Nápoles
É fácil não gostar de Nápoles. Mas depois há Caravaggio.
Mas depois há aquela jovem mulher que dá o peito a um velho homem. Cena perturbantíssima. Alimenta-o, misericordiosa. Um homem que podia ser o seu pai. Dizem os estudiosos de Caravaggio que é o pai. Como podem saber? A possibilidade torna a pintura mais inquietante.
Só por causa desta cena, para a ver de perto, vale a pena ir a Nápoles.
No mesmo quadro há um morto retirado de um cenário de peste, cores tenebrosas, perplexidade. Anjos feitos de uma carne que apetece tocar. O mundano a imiscuir-se no espaço do sagrado. A Bíblia está no meio de nós, poderia dizer Caravaggio, defendendo-se. E há uma macieza voluptuosa nos tecidos. Pescadores, batoteiros, brigões. Forasteiros a quem se mata a sede e saram as feridas. Músculos, estranheza, espanto.
Só por causa de Caravaggio já vale a pena ir a Nápoles. Ir a Nápoles é entrar num quadro de Caravaggio.
Vamos por partes. Caravaggio chegou a Nápoles em 1606, condenado à morte. Morreu sem honras fúnebres em Porto Ercole, enquanto esperava. Febre amarela, presume-se. Nos anos de fuga – quatro – errou por Nápoles, Sicília, Malta. Sobretudo Nápoles.
Era, como a cidade, litigante, frequentador de casas de má fama, impetuoso. O tipo de pessoa que dorme com a adaga debaixo da almofada. Que a usa se necessário. (Matou um homem numa taberna – dívidas, jogo – e daí a condenação). E que conhece de perto as coisas impensáveis da vida (como uma filha matar a fome ao pai dando-lhe leite do seu peito).
A tela é gigante e foi feita para a igreja Pio Monte Della Misericordia. Está no altar principal. Ao lado há Ribera, Giordano, outros artistas, arquitectura barroca.
Há outras telas de Caravaggio pelas quais vale a pena ir a Nápoles. O Martírio de Santa Úrsula, que consta ser a última obra que pintou, e que pode ser vista como jóia única no centro cultural de um banco, quase a chegar à Piazza Plebiscito, ainda na Via Toledo. Ou o Cristo flagelado, sensual como um herói, quase demasiado bonito para um Cristo flagelado, em exposição no Museu Capodimonte.
A Flagelação ocupa o ponto nevrálgico de uma sequência de salas. Quando se olha de longe, é ainda reconhecível o corpo luminoso de Cristo, a emergir de um fundo escuro. Apesar do título e dos carrascos que o ladeiam, não é um corpo mortificado. O movimento podia ser o de uma dança triste.
Caravaggio buscou em Nápoles, sob a alçada do vice-rei espanhol, distância e protecção. É acolhido pela família Colonna. Confia que em Roma o Cardeal Scipione Borghese, sobrinho preferido do Papa Pio V e coleccionador de arte, possa interceder por ele. Espera o perdão papal.
Enquanto isso vive como pinta. A inversa também é verdadeira. E Nápoles é o cenário perfeito para esse balanço desregrado, profundamente desrespeitador. Partilham uma têmpera que em nada se parece com o ambiente lustroso de Roma. Os pintores maneiristas, as convenções, a representação de anjos rubicundos pertencem ao passado. O ar que se respira é ameaçador e sexual ao mesmo tempo. Contagia, como uma peste a que não se quer resistir. Parte do fascínio da cidade está aqui, nesta tensão. No medo e no sexo. Caravaggio soube captá-lo, traduzi-lo.
É difícil não gostar de Caravaggio. Através dele, é fácil gostar de Nápoles.
A cidade não mudou tanto assim desde os primeiros anos do século XVII. Fora já não ser uma das mais poderosas cidades do mundo, como foi no período dos Bourbons. (Há retratos da família real pintados por Goya no Capodimonte.)
O carácter indómito, que não chamou Caravaggio a Nápoles, mas que lhe assentou como uma luva, mantém-se. Mais o orgulho. As caras das pessoas, agrestes, fustigadas, curtidas, coincidem com as que Caravaggio pintou (estão nos carrascos do Cristo flagelado). Ostentam uma rudeza passional que não se encontra em mais nenhuma Itália.
As ruas também são assim. E o chão, escuro, vulcânico, irregular. As fachadas denotam a passagem de espanhóis, italianos, normandos. Séculos de sedimentos, riqueza civilizacional. A imponência do Vesúvio, erguido sobre o golfo, traz a memória de Pompeia, do que é destruído.
Tudo pode estar prestes a entrar em erupção. Tudo se passa na rua. Sem cerimónias. A roupa pendura-se no pátio. A vida íntima fica disponível para inspecção. A exaltação é assumida como um atributo honroso. “Putana” é uma palavra para gritar bem alto. A abjecção, que por natureza não é palpável, é palpável – e não é forçosamente má.
Nápoles é isto. É fácil ter medo. É fácil não gostar.
Contudo, o mundo está ali concentrado. O mar, a terra, a fertilidade, as pessoas. O frémito da morte. Na Odisseia de Homero há versos que falam de a costa estar pejada de sereias. Goethe escreveu: “Consigo entender bem todos aqueles que perdem a cabeça em Nápoles, e lembrei-me emocionado do meu pai que ficou com uma impressão indelével precisamente daquelas coisas que eu agora vejo com os meus próprios olhos. E, do mesmo modo que se diz que quem alguma vez viu um fantasma nunca mais tem alegria, também dele se poderia dizer o contrário, que nunca mais poderia ser infeliz porque se lembrava sempre de Nápoles” (Viagem a Itália, 1787).
O que toda a gente sabe de Nápoles: elevado grau de pobreza, as mortes da Camorra, a sentença que pende sobre Roberto Saviano (que descreveu a organização mafiosa no livro Gomorra). As greves de recolha de lixo. A imundice geral. A densidade populacional que faz que a privacidade seja um luxo. Os carros invariavelmente amolgados, raspados. As motas que surgem do nada e que têm prazer na poluição sonora. Os gritos ferozes de mulheres desavindas, os cabelos rodados como crinas. A feiura que não se tenta disfarçar.
Mas depois há Pompeia, ali o lado.
Outra porta para entrar em Nápoles: o Museu de Arqueologia, na Piazza Cavour, onde estão os tesouros de Pompeia.
É incompreensível que milhões de pessoas visitem o parque arqueológico de Pompeia e não o Museu de Arqueologia de Nápoles. É certo que em Pompeia se tem uma noção de escala que não se pode ter senão lá. E tem aquelas figuras que foram apanhadas pela lava enquanto faziam vida de todos os dias. Um casal abraçado. Um homem que chora, dobrado sobre os joelhos. Um cão. Vê-los petrificados é uma experiência estranhamente comovedora.
Mas os frescos, os mosaicos, as estátuas, pequenos artefactos, estão no museu.
Para se saber, antes mesmo de ir, que aquele é um dos melhores museus do mundo (palavras bem medidas) só é preciso ir ao youtube e ver uma sequência de Viaggio in Italia, de Roberto Rossellini.
Ingrid Bergman, então mulher do realizador, visita o museu e é guiada por um homem de sobretudo. Começa por ver o grupo de dançarinas, esculpidas em bronze, a harmonia dos seus movimentos. Têm diferentes posições; uma aperta o vestido, como se o vestido tivesse subitamente descaído; outra, segundo o guia, “tem a expressão da minha filha Mariana”. São caras como aquelas que encontramos na rua. Por acaso, têm 2200 anos.
A visita prossegue. Um sátiro de uma vila de Pompeia, divindade pagã, perigosa criatura dos bosques. Outro sátiro, este embriagado, imagem do deboche. A seguir dois atletas, em posição de corrida. Estão colocados, no filme de há quase 50 anos e agora, ao nível dos nossos olhos, e têm um olhar penetrante. A impressão que causam é a de uma interpelação directa, quase intimidatória.
Depois são apresentados os imperadores. Caracala, cujo busto veio das termas com o seu nome; testa franzida, expressão enigmática. “Este é Nero, deve ter ouvido falar dele. Tem a cara de um bebé, mas era um louco. Incendiou Roma, matou a família inteira, até a mãe”, explica. Tibério, que passou uma boa parte da vida na vizinha ilha de Capri.
Para o final da sequência, as duas peças mais importantes do museu, já então: o Touro Farnese e Hércules a Descansar (também da colecção Farnese).
O Touro é a maior peça da Antiguidade feita a partir de um único bloco de mármore. Uma verdadeira montanha onde são esculpidos dois homens valentes, uma mulher suplicante, cães que ladram, personagens que assistem. Foi restaurada por Miguel Ângelo e diz-se que é pesada demais para ser mexida. Veio das termas de Caracala, não é fácil descortinar como.
No lado oposto da mesma sala, Hércules é a encarnação da virilidade. Colossal, músculos desenhados, pernas elegantes. É arriscado usar a palavra encarnação quando se descreve uma estátua. Mas a este Hércules apetece acariciar. E também a mão dele parece pronta a acariciar.
Rossellini filma-o de cima para baixo, fá-lo desmesurado. Ingrid observa-o, seduzida, “oh, it’s wonderful”. E só depois se mostram as maçãs que Hércules guarda na mão, atrás das costas, num gesto delicado. As maças, três, tornam Hércules mais humano. Apesar da força. É uma escultura prodigiosa e há quem tenha vontade de ir a Nápoles só para a ver. (Sim, sou eu.)
A Viagem a Itália de Rossellini, que leva o título do livro de Goethe (a personagem de Ingrid lê-o estirada ao sol), e que é adaptado por Scorsese no documentário A Minha Viagem a Itália, não mostra outros tesouros do museu. Nomeadamente os frescos e os mosaicos.
O mais famoso dos mosaicos ocupa uma parede e retrata Alexandre na batalha de Isso. Bucéfalo parece galopar. Alexandre tem na cara o ímpeto que o fez ser O Grande.
O mais intacto dos frescos ilustra O Sacrifício de Ifigénia, mito da Antiguidade, posto em tragédia por Eurípedes.
Há o retrato da poetisa Safo. A cabeça de Sócrates ou Homero. Um casal burguês que posa para a posteridade. Aves e peixes e vegetais. Peças de vidro azul, verde-água, amarelo.
Há o gabinetto secreto. Ninfas e sátiros em animado forrobodó. Serviços anunciados à porta de lupanares. Gladiadores em pose priápica. Amuletos com forma de pénis. Casais a copular. Até 1967 era proibido vê-los.
Os vigilantes do museu conversam entre si como se estivessem a comer um panini ou a discutir o génio de Maradona. Que importam os frescos? Ouve-se o barulho dos carros. Dá a sensação de estarmos no que o edifício originalmente foi: um palácio onde podem ser vistas maravilhosas peças de arte, e não um museu.
A rua é outro mundo. Na rua está-se no teatro da vida.
A dois passos fica o centro histórico, o emaranhado de ruas onde quase tudo acontece. Uma igreja em cada quarteirão (é lá que fica a tela de Caravaggio). Palazzos arruinados onde vivem vinte famílias. Ruas estreitas. Spaccanapoli, a artéria interminável que corta a cidade ao meio. Mercearias onde prometem “vera mozzarella di bufala”, e azeite e vinagre e especiarias para la pasta. Pequenas fábricas de limoncello. E apesar dele, pastelarias onde o babá é embebido em rum. Babá mini, normal, gigante como um falo gigante (os napolitanos são como aquelas pessoas que dizem uma brejeirice e piscam o olho). Bolo delicioso, o babá.
E as pizzas. As melhores pizzas do mundo, na Sorbillo, por três euros e meio.
E a pasta. Um linguine com courgette e queijo, feito em dez minutos, no ristorante E Come Sarà (abriu há pouco na Via S. Chiara. Marilisa, a cozinheira, é uma jovem arquitecta).
E as pessoas hiperbólicas. As que transformam um carrinho de bebé num carrinho de venda ambulante. As obesas, desdentadas cedo demais. As que sucumbem a uma sociedade que rouba e desfigura. As que vivem em clã (todas!). As que fazem da transgressão um modo de vida, como os seus pais e os seus avós, e os pais e os avós destes. (Goethe ouviu a um homem: “Se vocês fazem novas leis, nós temos de começar de novo a pensar como é que as podemos infringir; com as velhas, já há muito tempo que o sabemos”.)
E as que vivem “numa espécie de abandono extático” – como resumiu o poeta alemão – e que são todas, também.
Totò personifica esta gente. Lembram-se dele?, aldrabão e adorável, irrompia pelo ecrã a gritar: “I io pago!” De Filippo e a commedia dell’arte personificam esta gente. Intoxicante, enigmática. De quem é fácil não gostar.
Mas depois as caras perpetuam-se na nossa memória. Continuamos a ouvir as discussões que presenciámos. O merceeiro que respondeu com uma canção quando comentámos que fazia frio – che freddo fa a Napoli! A imagem de Capri a meia hora de barco. A ideia de Pompeia a 20 minutos de comboio. O barco que parte para a Sicília todas as noites. O caminho sinuoso da costa amalfitana, a dois passos. O Vesúvio que se vê de todo o lado. Dois homens que se cumprimentam como n’ O Padrinho, em pleno meio dia. O olhar desdenhoso de Marilisa em relação aos italianos do norte – tudo na forma, pouco na substância. (Goethe anotou: “As pessoas vêm todas para a rua, ficam sentadas ao sol enquanto este brilha. O napolitano julga estar de posse do paraíso e tem das terras do norte uma ideia muito triste: é só neve, casas de madeira, grande ignorância, mas dinheiro não lhes falta.”)
Ninguém citou a mais famosa das frases sobre a cidade: “Vedi Napoli e poi muori”. Vê Nápoles e depois morre. Talvez não se possa falar de Nápoles sem falar de morte. Deve ser porque já se pode morrer depois de ver a vida de perto.
Publicado originalmente no Público em 2012