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Anabela Mota Ribeiro

O Livro de Agustina

13.10.22

Uma famosa carta de Teixeira de Pascoaes de 1950, que andou desencontrada da sua dona durante algum tempo, exprime de forma notável e premonitória, (que é uma palavra que vai bem com Agustina), o que ainda hoje podemos dizer dela: que se trata de “uma escritora de raça, dotada de excepcionais qualidades visionárias ou dotadas do instinto do real”. É desta expressão de Pascoaes que me sirvo para iniciar esta apresentação: Agustina, a escritora dotada de instinto do real.

Depois de folhear a sua autobiografia, e de ter a benção de acompanhá-la com as fotografias, que já nos dizem muito, torna-se mais fácil perceber o seu encontro com o real, o modo como se deixa impregnar pelo real, o modo como o real se apropria dela. E como, do equilíbrio entre uma e outra coisa, resultou o que podemos conhecer de Agustina.

Insisto: o que podemos conhecer. Porque o humano é dotado de uma espécie de mistério original que o deixa razoavelmente opaco para todos os outros. Um ser uno, consigo, a sós. Contudo, página a página, encontramos figuras referenciáveis: o Avô Lourenço, de quem herdou a têmpera, o Pai que vivia no “contraste entre a presa e o predador”, (que é uma maneira de dizer que o habitava o vício e a vocação para o jogo), a Mãe “adaptada e presa aos provérbios” _ Agustina, temerária, expõe-se na singularidade do aforismo. Vêmo-los, a estes e a outros, gente com nome que marca individualmente, ou gente que é turba e que molda no colectivo. Vêmo-los e embarcamos na ilusão de que nos abre mais as portas, que ficamos a saber quase tudo dela. Quando neste livro talvez persista, ainda, aquilo que Agustina diz haver nos seus primeiros livros: “Um estigma infantil onde o traço é indefinido e obriga a imaginação a completá-lo”. O esfumado, o carácter inacabado, o enigma são a exaltação que Agustina nos oferece. O mistério, para Agustina, é como o jogo para o pai de Agustina: vale mais o decifrá-lo, o lance, que a clareza da decifração. A sabedoria, para ser plena, no que ela pode ser plena, tem de ser lúdica.

O que há então nestas 160 páginas? Primeiro, a sensação de um reconhecimento. O amor, no dizer platónico, vive da identificação, que pressupõe o feliz encontro de um no outro. Para a pureza deste amor não são necessários os sentimentos, “passos de bailado” _ como me dizia Agustina este Verão, parafraseando a vidente de Lourdes. A pureza está para lá do momento e do artifício da sua ocorrência. Não está sujeita à vida de todos os dias. O gosto tem pouco que ver com o interesse. Como se escreve no livro: “O que me interessa não é o que eu gosto”.

Nestas 160 páginas estão figuras de romance, ponto. Cada uma delas está destilada nos livros de Agustina, que confirma que a realidade supera sempre a imaginação. Desde que a realidade seja lida com sageza sibilina, bem entendido.

Fazem parte dos livros de Agustina a Avó Justina, que se enamorou de José aos sete anos porque este a ajuda a passar um ribeiro e promete casar com ela; casam no mês de Março, o mês que congrega a vida dos dois. Ou a Mãe Laura, abordada por Artur com um prato de figos, vestida de preto, não por luto mas por promessa. Ou Artur que se enfastia de doces e foge para a vida solta dos meninos que comem o que os pescadores deixam. Ou a Empregada que diz ao cão: “Brilhante, põe-te aqui num instante”. Ou a Condessa Andrée que “gostava mais de gatos que de todo o Douro vinhateiro, ignorante e pedante”. Ou a professora Inês, “mistura de mulher de letras e bailarina de music-hall”.

Para não falar da própria Agustina, que não veste luto pela avó e se entrega à delícia de Setembro. Agustina “amada pela mãe, mas sem demonstrações”. O pai, paga-lhe a edição d’ “Os Super-Homens”, “não porque acreditasse muito nela, mas porque não perdia a ocasião de apostar num provável vencedor”. Agustina que sai do hotel sozinha, aos três anos, com a aspiração que mantém, ( e este é o seu tesouro), de caminhar sem rumo. “Dizem que é um fio de epilepsia”, escreve neste livro. “Talvez a liberdade seja um sintoma epiléptico”. Ela que percebe cedo que a grande escrita é um “milagre, porque é a criação do mundo”. Que escrevia numa letra intrincada a teimar que alguém, mesmo assim, a decifrasse. Como uma pérola resguardada, só ao alcance de alguns. “Uma pequena sereia, leve como uma pluma e no entanto profunda como o mar”. Uma pequena sereia pintada pela amiga Vieira da Silva, cujo destino é “mover-se na imensidão do oceano. O destino é um conflito breve com o sonho”.

Agustina enfrenta-o com a serenidade corajosa que se vê, por exemplo, na fotografia da contra-capa deste livro. Essa rapariga, se lesse Sartre n’ “As Palavras”: “Não te agarres, apoia-te só”, saberia o que isso quer dizer.

Eu não conheço espírito mais livre que o de Agustina, tomado por fio epiléptico e saboreando isso. Talvez isso a torne “anormal segundo os critérios humanos”. Por ser filha de Deus. Trata-se de uma outra condição. E não há nisto presunção, mas o encontro com a verdade da natureza que se possui.

Agustina, a eleita, não tinha dúvida acerca disto: de ser filha de Deus. Todavia, entre os homens, queria ser excelente em algo. A excelência é uma propriedade da excepção. Significa ser diferente de todas as outras, postas, juntas, num bando. Ser excepcional é ser único, é ser cosido pelo fio da singularidade. Ainda pensou que pudesse ser na pintura, à conta de um sonho premonitório. Mas foi nas palavras. Diz, com Gogol, que “ A palavra é às vezes mais preciosa do que o objecto designado”.

Quando aprendeu a ler, no mundo fez-se luz e passou a compreender tudo – escreve. Mais adiante, explicita que o cinema e os livros e a D. Inês deram com ela em escritora. Porque queria, e termino citando, “Escrever, entrar no coração das pessoas, beber-lhes o sangue, avançando sempre, criando enredos e fazendo saltar os personagens das páginas. Há pouca gente que percebe que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se têm encontros com Deus”. 

 

 

Texto de apresentação de O Livro de Agustina, na Cooperativa Árvore, no Porto, em 2002