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Anabela Mota Ribeiro

No Chile, o passado já passou?

11.03.14

1. Bachelet e Matthei

Parece um encontro de iguais. Não é. Michelle Bachelet e Evelyn Matthei não são amigas, nunca foram. Conheceram-se na infância, quando os seus pais, generais da Força Aérea, estavam colocados na base Cerro Moreno no norte do Chile. Michelle tinha seis anos, Evelyn tinha quatro. Brincaram juntas. Não coincidiram no colégio. O folhetim que tem sido alimentado do reencontro de duas siamesas que o golpe de Pinochet separou, além de falso, distorce o que verdadeiramente está em causa nas eleições presidenciais chilenas.

Os seus pais, Alberto Bachelet e Fernando Matthei, foram amigos próximos. Tinham afinidades comuns, apoiavam-se, plantaram árvores no jardim da casa nova de Matthei.

Para Michelle, o pai da sua rival mais directa era, e continuou a ser, o “tio Fernando”. Foi assim que se dirigiu a ele quando o reencontrou em 2009 e era presidenta do Chile. Apertou-lhe a mão direita e usou a esquerda para o abraçar.

Fernando Matthei não era um político convencional. Era o menos político dos generais que integraram a Junta Militar que tomou o poder na sucessão do golpe de 1973. Não se parecia aos católicos das Forças Armadas que tinham na parede uma imagem da Virgem Maria. Apoiou o conservador Alessandri nas eleições em que Allende saiu vitorioso, ao contrário do seu amigo, mas esta discrepância não provocou danos na relação.

Alberto Bachelet era um general constitucionalista. Não é estranho que não tenha aderido a um golpe que depôs um presidente constitucionalmente eleito. A sua lealdade a Allende – em última instância, a um princípio de constitucionalidade que foi violado com a tomada do poder pelos militares – custou-lhe a prisão, a tortura, a morte. Foi acusado de traição à pátria, esteve detido na Academia de Guerra, morreu em Março de 1974 na sequência da tortura de que foi alvo.

Matthei regressara de Londres, onde se encontrava aquando do golpe, no fim do ano de 73. Assumiu a direcção da Academia poucos meses antes da morte de Bachelet. Não fez um gesto para o salvar. Assumiria anos mais tarde: “Confesso que nunca o fui visitar, nem nos subterrâneos da Academia nem na prisão, facto do qual me envergonho”. Matthei esclareceu também que a Academia era um lugar onde quase não ia e sobre o qual não tinha controle. Mesmo que formalmente fosse o responsável pelo que ali acontecia. A viúva de Bachelet reafirmou em 2012 a amizade que os une: “O general Matthei foi sempre um amigo. Tenho a certeza de que não esteve na Academia de Guerra no tempo em que o meu marido esteve lá”.

O gesto de Michelle Bachelet – aquele abraço – foi entendido por muitos como um gesto de reconciliação. Começavam a ser cosidas as feridas da ditadura. Uma mulher, filha de um militar, ela mesma presa e torturada no centro Villa Grimaldi, em 1975, era presidente. O passado começava a passar e um diálogo necessário era feito, ou encarnado, por ela.

Não é despiciendo que tenha sido o general Matthei a anunciar a derrota de Pinochet no plebiscito de 1988, que pôs fim à ditadura (embora sejam muitos os fins simbólicos e efectivos da ditadura). Como se vê no filme No, de Pablo Larrain, (o filho de um senador de direita que recentemente manifestou apoio a Michelle Bachelet), foi o anúncio-assunção de Matthei que impossibilitou um cenário de fraude eleitoral. “Dizer que se salvou graças a esse anúncio... salvar é uma palavra excessiva. Mas o seu lugar na história ficou matizado”, considera Patrício Fernández, director do semanário de esquerda The Clinic.

Fernando Matthei era membro da Junta, foi nessa qualidade que se pronunciou. A sua filha Evelyn, actual candidata, votou pelo Sim. Ou seja, pela continuação do pinochetismo. Se não fosse por outras razões, essa seria suficiente para impossibilitar a sua vitória nas eleições deste domingo, pensa Fernández. “Creio que o Chile nunca vai eleger um presidente que votou pelo Sim. Talvez na cabeça das pessoas isto não exista de modo explícito. Mas no final, se procurarmos o núcleo envenenado, é este”.

O peso deste apoio de Evelyn Matthei desencadeia uma série de questões complexas. Era possível ser de direita e recusar o golpe e o pinochetismo? Era. Sebastián Piñera, presidente cessante, fê-lo. Votou pelo Não. Em Setembro passado, quando se assinalaram os 40 anos do golpe, falou dos cúmplices passivos da ditadura. Não há muito era impensável que um presidente de direita, em democracia, pudesse dizer algo assim.

Que direita, então, é a de Evelyn? E quem é esta mulher, a primeira mulher de direita que concorre às eleições presidenciais?

 

2. Evelyn e Michelle

Evelyn converteu-se numa personagem que não é ela. Candidata de recurso, substituiu o muito conservador Pablo Longueira que abandonou a corrida alegando depressão. A candidatura não foi construída em torno da sua personalidade. Evelyn deixou de ser a economista liberal, que põe os filhos numa escola inglesa e não-católica, que diz palavrões e pode mandar à merda o seu interlocutor, para passar a ser uma personagem bem comportada, onde tudo está correcto (ou, pelo menos, se adequa a um protótipo). Foi deputada, senadora, ministra. É preparada, trabalhadora, inteligente. Não é a tonta frívola que o The Clinic parodia quando a mostra preocupada a franja... O comentário, sexista, concorda o director, deve ser entendido como um momento humorístico. Patrício Fernández resume a metamorfose da candidata: “Era um pouco louca, o que é divertido. E acabou a ser uma vassoura seca [riso]”.

Os comentários sexistas também atingiram Michelle Bachelet, mas apenas na primeira eleição presidencial (2006/2010). Era “a gorda” que não ia dar conta do recado. Não ia dar conta do recado por ser gorda e por ser mulher. Mas não há comentários deste teor nestas eleições. 

A candidatura de Evelyn, continua o director do semanário, “é um desastre. Não me atreveria a dizer que é a quintessência da ditadura, mas é representante disso, dessa direita. Não é uma candidatura de um projecto de direita renovador. Piñera, que é o seu inimigo principal, encabeça essa direita. Matthei, se se confirmarem as sondagens, vai ter o pior resultado da direita em toda a sua história.”

De certa maneira, Evelyn Matthei parece refém de uma escolha que ela própria fez ao votar Sim no plebiscito de 1988. Não foi capaz de desfazer este nó, ao contrário de outros sectores da direita que fizeram um mea culpa em relação ao passado ou disseram: chega! Nesse sentido, ela é menos a filha do seu pai do que do pinochetismo.

Michelle Bachelet beneficia deste momento conflitual. Partiu com 300 metros de avanço sobre os outros candidatos – são nove, no total. Em Janeiro deste ano, antes mesmo de anunciar que era candidata, uma sondagem indicava que tinha mais de 50% das intenções de voto.

Há uma história e uma imagem que talvez a definam. Michelle é ministra da Defesa do presidente Ricardo Lagos (2000/2006). Cenário de cataclismo, ruas alagadas, pessoas em botes. Bachelet aparece em cima de um carro militar, com um gorro militar, ao lado de militares, para ajudar a população. Essa imagem converteu-se no símbolo da reconciliação. Do começo da reconciliação efectiva.

Que tem ela? Uma mulher socialista, filha de um homem que foi perseguido e morto, que conheceu (bem como a mãe) a experiência da tortura e do exo de Pinochet em Londres, em 1998. Com a morte de Pinochet, em 200m socialista epois de chegar a secretou pela Sim. Ou seja, pelílio, chefia os militares. Era uma metáfora do tempo que aí vinha.

E isto leva-nos a esta eleição e ao regresso de Michelle Bachelet para a disputar. Porque é que veio depois dos quatro anos passados na ONU, onde havia boas possibilidades de chegar a secretária-geral? Porque a transição não estava completa. Porque o acerto de contas com o passado não está concluído. Muitos passos foram dados. Coincidiram com a prisão de Pinochet em Londres, em 1998. Com o primeiro governo de um socialista depois do golpe, Lagos. Com a primeira eleição de Bachelet, em 2006. Com a morte de Pinochet, nesse mesmo ano de 2006. O que falta fazer para que esse passado chileno esteja enterrado?

“Tanto para fazer”, dizia Michelle Bachelet esta quinta feira, no discurso de encerramento da sua candidatura, no parque Quinta Normal. (Antes de discursar, num ambiente impensável na Europa, Michelle dançou cumbia ao som de uma das mais antigas orquestras tropicais do Chile, a Sonora Palacios, cantou canções revolucionárias, letra por letra, e só nesses momentos abandonou o sorriso cálido para assumir um semblante grave.) 

Michelle não precisa de apresentar-se com mais do que o que é: simpática, carinhosa, consensual. “Vocês conhecem-me, sabem que não faço promessas. Assumo compromissos.” É a que ouve para decidir. La Madre.

Em meses de campanha, falou de três ideias, apenas. Uma reforma da Constituição, uma reforma tributária, educação gratuita para todos. Estes são os mecanismos que lhe permitirão combater o que identificou como “a grande ferida do país: a desigualdade”. 

3. O que aí vem (ou uma espécie de epílogo)

A direita, como se viu, não está incondicionalmente com Matthei. Mesmo os empresários, que tradicionalmente investem em candidatos de direita, colam-se ao valor seguro que Bachelet representa. O país continua a crescer 5% ao ano e nem o discurso usado por Matthei nesta etapa final, destinado a reavivar os medos da direita, parece surtir efeito: “Vamos perder o que ganhámos. Porquê destruir e fazer tudo do zero?”

Se as sondagens se confirmarem, Michelle Bachelet vence este domingo. Mas o grau de incerteza quanto aos resultados das legislativas, que são simultâneas, é grande. Eduardo Sepúlveda, editor de reportagem do diário conservador El Mercurio e um dos jornalistas mais relevantes no meio político chileno, diz-nos: “Esta é a primeira eleição presidencial em que o voto não é obrigatório. Bachelet tem uma vantagem gigantesca, mas não se sabe se essa vantagem a obriga a uma segunda volta. Nem se sabe como é que a maioria de Bachelet vai lidar com o parlamento. O que pode ou não fazer depende da quantidade de parlamentares que conseguir obter. Se a maioria que ela pede se reflectir nos votos da sua coligação, vamos ter um governo extremamente poderoso, capaz de fazer mudanças profundas no Chile. Senão, as mudanças terão de ser mais negociadas.”

A mulher que hoje se apresenta a votos não é a mesma que governou entre 2006 e 2010. No término do mandato, o dramaturgo Guillermo Calderón, escreveu um discurso de despedida – imaginário – onde se dizia assim: “Mas se se recordam, não me elegeram para mudar tudo. Elegeram-me para outra coisa. Para sermos felizes por um momento. Para que lhes amassasse o pão com sabor a justiça. Foi um grande triunfo de todos”.

A peça, Discurso, que foi representada em Portugal na Gulbenkian, também mostra que, apesar de todas as diferenças, Michelle é a mesma. A que diz: “Tenho filhos maravilhosos, sou filha de militar, também toco guitarra, tenho uma vida de filme, tenho dores no peito, senti um frio atroz na Alemanha [onde esteve exilada], estive exilada da vida, estive na lista negra dos maus, sou pediatra, choro abraçada às minhas amigas, e não convém esquecer que sou ateia”.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013