vida?

Não posso dizer nada, porque eu estava vivendo. Primeiro, não tinha dinheiro, não tinha dinheiro para comer. Com exactamente 20 anos, fui morar na Avenida Atlântica com um amigo meu chamado Fred; tinha dinheiro para morar num apartamento de seis quartos, eu ficava com os dois de baixo. Lidando comigo todo o dia, foi meu admirador até ao fim da vida. Uma vez, apareceu lá um jornalista, brilhante esse jornalista, ele se voltou, na frente de todo o mundo: “Oh Artur, você pensa que é muito brilhante?, eu também sou! Mas não vai se comparar com o Millôr, não!”

 

A Avenida Atlântica é a mais cara e exclusiva do Rio. Confere status. Ganhava bem, tão jovem?

Ganhava o maior salário da imprensa. Passei desses cem para doze e quinhentos, que nem sei nem o que é que é. Dava para comprar automóvel, que ninguém tinha na época, dava para ajudar as minhas irmãs (pagava um apartamento para morarem).

 

O dinheiro muda a vida das pessoas?

Muda, mas apesar do tempo breve, muda paulatinamente. Você conhece todo o mundo. A cidade era pequena, amabilíssima; chegava às dez horas da noite, sabia qual era o bar em que os amigos estavam. O Di Cavalcanti, que era o grande pintor, tinha uma namorada muito bonitinha, e comecei a namorar ela. A irresponsabilidade do jovem: eu ia para o estúdio dele e ficava namorando com ela na frente dele! Um dia ele me botou para fora! Achei que era um açougueiro! Mas é isso, dona Ana... Sabe que traduzi cento e dez peças? Quando as pessoas levam cinco anos para traduzir o “Hamlet”, eu sou bonzinho de julgamento: acho que o cara é bicha, que o cara é homossexual. Eu tinha um ímpeto de fazer. Enquanto isso estava jogando frescoball na praia – que fui eu que inventei.

 

Desportista era o que gostaria de ter sido?

Atleta, né? Talvez fosse correr. Quando a polícia proibiu o frescoball, comecei a me aborrecer. Eu corria oito quilómetros todo o dia, na praia, porque eu morava em frente. Está bem, senhora Anabela?

 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008

Millôr Fernandes morreu em 2012