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Anabela Mota Ribeiro

O Quarto do Bebé: lançamento nas Galveias

06.06.23

Quem leu O Quarto do Bebé e quem me conhece, sabe que é mais fácil para mim não chorar no sofrimento, e que é quase certo que choro na alegria. Por causa disso, e para tentar não me desmanchar desde a primeira frase, decidi escrever um texto.

Gostaria de dizer algumas coisas. Não muitas, porque o livro fala por si, e as leituras que ouvimos já nos adentram no que mais importa. Mas quero dizer que sou grata a muitas pessoas e expor uma constelação de encontros que me ajuda a viver e me ajudou a escrever. Ou seja, vou falar-vos da minha filiação, inserir o romance num movimento genealógico.

Está quase tudo nas dedicatórias e nas epígrafes.

Numa das dedicatórias, falo da selva oscura. Tive o privilégio de estudar com a minha querida professora Maria Filomena Molder a Divina Comédia de Dante, que começa com os versos: “No meio do caminho da nossa vida, encontrei-me numa selva escura...”.  A interpretação que proponho para estas palavras tão poderosas é a de a selva oscura ser um lugar de orfandade. Um desamparo existencial tão grande, um cair em si tão profundo que, subitamente, nos reconhecemos à mercê, e mortais.

Na outra dedicatória, eu falo das Auroras. Foi na minha querida avó materna Aurora que eu primeiro vi a morte na cara da pessoa amada. É muito diferente a morte de Ramsés da morte de uma pessoa amada. Ou da nossa morte, quando somos o gladiador romano que está na arena e sabe que vai morrer. Esta imagem da nossa morte quando nos vemos na arena foi-me dada pelo professor Eduardo Lourenço. Hoje ele faria 100 anos.

A minha avó Aurora era analfabeta. Que eu, sua neta, me exprima através da escrita, e que a mencione, e assim resgate, é uma coisa que intimamente me enche de comoção. Parece que assim ainda estou com ela, num elo profundo e muito antigo.

Dei o seu nome, o nome mais amado, a mulheres que me amaram e que eu amo. O nome também podia ser, simplesmente, Mãe.

N’ O Quarto do Bebé quis escrever sobre um núcleo que me obceca. Filiação, genealogia, fertilidade, infertilidade, nascimento e morte.

Escrevi como soube, sem medo, sem vergonha. Pensei-me no acto de escrever. A minha mão obedeceu, para citar Ana Hatherly que escolhi para a epígrafe. Escrevi como estratégia de sobrevivência, num processo catártico, tentando encontrar palavras para acontecimentos traumáticos (não só a minha doença) que ainda não tinham nome, ou cara. Escrevi por compreender que este é o espaço em que podia, em que posso ser livre.

Escrevi num quarto imaginário, sem mobília. Como canta o Brel na “Chanson des Vieux Amants”, que pus a tocar na outra epígrafe: chaque meuble se souvient de cette chambre sans berceau.

Escrevi muito com outros criadores, em particular com Machado de Assis.

Identifico uma noção fundamental no último romance de Machado: a orfandade às avessas. Significa que os pais (que não o foram) têm um sentimento de orfandade (pelos filhos que não vieram). E têm afilhados. E manifestam de muitas maneiras este cuidado filial.

Este tema, os filhos, estudo-o no doutoramento, e a escolha é anterior a’ O Quarto do Bebé.

Nesse romance de Machado, o Memorial de Aires, o formato escolhido é o diário. Há uma aparente linearidade na construção que me agrada. E nos outros romances da maturidade de Machado predomina a escrita de memórias e um dispositivo textual não raro escangalhado, um borboleteio. Além da emulação do meu escritor, assumida desde a Advertência, quis continuar com uma pergunta fundamental: porque é que escrevemos, para quem é que escrevemos, que legado deixamos, como será dito o nosso nome. Isto resumindo muito e deixando à porta questões muito complexas.

Pode ser que a escrita seja uma maneira de lidar com o tema dos filhos.

Neste romance, escreve sobretudo a filha. E uma mãe que sabe que não será mãe desses filhos a que o Bentinho do Dom Casmurro chamava “um filho próprio da minha pessoa”. Nem por isso deixa de sentir e encontrar um modo de extravasar a sua pulsão criativa, a sua fertilidade.

Se consegui escrever este romance a partir de 2020, é porque estes assuntos vivem comigo há muito tempo. Foi uma longa travessia. Comecei nos primeiros dias do confinamento. Concluí em Setembro do ano passado. A partir dessa primeira pedra, precisei de tempo de gestação. Para escutar a minha voz e compreender o que queria fazer. Em que sentido ia reescrever e construir o corpo do texto, como é que iria transformar a matéria inicial em literatura. E que formato ia usar para o meu romance. E o que é que ia fazer às referências autobiográficas.

Curiosamente tem sido essa a pergunta que mais me têm feito: o que é meu e o que é ficcional. Essa separação, em boa verdade, não existe e não me interessa. Somos sempre Bovary, somos sempre uma reconstrução da memória, estamos sempre a cair na ribanceira da invenção de nós mesmos.

Neste período, foi muito importante ler Annie Ernaux, que me foi dada pela Susana Moreira Marques. A Susana foi uma das primeiras leitoras do Bebé, quando ele ainda estava informe.  

Já agora: num mecanismo a que no livro chamo “as janelas comunicantes”, mandei o livro para a editora na véspera da atribuição do Nobel a Annie Ernaux. Quando falo de janelas comunicantes falo de presenças misteriosas, acasos, no invisível, no escondido, nas estranhas afinidades. Acho-lhes graça. Também aprendi isso com o Machado.

No Dom Casmurro, Machado escreve assim: “agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão”. Ah ah ah.

Agora que expliquei o título e os motivos que me põem a pena na mão, passo aos agradecimentos.

À minha editora Lúcia Pinho e Melo e a toda a equipa da Quetzal (Francisco José Viegas, Margarida Filipe, Rui Cartaxo Rodrigues, Vânia Custódio).

À Djaimilia Pereira de Almeida, Hélia Correia, Leila Slimani, Lídia Jorge pelas leituras tão encorajadoras e pelo incentivo para publicar.

À Joana Matos Frias, que me leu dentro da gemada.

Ao Noé Sendas pela menina tão linda e desamparada que está na capa.

À Beatriz Batarda, porque o seu corpo de actriz exprime o sofrimento.

Ao Pedro Penim, porque, comigo, tem no tema Pais e Filhos o seu tema.

Ao Rui Horta, porque tem uma relação filial com uma pessoa que inspirou uma personagem.

À Cláudia Varejão, Catarina Vasconcelos e à Estelle Valente, cúmplices de sempre, que me ajudam a tornar visível e a partilhar o que faço.

À Biblioteca das Galveias, em particular à Fernanda Bandeira, por nos acolher.

Aos meus amigos todos, os que estão aqui e os que não estão, à minha família.

E ao Zé António, que me disse para escrever.

 

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