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Anabela Mota Ribeiro

Nuno Artur Silva

23.04.14

Nuno Artur Silva não foi à escola no 25 de Abril de 74. A mãe ficou aliviada: “Já não vais à tropa”. Jogou à bola quando devia ler O Capital, foi professor de português, sublinhou para os alunos, entre outras, a palavra “iglantónico”, de Dinis Machado, no livro O que Diz Molero.

Uma coisa iglantónica é uma coisa extraordinária, sem dimensão, surreal. Foi mais ou menos o que aconteceu neste país em 40 anos. O mapa é o mesmo e Portugal não é o mesmo. Quatro fases (segundo ele). Quais são as grandes personagens deste enredo que é o nosso? E quais são as mudanças, recorrências, retrocessos? Para Nuno Artur Silva, há o tipo que tem a chave da casa de banho, o austero e honrado pai de família, o pachola...

É fundador e director geral das Produções Fictícias (o viveiro criativo de onde saíram personagens como o Diácono Remédios, os Gato Fedorento, que descobriu Bruno Nogueira...). É director do Canal Q. É também aquele gajo que aparece na televisão a moderar o Eixo do Mal e a dizer umas piadolas (como “armani ao pingarelho”).

 

“Onde é que estavas no 25 de Abril?”, dizia um personagem interpretado por Herman José no Herman Enciclopédia. Comecemos por aí para falar da revolução.

O Eduardo Madeira e o Henrique Dias trouxeram-me um texto divertidíssimo em que havia um personagem chamado Artista Bastos, que era uma paródia [ao Baptista Bastos]. Fizemos uma vez e foi tão hilariante que decidimos repeti-lo.

O Baptista Bastos fazia um programa na SIC em que fazia esta pergunta recorrentemente. O que o humor faz é a deslocalização do contexto. É fazer o que foi feito com o mictório do Duchamp. Algumas frases que são atribuídas aos humoristas são coisas que estes agarram e deslocam do contexto.

 

Essa era uma delas. Havia outras.

O “não havia necessidade, o artista é um bom artista” é uma frase que a mãe do Herman lhe dizia quando ele se excedia. O José de Pina, o Miguel Viterbo e eu imaginámos um provedor, padre, que dissesse aquela frase. O mesmo com o Lauro Dérmio. O Lauro António apresentava os filmes e dizia: “Let’s look at the trailer”. Muitas vezes a imitação exagerada, a caricatura, marca o traço e a partir daí olha-se para o original de outra maneira.

 

Já identificou várias personagens que marcaram a cultura pop dos últimos anos. Quais são os grandes personagens-tipo dos portugueses?

O grande personagem-tipo da sociedade portuguesa contemporânea é o facilitador. É o personagem central da vida política portuguesa. Provavelmente já estava no Eça – porque tudo está no Eça. O facilitador é o middle man, o homem que apresenta este àquele. O que não cobra mas cobra. São os tipos que passam pelo Governo, vêm dos partidos, facilitam os negócios. E depois vão beneficiar deles mais à frente quando saírem do Governo. Há os pequenos e os grandes facilitadores. É tudo uma questão do nível a que se está na escala alimentar.

 

Se se come de boca aberta ou se se toma o pequeno-almoço no Ritz.

Sim. E há uns que são usados pelos outros.

 

É por sermos tão poucos e tão pequenos que há tantos facilitadores? Toda a gente conhece toda a gente mas é preciso alguém que apresente, que abra a porta.

Um dos problemas portugueses centrais é o da justiça, claro; mas o outro é o da regulação. Não há reguladores poderosos. O papel da regulação, que em última análise é o papel do Estado, não tem poder necessário. Portanto a corrupção impera. Os reguladores são permeáveis. Evoluímos imenso desde o 25 de Abril mas ainda não conseguimos ter uma sociedade com um poder de regulação forte nos vários sectores.

 

Está a pensar no Banco de Portugal, na CMVM, nos tribunais?

E até em coisas mais circunscritas, nos reguladores para o audiovisual.

 

Se os reguladores não têm esse poder efectivo, não representam a autoridade como seria desejável, quem é que manda?

As corporações transitaram de antes do 25 de Abril para cá. As famílias reconstituíram-se. Têm sido publicados livros que revelam que depois do período de agitação que foi a revolução de Abril e a sua sequência, o PREC, depois das fugas para o Brasil, o poder não sofreu grande alteração.

 

E são os mesmos que têm o poder?

São. Há políticos que circunstancialmente têm o poder. Há muitos pequenos poderes. Há o tipo que tem a chave da casa de banho. Ele não tem poder para mais nada, mas naquele momento tem a chave da casa de banho e todos os que precisam de lá ir têm que lhe pedir a chave.

 

Contudo, quem tem mesmo poder é quem tem a casa, o dono da casa – onde fica a casa de banho.

Claro. Um dos falhanços do que se seguiu à revolução de Abril, do desenvolvimento da democracia, é a não-alteração destes poderes. A crise e a tutela da troika com este Governo – que vai mais além da troika – fez regredir a sociedade em coisas decisivas. A desigualdade social aumentou. É um retrocesso inaceitável.

 

O que é que é específico do facilitador deste tempo? É sempre muito lustroso, pedante, passeia pelo Chiado? Há espécimes deste tipo n’ Os Maias.

O personagem em si não mudou, o que mudou foi o contexto e a situação em que ele se move. Hoje têm telemóvel. Os contactos do telemóvel são uma novidade.

 

Essa lista é poder.

Sim. É um tipo que faz um favor aqui e outro a ali e vive disto. Em todas as áreas, política, financeira... Até na área artística isto funciona.

 

Na área artística não são os agentes? Isso é um trabalho específico.

Mas há quem se mova sempre, também, desta maneira.

 

Isso é porque não tem talento suficiente para contar apenas consigo ou é porque o sistema é assim?

O sistema cria esta figura. O problema é quando se dá demasiado poder a estas figuras. É isso que está a acontecer. Quando não há líderes com desígnio, projectos estratégicos, quando se ganham as eleições com um programa e se troca o programa por um oposto e não se é confrontado com isso; quando se tem um jornalismo que não é confrontativo mas acomodado e receoso; quando se tem isto tudo, este tipo de gente ganha mais poder. Quando há uma paisagem de personagens fracos, secundários, mentirosos, inconsequentes, os facilitadores ganham mais poder do que antes. Têm na mão os líderes, muitas vezes.

 

Isso é outro poder, ainda. Não é o poder do acesso, é o poder do “o que eu sei sobre ti”.

Estamos minados por esse tipo de coisas. E temos uma sociedade civil muito fraca. As coisas não têm consequência. A sociedade tolera tudo. Pessoas que deviam ter sido afastadas dos lugares, ou terem-se afastado dos lugares, perduram para além do que é imaginável. Há actos que se praticam e que estão impunes porque parece que a opinião pública não se escandaliza, não se mobiliza.

 

Estou a lembrar-me de Miguel Relvas e de toda a polémica associada à licenciatura. E do sketch que fizeram e que passou no Canal Q, Cartão Relvas. Se isto acontecesse nos Estados Unidos, em Inglaterra, noutro país onde a democracia é vigorosa, seria possível que a pessoa se prolongasse no poder?

A percepção que tenho é de que na Escandinávia isto seria impensável, que os próprios se demitiriam. Em países anglo-saxónicos, a exigência social não permitiria que estas situações durassem muito tempo. Mas isso não impede que Jon Stewart, o principal humorista político americano, tenha ido a um programa jornalístico, o Crossfire, e tenha sido extraordinariamente antipático: “Se tenho êxito é porque vocês não estão a fazer o vosso trabalho”. Isto nos Estados Unidos, o que seria em Portugal... Em Portugal, numa altura em que o jornalismo está absolutamente fragilizado, em que o jornalismo económico e financeiro não tem meios para investigar, em que há cada vez menos reportagem…

 

Porque a reportagem e a investigação custam dinheiro.

E também porque não há projectos jornalísticos suficientemente fortes. Neste momento até os canais de informação estão em risco de se transformar em canais de futebol.

 

É o totalitarismo da audiência?

E da audiência mais imediata.

 

O que quer dizer quando fala da fragilidade do jornalismo? A liberdade de expressão é um dos pilares da definição de democracia. Até onde temos liberdade de expressão? E até onde é que ela está ameaçada?

Há pouco perguntava como é possível estes personagens (os facilitadores) sobreviverem. Não nos podemos esquecer que temos tido um bloco central de políticos, Partido Socialista, Partido Social Democrata e CDS. Estas pessoas encontram-se todas nos mesmos lugares e muitas vezes têm, fora dos partidos, cumplicidades. Há arranjos para além do sistema eleitoral que fazem perpetuar estes favores. Há uma série de nomes permanentes nos conselhos de administração que não são contestados por ninguém. São os tipos que não levantam problemas – e são postos lá porque não levantam problemas. Pacheco Pereira falava disto recentemente. São facilitadores em versão ainda mais etérea: não precisam de fazer nada.

 

É incrível como o não fazer nada se transformou num poder.

É um poder extraordinário.

 

A isso chama-se “ser a voz do dono”, não é?

É uma variação do “é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma”. Há uma expressão que tenho ouvido nos últimos anos: “Esse é óptimo, é uma pessoa respeitabilíssima”. Só porque dizem que é respeitável, nunca se fez um check

 

Nem se faz check quando as pessoas têm doutoramentos em universidades estrangeiras, e estão na Goldman Sachs ou em instituições prestigiadas.

Tenho uma falta de respeito tão grande, às vezes, por graus académicos... Basta conhecer as pessoas para ver como tudo isso é vento. Com o tempo deixei de ficar impressionado com currículos.

 

Voltemos aos grandes personagens. O que não levanta problemas tem qualquer coisa de pachola. É o português para quem está sempre tudo bem, que leva a sua vidinha, que cumpre com o que é preciso.

Uma das coisas que me agradam é estarmos a perder o estereótipo do português. Nota-se nas gerações mais novas. As pessoas estão a ser europeias, cidadãs do mundo. Estão a ser para lá de portuguesas. Sinto-me mais lisboeta que português, mas sou português, claro. E sou da língua portuguesa. Também me sinto identificado com coisas que não são de cá.

 

Porque é que se sente mais lisboeta e mais da língua portuguesa? A que é que isso corresponde?

Certas coisas do norte do país – as aldeias, o peso católico: quando vou a esses sítios não me sinto dali. Lembram-me o salazarismo, onde passei a minha infância. É uma imagem que ainda está muito presente. Sei que faz parte do território onde vivo, mas não me sinto dessa pátria. As pátrias são sempre lugares imaginários. E o conceito de pátria é recente, é do século XIX. Para mim tudo são ficções.

 

O que quer dizer com essa frase? Explique a um cientista, preso aos factos, porque é que acha que tudo são ficções.

Vivemos dentro de ficções. Construímos ficções. As religiões são ficções. A maneira de nos relacionarmos amorosamente e de inscrever os nossos desejos é em ficções. As grandes sociedades criaram mitologias ricas e diversificadas. Os gregos, os americanos, o cinema e a televisão. Pode-se medir a vitalidade e a força de uma civilização pela vitalidade pela capacidade de construir heróis, histórias, de criar inspiração para os seus habitantes, modelos que permitam às pessoas sonhar, ambicionar ser como eles.

 

O que é que hoje faz parte e identifica a nossa mitologia?

Quando viajamos para fora (Brasil, Argentina), chamam-nos europeus, não dizem que somos portugueses. A democracia grega, o catolicismo são marcas da nossa identidade. Os jovens são dominados pela cultura anglo-saxónica. Temos uma influência crescente do sul, quer de África quer do Brasil. A nossa identidade é construída nestas coisas todas. E hoje há uma possibilidade extraordinária: a escolha. Há livre arbítrio.

 

A possibilidade de escolha é uma marca da Europa?

A liberdade de escolha, a libertação de Deus e das ideologias. Isto, consagrado pela democracia (que é, não só a vontade da maioria, mas sobretudo o respeito pela minoria) é um património extraordinário – europeu. Depois foi amplificado pelos Estados Unidos.

 

E chega cá novamente, e em estéreo, contaminando as novas gerações.

Sim. Uma das grandes conquistas dos últimos tempos é a possibilidade de um jovem português de 20 anos se deslocar pela Europa sem parar em fronteiras. E o Erasmus, a possibilidade de estudar nas várias universidades.

Isso da pátria já não faz muito sentido. O que faz sentido é uma ideia de cidadão do mundo. Gosto de pensar que a pátria é o sítio onde nos encontramos com os outros, com os que acreditam no mesmo que nós, que se riem do mesmo que nós. As pátrias são sempre errantes, flutuantes. E depois há territórios comuns, que podem ser reais ou imaginários.

 

É uma ideia poderosa.

Quando vamos a uma cidade entramos muito mais na mitologia da cidade do que nas ruas reais da cidade. Paris é Paris porque está cheia de histórias. Quando vamos por uma rua, estamos a ver os romances que lemos sobre Paris. Vamos atrás dos personagens, das músicas, dos filmes.

 

Vamos atrás das histórias e isto tem valor económico. Por isso é que as ideias custam tanto dinheiro?

Por isso é que as ideias são tão valiosas. Lisboa começa a ser uma grande cidade quando começa a ser, para além da cidade do terramoto – que começou por torná-la internacional –, a cidade das Descobertas, de Fernando Pessoa. Começa a ser a cidade de Saramago, das fadistas. Não há nada mais atractivo do que ser uma cidade de sonho.

 

Há pouco falou da importância dos heróis, dos mitos, desses com quem nos queremos identificar. Olhando para os últimos 40 anos, identifica alguns portugueses de excepção, admirados, que os outros queiram replicar?

Pessoa é o primeiro, depois do 25 de Abril, a deixar um sinal no mundo. Foi descoberto a partir dos anos 80. Havia a Amália e o Eusébio. Agora há muito mais. Os arquitectos, o Siza, o Souto Moura. São geograficamente do nosso território e notabilizaram-se. O que é que isso faz por mim…?

 

O que isso faz pelo país é trazer admiração internacional.

Se isso nos tornar mais cosmopolitas, se faz com que tenha mais acesso à diversidade do mundo, óptimo. Isso é que é decisivo. Fico contente quando o Ronaldo é o melhor jogador de futebol do mundo. Acho piada à história do miúdo reguila da Madeira que de repente tem o mundo aos pés. Mas é sempre um orgulho um bocado bairrista.

 

O filme mais visto o ano passado em Portugal, e um dos mais vistos em França, foi A Gaiola Dourada. Independentemente do Ronaldo, do Siza, da Amália, do Saramago, as piadas continuam a ser sobre o português que trabalha na construção civil e a portuguesa que é porteira. Se calhar a nossa imagem não mudou tanto como isso.

Não, não mudou. Apesar de tudo há os Mourinhos. O que era importante (e era essa a grande oportunidade da Europa, que não sei se perdemos), era poder estar em Lisboa como estamos em Berlim. E um jovem que nasce em Viana do Castelo ou que nasce em Portimão ter acesso às melhores escolas.

 

Um jovem da Baviera tem acesso às mesmas escolas que um jovem de Berlim?

Não sei. O Tony Judt, um teórico, usava uma expressão para a social-democracia: a banalidade do bem. Conseguimos, depois de duas guerras fratricidas na Europa, montar um sistema social. Poucos anos depois tínhamos uma Europa com serviços públicos excelentes, com educação paga para todos, paz, prosperidade. É uma coisa preciosa. Era isto que fazia sentido trazer da revolução [de Abril] para aqui.

Para além de pertencermos a esta Europa, pertencemos a um espaço de língua portuguesa. Ao Mediterrâneo. Podíamos fazer com o Brasil uma ligação especial. Gosto muito da ideia do Pedro Bidarra de podermos ser uma espécie de estado europeu do Brasil.

 

Uma ideia provocatória.

Há uma série de plataformas, de territórios com que podemos jogar – a Europa é um deles. O que me interessa é aumentar a capacidade de as pessoas terem acesso a tudo o que o mundo tem de melhor. Entristece-me perceber que estamos a regredir nesse ponto. Há mais desigualdade. Há menos diversidade no acesso à cultura. Veja-se a televisão privada em Portugal, o que poderia ter sido e o que está a ser. No prime time das televisões vê-se uma profusão de formatos anódinos.

 

São concursos que vêm da Holanda e de outros países que achamos que são civilizados, e cujos formatos replicamos.

Podíamos ter sido o modelo anglo-saxónico e ter investido mais em ter documentários, séries, filmes. O que fizemos foi seguir o modelo italiano e espanhol das variedades. A RTP sempre foi uma televisão de variedades.

O grande modelo ficcional televisivo, que é talvez o grande acontecimento cultural do pós 25 de Abril, é o domínio absoluto das telenovelas. A importância das novelas da Globo, para criar a mitologia de um país que de outra maneira não a teria, é decisivo num país-continente como o Brasil. Num país como Portugal é absurdo. É uma coisa monolítica do ponto de vista ficcional. Em vez de provocar a imaginação, adormece-a.

 

Regressemos aos grandes personagens. O Diácono Remédios, conservador, puritano, encarna o Portugal antigo?

Sim. Não imaginei que o Diácono pudesse ser tão popular. A figura austera ainda é dominante em Portugal. É a imagem tradicional do pai que o Salazar tinha, que o Cavaco tem. Por oposição ao político e à figura mais extrovertida, aparece o homem sério, íntegro, austero. É o Cavaco por oposição ao Soares. Durante muito tempo Cavaco era considerado o melhor primeiro-ministro de Portugal. Esse mito caiu e ficou partido. Num país em que o jornal mais lido é o Correio da Manhã, os mitos fazem-se e desfazem-se rapidamente.

 

Os mitos, as narrativas, passam por modas, mudam consoante os intervenientes. Tudo parece colado com cuspo.

Temos uma crise cuja narrativa foi feita por economistas, quase todos posicionados à direita, em quase todos os jornais. As visões mudaram. Há pessoas que na altura disseram coisas que eram consideradas extremistas e esquerdistas e que hoje são consensuais. Impressionou-me a volatilidade das opiniões.

A crise do subprime, que depois passa para a Europa, chama-se “a crise da dívida dos países europeus”... Logo aqui está um erro: isto nunca foi a crise da dívida dos países europeus. Ajuda financeira? Qual ajuda? Depois passa para resgate. A escolha dos nomes vai mudando.

 

Mas as palavras ficam impregnadas no imaginário colectivo, e têm um significado.

Ficam. As personagens são crucificadas e salvas. O que aconteceu com o processo do Sócrates, a maneira como lhe caíram em cima, e agora, afinal, já não foi nada. Há uma necessidade, que tem mais a ver com os ciclos das telenovelas do que com uma investigação jornalística séria sobre as figuras em causa, [de alimentar a audiência].

 

O facilitador, o austero. Mais personagens-tipo.

No mundo dos média não podemos descartar o jornalista vedeta. O jornalista que é mais pivot que jornalista. As pessoas que se movem nos média e que fazem opinião e que são pessoas famosas mais do que pessoas com créditos profissionais.

 

Nos últimos 40 anos, sobretudo desde o aparecimento das estações privadas, a televisão deixou de ser um espaço ao qual só uns tinham acesso. O povo passou a estar na televisão, a vida de todos os dias passou a caber na televisão. Os heróis da televisão também mudaram.

A revolução foi tardia em Portugal. Tudo o que aconteceu nos anos 60, apanhámos em diferido. Há a revolução em 1974 e depois há aqueles anos muito politizados. Os nossos anos 60 chegaram nos anos 80. É então que temos saídas à noite, os bares, o Frágil, os primeiros estilistas, os primeiros pintores com saída internacional. A música pop cantada em português.

O culto da juventude aconteceu no fim dos anos 50 na América, com o Dylan, os Beatles, o Elvis. Cá ouvimos ecos disso, tivemos os nossos epifenómenos, dentro do espartilho salazarista. Mas é nos anos 80 que há a grande libertação da cultura jovem. Os heróis têm a mesma idade dos consumidores, ou são ainda mais novos.

 

Essa onda chega mais tarde à televisão. As privadas têm 20 anos.

Curiosamente tudo se passa muito lentamente na televisão. A SIC é de 92 e a TVI de 93. A televisão por cabo ainda é posterior. E começou sempre de maneira errada! Cavaco e Marques Mendes – é preciso não esquecer os nomes dos responsáveis – entregaram de mão beijada um canal à Igreja, em vez de fazerem um concurso.

Actualmente, do ponto de vista tecnológico, no que diz respeito às redes de telemóvel, de televisão, a penetração é altíssima. E tem uma qualidade extraordinária. O que as empresas de telecomunicações fizeram em Portugal é do melhor do mundo. Investiu-se tremendamente nesse sector. Se tivesse havido um centésimo desse investimento em conteúdos…

 

Em ideias.

Em ideias. Há uma coisa trágica que explica que não exista uma indústria de audiovisual desenvolvida. Não há uma política da língua sem uma política do audiovisual.

 

O audiovisual é o grande veículo para a cultura da língua?

É, através dos filmes, das séries. A língua portuguesa é o maior património que temos, é o activo mais valioso de Portugal junto com a costa marítima.

 

Um e outro parecem desaproveitados.

O que temos de patrimonialmente mais rico é o acesso ao mar, a extraordinária localização geográfica, e a língua. É neste momento a língua mais falada do hemisfério sul. Isto tem que ter um valor.

 

Ainda sobre a televisão: entre os habitantes de Viana de Castelo e os de Lisboa, que são diferentes, a televisão é um denominador comum. Mas a televisão, ela mesma, está em mudança.

O que aconteceu em Portugal não foi muito diferente do que aconteceu noutros países. Há uma progressiva separação do que são os canais e do que são os conteúdos. Vemos um filme ou uma série quando queremos, na plataforma que queremos, no ecrã que queremos. Isso obriga à redefinição do que é um canal. Antigamente ver televisão era pertencer a uma comunidade de pessoas que viam o mesmo que nós e que no dia seguinte, no trabalho ou na escola, falavam disso. Era óptimo fazer humor nos anos 80 porque se fazia humor sobre coisas que toda a gente viu.

 

Com a internet, o Youtube, a multiplicidade de plataformas e canais, essa concentração é impossível. Qual é hoje a lógica dominante?

É a lógica do directo, do que está a acontecer naquele momento, naquele universo, com aquelas personagens, daquele canal. É o programa da manhã, o programa da tarde, a televisão de companhia, o Big Brother. Toda a televisão se transformou num reality show. E tudo isto se confunde com a telenovela que é a ficção de companhia. É como se fosse uma vizinhança, um bairro – os canais de televisão estão a transformar-se nisso. Na indústria americana as séries ocuparam o lugar dos romances.

 

E mesmo do cinema. Os Sopranos, Homeland, Mad Men são hoje produtos tão ou mais sofisticados do que o cinema.

Sim. O cinema infantilizou-se, tornou-se juvenil. Quem vai às salas de cinema são jovens para namorar, ou famílias com crianças. E à noite em casa vêem-se as séries, que se tornaram complexas, densas.

O que é triste em Portugal é que cá isso não acontece. Há um empobrecimento da vida pública através do empobrecimento das televisões. A história da RTP é quase só a história dos apresentadores. Nunca houve um grande investimento em autores. E as coisas autorais de que nos lembramos mais são programas de humor. Uma das grandes derrotas do pós 25 de Abril é a televisão.

 

Para terminar, onde é que estava no 25 de Abril?

Tinha 11 anos. O meu pai estava a ouvir o rádio e disse: “Hoje não vais à escola. Parece que é desta”. A minha mãe respondeu: “Deus queira, já não vais à tropa”. No dia seguinte fui com o meu pai e o meu tio distribuir sandes aos militares. Foram as figuras masculinas da minha infância, o meu pai socialista, o meu tio comunista.

Depois fui para o [liceu] Pedro Nunes, que era o centro do MRPP. As aulas foram substituídas por comícios. Os professores eram saneados, havia militares que eram nomeados reitores da escola porque ninguém conseguia ter mão naquilo.

 

Uma politização precoce. Hoje, os meninos de 11, 12 anos estão alheados da política.

É. Lembro-me de um episódio. Eu estava a jogar à bola (que era o que adorava fazer no liceu), todo suado, e um dos meus grandes amigos disse-me: “Não tens consciência política nenhuma, já leste O Capital do Karl Marx?” [risos]. Senti-me absolutamente em falta. Tinha para aí 14 anos.

Toda a gente tinha partido. A turma era mais ou menos dividida entre MRPP, PCP, PS e PSD. Depois havia os fascistas do CDS [risos], que rondavam a escola com as suas motas e provocavam o MRPP. Eu e outros dois éramos anarcas. Pintávamos paredes, fazíamos slogans do tipo, “Vota na Abelha Maia”. Distribuíamos panfletos. Criámos uma banda rock que não existia. Fazíamos propaganda na casa de banho porque achávamos que era o sítio ideal.

 

Parece ter sido divertido.

Foi divertido. Para as pessoas da minha geração (tenho 51 anos), primeiro foi a educação salazarista que hoje parece surreal. Na Escola Primária nº13 de Campolide o professor batia com uma cana na cabeça dos alunos. Rezávamos a Maria no mês de Maio. De repente o 25 de Abril, a alegria. Depois a confusão política total, a possibilidade de guerra civil. E de repente a Europa. Começámos a viver bem, a viajar, o nível de vida sobe.

 

Três períodos distintos. E agora, a crise, o ponto a que chegamos 40 anos depois da revolução.

Sim. Primeira época, salazarismo. Segunda, o PREC. Terceira, Europa. Até esta história da troika, que nos obriga regressar uns anos para trás. É a quarta fase. Há uma enorme quantidade de pessoas da classe média que perdeu qualidade de vida e escorregou para níveis de pobreza. Todos têm à volta situações dramáticas de pessoas que tinham uma vida normal e que não vislumbram possibilidade de voltar a tê-la. Estão a tentar convencer-nos de que vamos sair da crise – não vamos sair.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014