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Anabela Mota Ribeiro

Noé Sendas

30.11.14

Noé Sendas nasceu em Bruxelas em 1972. Vive entre Berlim, Madrid (e, menos, Lisboa). Estudou na Escola António Arroio e no Ar.Co, no Royal College of Arts, em Londres e no Art Institute of Chicago. Os seus suportes preferenciais são a fotografia e o vídeo. A releitura (de obras de Beckett ou de Fellini) e a manipulação da imagem servem-lhe para questionar as noções de identidade e autoria. Desde 2009 trabalha a série Crystal Girls, na qual transforma uma imagem de época através de várias técnicas de sabotagem.

Metamorfose é uma palavra que vai bem com ele.

 

Se lhe perguntar quem é a sua família, responde o quê? Pode nomear pessoas, pinturas, lugares, passeios... Acho que estou a pedir que desenhe um pequeno mapa. Bem sei que é um pedido impossível... Mas vimos de algum lugar, e sentimo-nos em casa junto de algumas pessoas.

A minha família? A de carne e osso, a que nasce, envelhece e morre comigo. A das longas paixões e amizades partilhadas. Mas, sim, existem imaginários, obras às quais me adoptei, às quais me moldei e que carrego comigo.

 

Houve um tempo em que percorreu os passos de Samuel Beckett. Que tipo de experiência procurava, mais do que tudo? O que interessa é a busca? E o que é que se encontra?

Não encontrei nada. Ou seja, não encontrei nada que se assemelhasse à experiência de ter lido Molloy. Uma obra que me fulminou. Acho que foi uma tentativa de me recompor dessa mesma leitura. Necessitava de mais tempo com o autor. Primeiro li várias biografias. Numa delas descobri referências aos diários inéditos da sua primeira passagem por Berlim. Fui a Londres ler estes diários, que acabei por copiar à mão, na íntegra, para um pequeno caderno. Depois disso fui dar um passeio por Berlim com o autor, até me sentir preparado para me despedir do Sr. Beckett e seguir outro caminho. Durante esse tempo dei por terminada a série das figuras-esculturas Nameless e comecei a trabalhar a série das figuras-fotografias Crystal Girls.

 

O que é que o faz apaixonar-se por uma imagem (que a seguir manipula)?

Intuitivamente agrupo o meu arquivo de imagens em várias categorias. Sou incapaz de manipular uma imagem que considere perfeita. Ficaria certamente a perder. São intocáveis. Acabo sempre por trabalhar as imagens tortas, por exemplo as que considero que têm excesso de informação.

 

As suas imagens situam-se muitas vezes num lugar habitado pelo silêncio, pelo não-dito. E dizendo algo, as imagens estão longe de dizer (quase) tudo. O que importa é o mistério?, o espaço que fica para o romance?

“Um lugar habitado pelo silêncio…”: curioso, quando trabalho estou geralmente com headphones, oiço Thom Yorke, David Byrne, entre outros (poucos). Oiço em loop, horas sem fim, e salto da cadeira se alguém me interrompe! É na velocidade, na repetição de temas como “Skip Divided” que encontro o meu silêncio. Isto é um faits divers, mas queria chegar a esta letra do Thom York... É possível por aqui um link?

 

Sim.

É http://www.jango.com/music/Thom+Yorke?l=0. Acho que responde ao que me importa no acto de sabotagem de uma imagem.

 

Há uma componente narrativa que foi acentuada nos últimos anos? É uma forma de prolongar a fantasia, o gesto criativo de outros, de se apropriar e efabular por sua conta?

Por um lado, quando um artista começa a ter um corpo de trabalho, inevitavelmente começa a projectar uma narrativa para esse corpo. Daí também os apagamentos que os artistas fazem, por vezes, de fragmentos do seu trajecto. O duelo que existe em cada obra, entre o (ar)riscar e o apagar, acumula-se no corpo de trabalho. Por outro lado, nos trabalhos mais recentes que tenho vindo a desenvolver voltei ao palimpsesto, àquilo que se raspa para escrever de novo, como um método de edição/sabotagem – e aí pode resultar uma eventual narrativa.

 

Como comunica com as diferentes artes, nomeadamente o cinema e a literatura? E a dança? Estou a pensar em muitas imagens onde o corpo é central.

Enquanto fazedor e espectador, tudo depende das minhas limitações criativas, conceptuais. Sei que tenho mais intuição para um objecto fixo. Tenho mais facilidade em apreender e avaliar a edição por sobreposição de planos do que por sequência planos.

 

Pensemos agora na oficina: como é que faz o que faz? Vive há anos fora do seu país, entre Berlim e Madrid. Como é que isso contamina o que faz?

Existem vários conflitos, que considero saudáveis e que por isso vou mantendo. À partida sou sedentário e solitário, mas por vezes tenho urgência em ser arrebatado por estímulos exteriores. Hoje tenho três oficinas: uma em Berlim, outra em Madrid e mantenho a de sempre em Lisboa. Cada vez que abro a porta da minha oficina, estou num contexto, cidade, cultura, grupo de amigos distintos. Necessito dessa desorientação, dessas lufadas de ar fresco que me obrigam a estar mais atento, mais alerta, menos afunilado sobre mim mesmo.

 

Há alguns anos que trabalha com estas fotografias (como é que lhes chama, dentro de si)? Ciclo prolongado? Como é que olha para o que fez antes? O que há em comum entre estes vários elos da cadeia?, o tema da identidade?

Às Crystals Girls? Uma ongoing series. O tema da identidade? Não sei. Sou muito consciente do que é um corpo de trabalho. De alimentá-lo de modo a que este continue com fome, inquieto, vivo. De permitir que este corpo se obstine numa só ideia durante anos, pela necessidade de um apuramento, mas estar sempre atento, muito atento, para travar a fundo e mudar de direcção antes que estrada se esgote. Depois, como em tudo, há as sortes e os azares da vida, e é questão de os optimizar.

 

A última pergunta é sua: quer “perguntar-se” o quê?, quer perguntar o quê (a quem?) Dito de outra maneira: a pergunta é central no seu processo criativo? Quais são as perguntas-motor (se as há)? Dito ainda de outra maneira: apetece-lhe perguntar ou afirmar?, e o quê? Que é que lhe atravessa agora a tola, como um feixe de luz.

Há sempre uma pergunta sem resposta.

 

 

Esta entrevista foi feita por escrito e propositadamente para este blog em Novembro de 2014.