Mónica Marques
“O interdito tem um valor sexual incrível, como se sabe”, escreve Mónica Marques no novo livro Para Interromper o Amor. Uma forma de interdito: um triângulo amoroso. Numa Rolim, escritora, vive no Brasil, está apaixonada por João Tito, e pela mulher deste, Antónia Quitério Parente. “Elas fumam erva e fazem amor”. Ele é um “ético-sensível”. Ela, a autora, garante que vale a pena cair de um prédio de sete andares.
“O coração é só um músculo com excesso de personalidade e notória mania das grandezas”. Para Interromper o Amor está cheio de títulos assim. Mas a maior parte puxa ao sexo. “Ele queria ver as duas juntas numa cama, ou não fosse um grande homem”. O livro mete Vasco Granja, Manuel Alegre candidato a presidente, Madonna a cantar Like a Virgin, o facto de Pedro Mexia (que apresentou o livro em Lisboa esta semana) ser um tesão, festas do Avante, neuroses burguesas, pipis depilados com bigodinhos de Hitler, panelas Le Creuset, a música dos Nouvelle Vague, o ar de abandono de Marilyn, conversas com o pai sobre os homens e o álcool, mas não sobre as mulheres e a cocaína, beijos e Fiódor (o Dostoievsky, sim), tudo ao mesmo tempo, hibiscos e jacarandás, aranhas e borboletas.
Dois anos depois do livro de estreia, Transa Atlântica, Mónica Marques, a voyeur, publica um livro de amor que as pessoas pensam que é um livro sobre lesbianismo. Entretanto fez 40 anos. Entretanto continua a viver no Rio de Janeiro com um marido que trabalha numa multinacional e dois filhos que gostam da vida do Leblon. Ela também.
Há frases assim: “Gosto demais do parlapié, tanto que me esqueço da performance”. Há frases assim: “… e tu dizes que estás molhada para mim e eu sinto o teu monte de Vénus e o teu clítoris duro e toda em mim e eu pergunto ao teu ouvido, sentes?...”
Há literatura que está na estante. E há literatura que está na cama. Esta, aparentemente, está na cama.
Conversa no Chiado. Sentada à mesa. Como se estivesse deitada. No divã.
Com que então, “puta bruta e melancólica”…
Todas as mulheres são um bocado putas. Sou bruta e melancólica. Puta é ser perversa. Bruta é não ser comedida. Melancólica é ser muito romântica. A personagem [Numa Rolim] é assim. Eu sou um bocado assim. Como a minha escrita é muito autobiográfica, as pessoas estão sempre à procura de mim naquilo que estou a escrever.
Não é uma tentação inevitável? Quando se fala do peito com sardas de uma das personagens, será possível não pensar nas suas sardas?
As sardas, essa descrição física, fiz de propósito – deixa lá baralhar isto mais um bocadinho, vamos fazê-los pensar que esta sou eu. Já vem do outro livro. Às vezes, em partes em que não sou eu as pessoas revêem-me, e às vezes em partes em que sou eu as pessoas não me revêem.
Um jogo. Uma sucessão de biombos. Diz-se que os livros de Numa Rolim são buracos para se espreitar para dentro dela.
Exactamente. Gosto de ver. Sem ser vista. É isso que fazemos quando estamos a ler. [Ao ler o meu livro] vê-me através de si, através de ideias pré-concebidas que tem acerca de mim. Isso é uma perversão boa. Eu, como leitora – que sou muito melhor do que como escritora – procuro sempre encontrar bocados dos escritores de que gosto nos livros que escrevem. Projectar-me neles.
É um disfarce.
É. Há um fio invisível – tenho-o dentro de mim muito bem marcado – que diz até onde é que me mostro. Se fizer isso bem, dá a sensação de que estou a mostrar tudo, e não estou a mostrar nada. Voltamos às perversões…
Como é que aprendeu a delimitar essa zona com tanta segurança, tanta precisão?
A linha imaginária fixei-a porque sou uma pessoa de certo bom senso, apesar de tudo, e porque trabalhei muito isso com o meu analista. Sei que aquilo é muito desbragado. Mas é uma coisa fingida. Este livro, o outro livro: o que as pessoas pensam que sou eu, não sou eu. É um desbragamento que não tenho na minha vida real. Quanto mais nos mostramos, mais seduzimos.
Ou não. O mistério, a ocultação, pode ser mais estimulante, fantasista. E isso é sedutor.
É verdade. Mas se há coisa boa nos livros que escrevo é a capacidade que tenho de mostrar e não mostrar. Mostro até ali e depois venho embora. Sou uma teaser.
O leitor procura-a na personagem de Numa Rolim, a escritora que vive no Rio de Janeiro. Não por acaso, um dos autores que é citado no livro é Philip Roth e expressamente o seu alter-ego Zuckerman, escritor e personagem recorrente. Serve-lhe de inspiração?
Sim. Veja no Woody Allen – é a mesma coisa. Faço isto inconscientemente. Gosto do Roth.
Porque é que o sexo é a maneira de esconder aquilo que verdadeiramente importa e de que não quer falar?
Faço isso como uma defesa, sem dúvida nenhuma. Se as pessoas pensam que me exponho falando de sexo, podem ir por aí. Mas há um pudor muito grande em falar naquilo que verdadeiramente importa. Ou melhor, falo. Falo camuflado. Talvez se consiga ler nas entrelinhas, nessa brutidão com que falo sobre sexo, uma parte de mim que não quero mostrar – e que são os sentimentos. Sinto-me atrapalhada a falar deles. Tenho vergonha de falar deles. São coisas muito íntimas.
Falar de sexo é mais fácil para épater la bourgeoisie.
Pronto. Querem?, eu dou. É uma parte que até agora foi mal resolvida em mim. Quanto mais falar, melhor fico, mais espanto.
Lê-se na página 52: “Quem escreve sobre sexo, não gosta de sexo ou não tem sexo”.
Tem razão.
Não sou eu que tenho razão. Não fui eu que escrevi isto.
Ahhh. Fascina-me. Gostava de ter uma boa relação com o sexo. Estou a aprender. Hoje estou melhor do que aos 18 anos. Mas isso é o percurso das mulheres. Uma mulher de 40 anos está muito melhor com o seu corpo, com o corpo das outras pessoas. Perdi-me. Ah. Sexo, todos temos. Sexo de qualidade, temos poucos. Quando se tem, é muito bom. O que é que quer que diga? O sexo pode foder-nos a cabeça. O sexo é overrated.
Está a disparar títulos… Tem a certeza de que quer falar da sua vida sexual?
Na minha vida, até agora, sempre foi mais importante uma carrada de outras coisas que o sexo. Posso ter uma relação óptima com sexo merdoso. Não lhe atribuía importância. Mas as mulheres de 30 e tal anos querem sexo bom. Deixam de fazer fretes.
“Ama-se com uns, fode-se com outros”.
Nessa frase está quase tudo. Podemos amar uma pessoa e não ter sexo bom com ela. É difícil conseguir juntar tudo numa única pessoa. Às vezes o sexo é melhor com alguém de quem emocionalmente estamos mais afastados. É isso que essa frase quer dizer. Gosto muito de amar. Gosto muito de estar apaixonada. Havia uma clivagem nítida entre o amor e o sexo. Eu não juntava as duas coisas. Deixou de existir essa clivagem. Estou mais resolvida. Penso que no próximo livro não vou precisar de escrever tanto sobre sexo. Ou seja, de me esconder tanto.
“A minha mãe diz que só escrevo sobre sexo”. É uma dúvida que nos percorre quando lemos os seus livros: como é que os pais dela a lêem?
Não faço ideia e não quero saber. Ontem estive com o meu pai, que tinha acabado de ler o livro, e… é difícil. É difícil para eles porque me procuram aí dentro, porque sou a menina deles, porque ficam baralhados. E é difícil para mim. Há uma parte auto-biográfica, em que me reconhecem. Mas depois, onde é que eu estou? É como se conhecessem a matéria-prima e depois não reconhecessem o resultado. Mas continuam a gostar de mim. A minha mãe não comenta. Não diz “que só escrevo sobre sexo”. Acho que pensa, mas não diz. Não acha engraçado que essa seja a única referência que se faz à figura materna e que este seja um livro sobre uma relação homossexual?
O que é flagrante é que os homens desta história não têm importância nenhuma, não têm qualquer peso.
Viu como fiz a cena de sexo com o homem? Não há sexo. Fala-se de tauromaquia e de uma tartaruga chamada Platão. Este é um livro sobre um amor entre duas mulheres. Essa leitura que fez – a de que os homens são neste livro figuras acessórias – é correctíssima para mim. Acho que se gosta de pessoas. No meu caso, já gostei de muitos homens e de algumas mulheres. Precisava de falar disso. E o livro ficou assim. Estou orgulhosa de o ter conseguido escrever. Foi preciso ir um bocadinho dentro de mim; não um bocadinho: muito.
Foi uma forma de exorcizar? O modo de o fazer foi através do sexo e não do amor. Eu não percebi que as duas mulheres do livro se amam.
Muito. [Exorcizar através do sexo] tem a ver com a forma como escrevo. Raramente digo a uma pessoa “amo-te”. Custa-me mais do que falar em sexo. Não sei explicar porquê. Neste livro eu só vejo ternura. E você diz-me que achou isto um amor muito sexualizado…
Achei.
Mas não é. Para si é, está no seu direito. Para mim, é um livro sobre o amor. A relação da Numa Rolim com o João Tito não é maltratada a nível emocional. Eles gostam muito um do outro. São cúmplices. Há um problema em mim que transparece nos livros: não consigo ter relações que não me deixem à beira do precipício. Sou pouco madura. Só gosto das relações quando há um perigo iminente. Quando há paixão. Não consigo transformá-las em amor.
Quando há o “ilícito”, “interdito”, “brincadeira com o fogo” – palavras usadas no livro.
Sim. Isso tem a ver com a minha incapacidade de gerir a banalidade dos dias. É difícil viver assim, é cansativo, é uma merda, uma chatice. Mas aprende-se nas sessões de análise.
Neste livro não há idas ao psicanalista. Antes disso: “… é como cair de um prédio de sete andares, mas vale a pena”.
Isso é a paixão. O Freud fala disso – desejo de morte?, uma tendência para o abismo? E quanto menos maduros somos, mais temos. O meu médico costuma dizer que cheguei lá com 15 anos e que agora tenho 18. Adoro viver a cair. De sete andares. Estou sempre a apanhar pancada, mas não desisto. É uma adrenalina enorme. Estou sempre a canibalizar os outros, sugar até ao tutano.
Implica viver numa esquizofrenia permanente. Porque está a atirar-se ao precipício e isso nada tem que ver com pôr os miúdos no colégio ou as rotinas de uma mulher casada no Leblon.
Completamente. É preciso sair desta esquizofrenia, mas até agora não fui capaz. Sou duas coisas, pelo menos. O lado burguês e o lado revolucionário. Dá trabalho e fico maluca, mas é assim que sou. Diria que o amor é o meu lado burguês e o sexo o meu lado revolucionário.
Estas duas personagens, Numa Rolim e Antónia, encarnam esses dois lados. Uma foi às festas do Avante com os pais, e “suportou” as canções revolucionárias…
E o Leo Ferré!
A outra é uma burguesa cujos pais fugiram para o Brasil no pós-Revolução. Contudo, neste romance polifónico, nem sempre identificamos no arranque de cada capítulo quem é que o conduz. Pode ser a mesma pessoa desdobrada em duas?
É a mesma pessoa desdobrada em duas. Sou sempre eu. Até nele [João Tito] sou eu.
Não são personagens autónomas?, são vozes suas?
São vozes minhas. Escrever é para mim um puro egoísmo. Eu só estou a falar comigo e a tentar resolver as minhas contradições e neuroses. Acho que isto é muito imberbe. Quanto melhor eu escrever, menos haverá confusão entre as personagens. Se acho que este livro é melhor do que o outro – escrevo melhor, houve uma evolução – tem de haver mais. Tenho de pensar mais em quem me lê. Fico assustada porque quero muito que as pessoas de quem eu gosto gostem do livro.
Porquê? Porque é que é a “criança pedinte sempre à espera da aprovação dos adultos” – que é outra frase usada no livro?
É um problema. Aí, no livro, está a luta de uma mulher a tentar ser uma pessoa melhor. Não quero ser essa mulher pedinte. Arranjei uma forma muito boa de me tratar – que é escrever.
O processo analítico é anterior à escrita ou são concomitantes?
São concomitantes. Muitas vezes saio das sessões, vou para casa e escrevo com clareza. O que a análise me tem dado é clareza. Faço há três anos e meio. Agora já consigo discutir com ele, já o ponho em causa. Vou fazer para o resto da vida, se tiver dinheiro. Fazia sentada, era difícil deitar-me. Um dia cheguei lá e disse: acho que me vou deitar.
É nessa mesma posição que se passa a maior parte do tempo no livro. É nessa, com o analista, que fala das coisas mais íntimas e de sentimentos.
Mas são coisas distintas. A minha vida toda deu-me mais gozo conversar do que foder. (Não sei se isto está a sair alguma coisa de jeito…)
No livro há várias “conversas de ir ao cu”. O que são conversas de ir ao cu?
Uma conversa de ir ao cu é uma conversa que se faz para engatar. A sedução entre as pessoas é um bocadinho uma conversa de ir ao cu. Já vimos tantas vezes que já reconhecemos.
Também se diz que os livros de Numa Rolim se destinam a leitores com problemas no baixo ventre. E que são “histórias de foda e desamor”.
Isso é verdade. Os meus livros são de desamor. São tristes. Aparentemente são de foda, mas é só desamor, é só uma procura.
Porque é que usa tanto vernáculo?
Da foda? Porque gosto.
O verbo mais usado no livro…
É foder.
E comer. Muitas vezes são equivalentes. Come-se aquela pessoa.
Acho isso bruto e carinhoso ao mesmo tempo. Lá está: sou uma puta bruta e melancólica.
A relação entre as duas é a materialização de uma fantasia? Escreve-se: “Fomos a nossa fantasia”.
Fomos a nossa fantasia e a de outros. Eu acho mesmo que todas as mulheres já gostaram de outra mulher. Acontece. É fácil acontecer. Fantasiam à volta disso ou não. Vão ou não.
No filme de Woody Allen Rosa Púrpura do Cairo, a personagem entra para dentro do filme. Passa a viver dentro da sua fantasia. O livro é uma maneira de viver do outro lado do ecrã?
O livro foi a minha maneira de viver essa fantasia. Era uma coisa em que pensei toda a vida.
Porque é que o livro está menos no Brasil – até na linguagem? Não há bunda dourada no sol de Ipanema. Não se fala de “boceta” ou “xoxota”. Fala-se do muito português “pipi”.
Tem a ver com o lugar onde está a minha cabeça. Neste livro, estava em Portugal. Não me saiu nada, nem no linguajar, nem no modo de escrever, de brasileiro.
Refere-se a Portugal como “um país de esquina”.
Somos pequeninos. A população de Portugal é a mesma do estado de S. Paulo.
Há várias referências às feiras do livro de Paraty e da Póvoa do Varzim, as Correntes D’Escritas. A sua situação, enquanto autora que as frequenta, é privilegiada? Porque é uma outsider, vive no Rio, tem outras formas de rendimento.
Não dependo. O mundinho literário português, pelo que me foi dado ver, é mesquinho. É uma coisa que me atrai e repele. Atrai-me porque gosto de livros, porque o meu sonho sempre foi este – escrever. Entrar e fazer parte faz bem ao ego. Mas é pequenino, as pessoas estão todas feitas umas com as outras. Tive uma sorte brutal – ter sido descoberta pelo Francisco José Viegas. Se eu tivesse sido editada pela Oficina do Livro não tinha as costas tão quentes. É verdade que se fui editada pelo Francisco José Viegas é porque tenho algum valor. Tive críticas muito boas ao primeiro livro. Espanta-me. A minha escrita não é convencional. Não consigo chamar-me escritora.
No livro, nas cenas de cama, José Rodrigues Miguéis olha da estante…
[riso] Sinto uma certa soberba [em relação ao meio] porque não preciso. Se disserem bem, dizem bem, se disserem mal, dizem mal. Não sei como é que este livro vai ser recebido, mas não me preocupa muito. Quer dizer…, se começarem a aparecer críticas destrutivas se calhar vou ficar abananada. Não percebo porque é que batem tanto na Margarida Rebelo Pinto. Deixem-na. É por ela vender muito? É porque a compram nos supermercados? É melhor comprarem a Margarida Rebelo Pinto ou a Mónica Marques do que andarem a… roubar.
No livro pergunta-se: “Qual é o mal? O mal é roubar, ou matar pretos e estuprar crianças”.
É. O mal são essas coisas ruins. A maioria das pessoas anda preocupada com uma série de coisas que não são essenciais. Eu devo estar iluminada. Os meus amigos dizem que estou uma chata, quase mística. Não bebo, não me drogo, não faço nada!, [riso] Apanha-me numa fase em que estou satisfeita, tranquila, e acho que temos é de ser felizes. (Acho que isto não correu bem.
Porquê?
Acho sempre que nunca corre bem.)
Publicado originalmente no Público em 2010