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Anabela Mota Ribeiro

Nuno Garoupa

20.11.14

A sua área de investigação é Direito e Economia e Direito Comparado. Pediu uma licença sem vencimento na Universidade de Illinois e assumiu a presidência executiva da Fundação Francisco Manuel dos Santos. É um estrangeirado que olha para o país com espanto e amor (de outro modo, porque regressaria?). No livro “O Governo da Justiça”, editado pela fundação, arrasa o modelo que temos, escreve que o Estado de Direito é deficiente. E não, não pensa que a reforma da justiça esteja feita, apesar das medidas avulsas. O problema é estrutural.

Nota-se bem que Nuno Garoupa é um estrangeirado quando diz coisas contundentes. Tem 43 anos. Resta saber se o país – essa máquina que funciona romba e desafinada – o engole.

 

Porque é que ninguém vai preso em Portugal?

Se olharmos para as estatísticas, há muita gente que vai presa. Dentro da União Europeia somos um dos países que têm maior sobrelotação penitenciária. A apreciação que há da realidade, e que deriva do trabalho dos meios de comunicação, é a de que há impunidade. Temos um problema evidente com crimes de colarinho branco. Mas não é significativamente diferente de outras realidades na União Europeia.

Quem vai preso é por outro tipo de crimes, crimes de colarinho azul.

 

Os problemas da justiça são dois, fundamentalmente. A morosidade, que tem que ver com o governo da justiça, de que fala no ensaio que escreveu para a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS); e a sensação de iniquidade, o sentimento de que os poderosos, os do colarinho branco, ficam impunes.

Tanto o inquérito que o INE fez com a FFMS, sobre a justiça económica, como vários trabalhos do Observatório da Justiça da Universidade de Coimbra, mostram que o cidadão ou a empresa que não têm um contacto directo com a justiça tem muito pior impressão do mundo da justiça do que aqueles que têm contacto directo.

Na última semana toda a gente se preocupou com as prescrições. Um jornal dizia que houve, em 2012, 700 processos-crime que prescreveram. Se pensarmos que estamos a falar de um universo de mais de 100 mil ou 200 mil processos, 700 é um número diminuto. No entanto, a percepção que se criou é de que tudo prescreve em Portugal e que há uma impunidade total.

 

Esses que prescrevem não são uns quaisquer.

Não são uns quaisquer e são os que têm atenção mediática. Podíamos argumentar que, em termos gerais, temos poucas prescrições. Contra-ordenações por multas de trânsito: o melhor seria prescreverem. O Estado, para que a multa de 50 euros seja paga, gasta muito mais do que 50 euros. Claro que com uma multa de um milhão de euros, o raciocínio tem que ser ao contrário: essa não devia prescrever. Esses processos prescrevem pelas razões erradas.

 

O que é prescrever pelas razões erradas? É a ineficiência do serviço?

Não faz sentido que o tempo de prescrição seja um tempo que depende, não só dos operadores judiciários, mas também da vontade das partes. Não faz sentido que os recursos dilatórios possam ser considerados para o tempo de prescrição. Isto é diferente de dizer que as prescrições não fazem sentido e que devíamos acabar com elas.

Que estes abusos ganhem mais atenção mediática, também é normal. Vivemos num mundo mediático. Não podemos é confundir esses casos com o todo. Isto tem consequências, não só na percepção que temos da justiça, como na verborreia legislativa.

 

Verborreia legislativa?

Muita legislação pretende responder a um problema mediático sem ter em conta o impacto que tem no todo.

 

Os que têm dinheiro encontram um modo de escapar entre os pingos da chuva. Contratam bons advogados que sabem que, de recurso em recurso, o processo prescreve. Contratam alguém que os ajuda a fintar as debilidades do sistema.

Esta é a iniquidade.

Não vamos encontrar nenhuma solução que resolva completamente essa iniquidade. Não há soluções mágicas. Há diferentes opções que podem ser mais injustas aqui ou mais injustas ali. Quando foi detido o [Dominique] Strauss-Kahn nos Estados Unidos, [questionava-se] como é que era possível aparecer o senhor algemado, ser tratado daquela maneira, um homem tão importante. Nos Estados Unidos, como o sistema é acusado de ser iníquo, acaba-se por tratar pior o poderoso e o rico para mostrar que [o sistema] não é iníquo.

 

Está a dizer que Strauss-Kahn ou Madoff tiveram processos que correram de uma maneira célere para mostrar à comunidade que o sistema era justo?

Sim. Levá-lo algemado e fazer aquela imagem gráfica é um modo de mostrar que o poderoso é tratado da mesma forma que o pobre. Em Portugal costuma-se falar do caso Madoff porque foi decidido num tempo razoavelmente curto, mas foram investidos recursos para aquele caso ser rápido. Se olharmos para a duração média de casos penais similares nos Estados Unidos é bastante mais elevada.

 

Dou de barato que existe na opinião pública uma percepção diferente daquilo que é a realidade estatística, mas nunca tivemos um Madoff, um Mário Conde (Espanha), um caso como o Mensalão (Brasil). Há alguns casos mediáticos que dão ao cidadão a noção de que a justiça é igual para todos.

Temos alguns casos. Temos o caso do ex-presidente da Câmara de Oeiras [Isaltino Morais]. Há questões jurídicas e questões culturais. Não gostava de as misturar. O caso Madoff aconteceu como aconteceu porque o sistema norte-americano se baseia no princípio da oportunidade. Os procuradores não têm o dever de levar a tribunal todos os processos que têm em mão. Têm a possibilidade de escolher quais são os casos que entendem levar a tribunal. Decorre daqui o mecanismo de negociação, de plea bargain. O que aconteceu com o Madoff é que houve uma negociação entre os seus advogados e o Ministério Público local em que o Madoff se declara culpado de uma série de crimes; em contrapartida tem uma sentença mais reduzida.

 

A negociação evita que o caso se eternize.

Em Portugal rejeitamos esse mecanismo. Temos o princípio de legalidade, pelo qual o procurador tem que levar a tribunal todos os processos em que entenda que há suspeita suficiente para provar a culpabilidade do arguido. E não há plea bargain. A partir daí não vamos ter casos Madoff em seis meses. É impossível. Isto é o elemento jurídico. O elemento cultural é que temos que assumir que Portugal, culturalmente, é um país complacente com o crime de colarinho branco e com a corrupção.

 

Tinha ideia que o cidadão era complacente com a pequena trapaça, mas não com o crime do poderoso. Ninguém delata o senhor do café da esquina que fugiu aos impostos, mas toda a gente fica chocada quando o dono de uma grande empresa escapa ao fisco.

Fica numa primeira reacção. Mas esta é uma sociedade onde presidentes de câmara são reeleitos mesmo depois de se ter demonstrado que houve corrupção. E quantas vezes é que os partidos políticos expulsaram filiados por terem condenações de corrupção? Há logo uma justificação, um enquadramento. Isto não acontece nos países nórdicos, na Alemanha ou no Reino Unido.

 

Nesses países, elas mesmas se demitem quando deflagra a bomba.

[Demitem-se] antes da sanção política. O Sr. Madoff não andou pelas televisões a dar entrevistas nem é convidado para participar em actividades públicas. Em Portugal ninguém é ostracizado. As pessoas continuam a ter a vida social e mediática que tinham, em alguns casos mais até do que tinham.

 

Não acha que isso acontece porque as pessoas, como não confiam no veredicto da justiça, não acreditam que aquela pessoa seja de facto culpada?

Mas podia ser o contrário, porque o grau de exigência provatória que existe no processo penal é muito superior àquilo que é a opinião comum das pessoas. Não temos essa cultura. Nem uma cultura de conflito de interesses. As pessoas estão dois dias num determinado lugar e três dias no lugar oposto e acham que não há conflito de interesse. Ou acumulam lugares que não podem acumular.

 

E isso vai da política…

Vai da política ao mundo empresarial. Na política é mais mediático. Em Portugal há pessoas que acumulam cargos de administradores não-executivos em várias empresas que são concorrentes. Ninguém discutiu como é que um ex-ministro das Finanças, que foi responsável por um programa de ajustamento imposto pelo FMI, é contratado pelo FMI. Ninguém perguntou como é que um ex-ministro, que foi responsável por actividades de colaboração com a OCDE, foi contratado pela OCDE.

 

Essas instituições contrataram Vítor Gaspar e Álvaro Santos Pereira poucos meses depois. Não se observou um período mínimo de nojo. Isto é de parte a parte.

A decisão individual de ser contratado, assim como a instituição que contrata, serão responsáveis pelas decisões que tomam. O que me parece surpreendente é não haver da parte da sociedade uma crítica a essa situação – dizendo que há aqui um conflito de interesses óbvio. Se calhar precisamos de um período de nojo, longo para desaparecer esse potencial conflito de interesses.

 

No fundo está a dizer que as questões éticas são desconsideradas na cultura portuguesa.

Iria mais longe. A noção de ética nesta matéria é completamente diferente da noção de ética anglo-saxónica ou alemã. Em Portugal não há debate ético sobre estas questões.

 

Porquê? Somos muito poucos? Somos todos primos uns dos outros, todos nos conhecemos. Custa-nos criticar de uma maneira firme?

Sim. A crítica em Portugal é sempre tomada como uma crítica pessoal. A crítica nunca é institucional. Mesmo no mundo académico, o que vemos, ao contrário de outras culturas, é o elogio mútuo constante. A crítica é feita nas costas. Temos muita dificuldade em distinguir a crítica substantiva e metódica da crítica pessoal.

Em Portugal temos a sorte de o número de pessoas inteligentes e ilustradas ser à volta de 500 ou mil: são sempre as mesmas nomeadas para todas as funções. Temos umas elites que, por serem pequenas, se fecham e têm muita dificuldade em recrutar fora da esfera das elites.

 

É o corporativismo da elite.

É o nosso corporativismo mais grave. Há 50 anos fazia-se isto. As elites do Estado Novo faziam recrutamento dentro da própria elite. Acontece que a complexidade do Estado e das funções do Estado dentro do Estado Novo era muito diferente da complexidade do mundo de hoje. Isso torna o problema mais visível hoje do que há 50 anos. Quando se diz que Portugal é muito pequenino, não é uma questão de pequenez. A Holanda é muito pequenina, a Bélgica, a Suíça...

 

Apontou países protestantes.

Era onde eu queria chegar. Não é a pequenez, é a pequenez associada a uma questão cultural. Se conversarmos aqui ao lado ou em Itália, a percepção que têm das elites não é muito diferente da nossa, e são países maiores do que o nosso. A vantagem da Itália e da Espanha talvez seja que têm dois centros de produção de elite. Itália tem Roma e Milão, Espanha tem Madrid e a Catalunha. Isso provoca alguma concorrência de elites.

 

Nós já não temos Coimbra e Lisboa. E o Porto…

O Porto nunca conseguiu ser um grande produtor de elites. As elites são produzidas em Lisboa.

 

Mesmo económica? Estou a pensar em Artur Santos Silva, Belmiro de Azevedo, Américo Amorim. É uma elite empresarial importante.

Talvez o poder económico seja menos assimétrico do que o poder político e administrativo, que está concentrado em Lisboa. As próprias elites do norte, para terem algum êxito, acabam por fazer um percurso em Lisboa, ser parte das elites que estão em Lisboa.

 

Como é que nos transformamos numa sociedade meritocrática que fura com este fechamento das elites?

Se pensarmos nas pessoas que foram ministros ou primeiros-ministros nos últimos 30 anos, ninguém vai dizer que escolheu pessoas que não tinham mérito. A questão é se os méritos que são valorizados pelas elites são os méritos de que o país precisa em termos do seu desenvolvimento económico, social e humano. O problema das elites fechadas é que os méritos se avaliam dentro do grupo fechado. Quero promover pessoas que têm mérito mas é indissociável desse próprio mérito o facto de fazerem parte do meu grupo.

 

É um modo de dizer: os meus amigos são muito bons.

Essa é a questão. O que temos que fazer são choques. Teria sido muito interessante – o Governo não quis fazer – copiar o que os ingleses fizeram: decidir que durante o próximo mandato todas as agências de supervisão vão ser por concurso internacional, e que vamos contratar pessoas que não são portuguesas.

 

Também parece a velha cantiga de que vêm os de fora mandar e ensinar-nos como fazer...

Não, o que vêm é romper com os desequilíbrios. Isto não quer dizer que a partir de agora o Governador do Banco de Portugal tinha que ser sempre estrangeiro. Seria bom fazer essa experiência, chegar a outros equilíbrios, porque toda a gente tem fidelidades.

 

Uma decisão dessas significa distribuir poder, um enorme poder, por pessoas que não nos devem fidelidade. A ameaça é essa.

Essa é a ameaça que tem que ser assumida. O nosso problema histórico, ao contrário do mundo anglo-saxónico, é que Portugal nunca conseguiu reformar as suas instituições por via do consenso interno. Todos os regimes acabaram em revolução. Não conseguimos fazer transições sem convulsão externa porque as nossas instituições, mesmo quando estão esgotadas – final da Monarquia, final da República, final do Estado Novo –, não conseguem regenerar-se por dentro.

 

Porém, quando se dá essa revolução que põe fim ao regime, existe uma promessa infinita. Aquela é que é a oportunidade para fazer uma coisa de que nos orgulhamos. E depois perde-se sempre.

Podemos ir até ao Fernão Lopes que dizia aquela frase: “Levanta-se uma nova geração”. A maior parte das pessoas interpreta que era uma nova geração de líderes; penso que Fernão Lopes se referia a que eram os mesmos. Fez-se a revolução de 1383-85, mudou-se o rei, mas a elite continuava a ser a mesma. O nosso problema vem da fundação. Neste momento uma das coisas que se ouvem é que o sistema não está a funcionar, que alguma coisa vai ter que acontecer. Isso não é necessariamente verdade.

 

Que parte é que não é necessariamente verdade?

Que alguma coisa tem que acontecer [risos]. Isto pode continuar assim durante muito tempo. É verdade que com a tecnologia as coisas vão mais rápidas. A discussão que podemos ter é se vamos fazer a transição para um novo equilíbrio de forma pacífica e democrática ou se não vamos ser capazes, e vamos ter uma crise menos democrática dentro de cinco ou dez anos. O definhamento das instituições é claro, e pode prolongar-se por mais 30, 40 ou 50 anos. Não tem que acabar amanhã. Temos uma grande almofada, que é a União Europeia.

 

Estava a pensar na famosa frase do Príncipe de Salina: “É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma”. Ou é preciso que tudo mude para que tudo fique diferente?

O que temos feito, e voltando à área da justiça, é mudar algumas coisas para que tudo fique na mesma. O que só vem dar apoio ao que estava a dizer – as instituições não se reformam por dentro. As instituições têm uma aversão à mudança. No caso português iria mais longe: a sociedade portuguesa tem uma grande aversão à mudança. É extremamente cautelosa.

 

Cautelosa ou medrosa?

É medrosa, cautelosa, e em muitas circunstâncias acobardada. Não se mobiliza com coragem. Responde, é muito reactiva. É uma sociedade que não tem uma dinâmica de mudança nos seus genes. Isto agrava-se nas instituições, que não querem, mesmo que possam pensar que a dez ou 20 anos vão estar melhor, pagar o custo dessa mudança.

 

No Direito anglo-saxónico, ao contrário do continental, há sistema de júri – o que parece condição para o seu bom funcionamento, transparência e rapidez. Temos, aliás, essa imagem mítica dos filmes.

Tudo tem aspectos positivos e negativos. O sistema de júri é caro. É preciso recrutar 12 pessoas e ter em conta que essas pessoas estão presentes em toda a fase do julgamento. E só funciona com o princípio da oportunidade. Do lado das vantagens do júri, celeridade.

 

Sobretudo essa?

Se tenho um julgamento com júri, não posso levar sete anos [a julgar]. A sentença e a leitura da sentença são rápidas porque a decisão é do júri e a leitura é feita pelo juiz em consequência da decisão do júri. Não há que esperar oito meses ou dois anos.

Se quiséssemos ter um sistema de júri tínhamos que alterar drasticamente a nossa forma de pensar o Direito Penal. Não há júri que aguente ouvir 600 testemunhas. Tenho que limitar os elementos provatórios. No sistema americano o fazer prova, o discovery, é feito antes do julgamento. Chegamos ao julgamento e as provas têm que estar todas ali. E a grande questão é a da linguagem.

 

Nos filmes, as provas são demonstradas perante o júri, de modo acessível. Nada que ver com o modelo intrincado que temos em Portugal em que ninguém percebe nada do que ali se está a passar.

O que o júri introduz é uma linguagem muito mais acessível ao cidadão. O nosso sistema fechou o mundo da justiça com a criação de uma linguagem que o cidadão comum não entende.

 

Só entende aquele que é formado em Direito.

Estamos a chegar a um ponto em que só entende o jurista que é especialista naquela área. Isso é muito negativo.

 

Cria opacidade.

Sim. A linguagem tornou-se o objectivo em si próprio e não o meio para nos expressarmos.

 

Uma vez, em Nova Iorque, fui a um tribunal. Só tive que passar por um detector de metais. Uma vez lá dentro pude assistir a julgamentos que estavam a decorrer. O tribunal não era um clube fechado. Rapidamente pude perceber o que ali estava em causa. Aquilo era compreensível. Comentando esta experiência com um americano ele dizia-me que é um enorme distúrbio para um cidadão ter que participar num júri. Fica com a vida interrompida. Quanto tempo? Em média, três dias. Pensei nos sete anos do Casa Pia.

Quando se diz que o julgamento são três dias, temos que ter em conta que houve uma fase anterior ao julgamento que pode ser bastante longa, dois ou três anos. Toda a discussão sobre o que está em causa faz-se através de várias moções até à fase do julgamento. Cerca de três quartos dos processos nos Estados Unidos nunca chegam a julgamento. São terminados por via de negociação, 98 porcento para processos cíveis, 90 porcento para processos criminais.

Em Portugal temos um sistema que herdámos da cultura continental que tem dois pilares fundamentais. Um, que entende que deve dar todo o tipo de garantias a quem é acusado. Cria um grau de formalismo que protege quem é acusado e vê no sistema americano uma perversão (não entende como é que é possível não ter essa preocupação). Outro aspecto: nos últimos 200 anos o que temos no ADN é uma desconfiança em relação ao juiz.

 

Recusamos a ideia de que a empregada doméstica, o pedreiro possam ser o nosso júri? Existe um preconceito de classe no coração da resistência ao sistema de júri?

Existe, porque [esse preconceito] está enraizado na sociedade portuguesa. A corporação tem uma linguagem e acha que deve excluir todo e qualquer cidadão das decisões que são da corporação. Criámos um sistema de tal maneira formal e técnico que só quem sabe da técnica é que consegue perceber o que é a culpabilidade no sentido técnico. Acontece que os sistemas jurídicos foram criados para aferir a culpabilidade no sentido corrente. O que se pretende é saber quem violou ou não violou a lei. Criámos tecnicismos que levam a que se entenda que não podemos ter o cidadão comum a participar nessas decisões.

 

Então, é ou não é a favor do sistema de júri?

Em abstracto ou no caso português? Em abstracto, acho que sim. No caso português, só poderíamos ter um sistema de júri com uma alteração profunda no nosso sistema de pensar o Direito Penal. Com a nossa forma de pensar o Direito – e o nosso Código já prevê a utilização de júri, não está excluído – não veria que tivesse consequências relevantes ou muito positivas para o sistema. Provavelmente iria criar mais confusão.

 

Há quanto tempo regressou dos Estados Unidos?

Está a partir do princípio de que regressei. Estava a dar aulas nos Estados Unidos, estou com uma licença sem vencimento e estou aqui na Fundação. É um projecto que espero que seja por vários anos. Mas não tenho a ideia de que estive fora e regressei.

 

Quando é que começou a ir?

Saí no princípio dos anos 90 para fazer o doutoramento em Inglaterra. Voltei no início do século, em 2001, para leccionar na Universidade Nova, e depois saí em 2007 para os Estados Unidos. Estou cá desde Novembro.

 

O que é que nota de surpreendente no país agora que vive cá todos os dias?

É um país que, vivendo num mundo globalizado, e tendo o discurso do mundo globalizado, continua a viver em autarcia. Como se fosse uma economia fechada, virada para dentro. O Manifesto dos 74 não tem impacto nenhum em Badajoz. É preciso ter noção da nossa pequenez mas também da nossa dependência. Isto não quer dizer que uma discussão sobre a reestruturação da dívida não seja importante lá fora. Se essa discussão for feita no parlamento, tem impacto.

 

Mas lá fora não sabem da decadência das nossas instituições e de como o português comum se está nas tintas para o que se passa no parlamento.

Estão preocupados com quem toma ou não as decisões. Se diria alguma coisa em relação à reestruturação [da dívida], é que o debate está mal colocado desde o primeiro momento.

 

Porquê?

Porque tem uma premissa básica que está errada, [a de que] Portugal é um estado soberano. Portugal está intervencionado pelo Fundo Monetário e pela União Europeia, está dentro do Euro, abdicou da sua soberania monetária, praticamente abdicou da sua soberania orçamental com o novo Tratado Orçamental. É um debate que tem que começar por uma premissa diferente: o que é que se pode fazer tendo em conta que abdicámos da nossa soberania?

 

Tendo em conta que somos tutelados?

Sim. Tutelados tem uma conotação negativa. Podemos discutir qual foi o momento em que abdicámos da nossa soberania. Foi um processo longo, voluntário, começou com o Tratado de Maastricht há 20 anos. E foi um processo democrático. As forças políticas que apoiaram esse processo de abdicação foram sistematicamente eleitas e reeleitas ao longo de 20 anos.

 

Não tenho ideia de que na Holanda ou na Bélgica se fale de abdicação da soberania.

Fala-se. Por isso é que vai ter a extrema-direita a ganhar na Holanda, a dizer que quer re-ganhar a sua soberania. Tem a Sra. Le Pen em França que anda há 20 anos a dizer isso. Mesmo na Alemanha, foi um profundo debate. Recuperar a nossa soberania tem custos e benefícios, e os custos não são poucos.

 

Face à dívida, o que é que podemos fazer?

Não estamos em condições de reestruturar seja o que for a não ser que quem nos tutela permita isso. Como quem nos tutela não nos vai permitir fazer isso, estamos numa situação em que o debate é inconsequente.

 

Voltando à sua apreciação do país.

É um país em que, estando a economia aberta, as elites continuam fechadas e a olhar para o umbigo. Nesse sentido evoluímos pouco em 20 anos. Podem dizer que os Estados Unidos também olham para o umbigo, mas o umbigo dos Estados Unidos é metade do mundo. A China também está a olhar para o umbigo, mas o umbigo da China é a outra metade do mundo. Nós não estamos em situação de poder olhar para o nosso umbigo. Estamos a perder muito tempo.

 

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014