O Quarto do Bebé p/ Gabriela Moita - Porto de Encontro
A Origem do Mundo
O Quarto do Bebé é uma visita guiada às ocupações da cabeça, ao longo do dia e no sono, através dos sonhos. Uma visita guiada aos pensamentos e emoções, ao processo de salvação, de (re)nascimento.
Está prenhe de associações. Associações sobre tudo a que o pensamento pode estar ligado. Desde as coisas básicas do quotidiano (o que o corpo faz e o que se faz com o corpo; a organização do dia e da casa) às emoções que vão acompanhando os pensamentos e se entrelaçam com a memória.
E a doença e a perda sempre a circundar.
Tudo é igualmente importante. Tudo é pertença do ser. Tudo e público e privado simultaneamente: uma cirurgia, a mosca da fruta que a circunda, a roupa na máquina, a guerra colonial, a morte. Tudo tem igual valor na descrição. Tudo é uma caixinha de pensamentos, sentires e agires. Tudo se faz com um “cuidado amoroso”. O sonho do pai-psicanalista, resumido nas primeiras páginas, é o sumário deste Quarto: “a nudez retalhada, como um cadáver prestes a ser autopsiado”.
Na leitura do romance apareceu-me com insistência o famoso quadro de Courbet “A origem do mundo”. O artista, com a nudez, mostra-nos que o mundo só existe pela possibilidade de criação/reprodução. E a existência dos humanos tem ali, numa parte do aparelho reprodutor, um dos seus pontos de partida.
Curiosamente é preciso escondê-lo. Até eu o fazia, hoje, no comboio... A origem do mundo precisa de ser escondida. É da ordem da intimidade, do privado, do oculto, do silenciado. Mostrá-la, expô-la, é expor o devasso! Confrontar o observador ou o leitor com os bastidores. Retirar-lhe o sonho.
“Causa surpresa não sentir nada na vagina, em baixo. Sei que foi por aí que saiu tudo. Tudo o que na minha vida se aproxima de um parto aconteceu nesse dia 24, em que pari o meu próprio aparelho reprodutor”. E assim a obra nasceu!
A criação do que quer que seja é sempre a repetição da “origem do mundo”, a repetição daquele quadro. O início de algo no mundo ou um novo mundo meu.
No romance, tudo parece começar pelo fim. É da infertilidade, e da procura de superação da dor que essa realidade provoca, que nasce esta obra.
E temos nela o nascimento do orgulho.
Faz-se uma superação do real pelo reconhecimento do poder do simbólico. Como quem diz: se a dor me persegue, vou usá-la a meu favor e transformar a perda, “a diferença” (num discurso normativo), em orgulho em ser quem sou, em libertar-me do estigma com que posso ser olhada e com o qual vivi algum tempo.
Não sem uma gota de culpabilidade que ainda obriga a explicar as diferenças de termos e sentidos: “Orgulho é um sentimento tonto, mas não é o mesmo que soberba. É constatar que fui capaz, que fui valente! [...] Eu fui aquela que teve recentemente hálito podre, a que sonhou com um estupro e um escopro”.
Contar, narrar os dias é não perder a memória das emoções, das boas e das más. Do sangue — como as carnes no talho.
Tanto sofrimento para quê? Se não servir para criar, para expelir, para aproveitar para fazer literatura, como diz Camila Sosa Villada, para dar um sentido à dor...
É a dor que faz criar. É a interrogação. É o querer entender, ligar, associar. Ester do Rio Arco fá-lo a brincar. Brincar para descobrir. Sente o prazer de descobrir associando. A realidade ao sonho e o sonho à realidade. O prazer de descobrir sentidos. E onde há sentidos há resolução, há descobertas e há alegria.
Ao acompanharmos Ester do Rio Arco, percebemos que tudo pode ser ligado. Um sabor, uma acção, um pensamento, um livro, uma leitura, uma memória. Uma suposição.
Encontramos mesmo, aqui e ali, com muita consciência e intencionalidade, o registo de uma criança a descobrir. Encontramo-lo no quarto da criança onde vive o bebé que está a nascer. Como o deslumbramento da criança que descobre o lugar para cada peça nos seus brinquedos.
O espanto é outra origem do mundo.
Escrever para encontrar. Para transformar – que borboleta será a que voará deste casulo? Ester sabe que a metamorfose existe.
Vencer, vencer, ultrapassar, dar e não dar. Corpo. Vísceras. O dentro e o fora. O sujo. Limpar, limpar, limpar. O sujo, os cheiros o bonito. Sempre com flores, como lhe dizia Aurora. Cuidando das flores para lhes dar mais tempo de vida. Observando-lhes a transformação — “estão a abrir, as orquídeas”.
Neste todo encontramos / tropeçamos em todos os temas.
A filha do psicanalista partilha com Ester a dor da infertilidade — “a dor de me sentir amputada, de não ser capaz de exprimir o desamparo, o sofrimento. Não tenho idioma próprio. A minha voz é um grasnar que fere os ouvidos”.
A filha do meu pai é o sujeito poético e traz o diário de Ester do Rio Arco até ao leitor. Esse bebé.... “Faço deste bebé órfão um filho adoptivo. Não é meu desde a origem, ab ovo, Mas faço-o meu. Dou-lhe outro nome. Justamente O Quarto do Bebé”.
Ora, isto é uma sublimação.
De tanta associação de que este livro é feito, associo tantos cocós e chichis aos objectos que são produzidos. Uma espécie de filhos que não ficam, mas que saem de dentro.
O orgulho da psicanálise atravessa o livro. Surge como apoio e validação. Revela enamoramento.
Encontramos n’ O Quarto do Bebé uma descrição sociológica do país a partir deste eu vivido. Da sua pobreza. Das palavras que codificam as classes sociais, dos códigos linguísticos que denunciar o lugar social. Vemos o bullying das roupas. Identificamos momentos históricos como a guerra colonial (o que ela fez às relações intrafamiliares), o assassinato de Marielle (marco de um tempo particular do Brasil), a pandemia global.
A pandemia: os medos, as expectativas, os seus dias. Um discurso possível do que se passou no dentro (das casas e das cabeças), as ofertas, as entregas, as limpezas, os artefactos: máscaras, gel. A dúvida: “aguentamos?”. A certeza: “já sabemos que aguentamos”. O que será depois? Que rasto?
O romance é escrito com vários corpos. O corpo biológico, o corpo social, o corpo simbólico, o corpo psicológico, o corpo mortal.
Importa notar a fixação no tamanho do corpo. Do corpo que nasce e que rasga porque é grande. Do corpo que não querer ser grande, que não pode aumentar — “Se engordar 8 quilos, suicido-me”.
E do corpo na intimidade. Vemo-lo até nas peças interiores, o que começa no sonho do pai, cujas cuecas aparecem entre outros objectos sérios, como papéis, a medalha atribuída pela Ordem dos Médicos ao avô.
Falar de corpo é falar de corpo mortal, de finitude. A narradora marca uma diferença entre a sua morte, o seu desaparecimento, e a morte da pessoa amada. Vê na morte de quem perde a sua morte antecipada. “A Aurora sou eu daqui a trinta anos”. Vê a Morte ela mesma, a morte directa.
Leio n’ O Quarto do Bebé um hino à superação.
Superação da classe social. Do estatuto académico (“vou ser doutora por extenso”). Do peso. Dos lugares geográficos. Do medo de ser abandonada. Da doença (“vou morrer, já sei que vou morrer, mas não é agora”). Do medo da morte:“sei de tocar o corpo e compreender que um dia é ele”). Da pandemia. Do tempo (“Faz de conta que é 20 de Outubro”). Da infertilidade (é uma Yerma, personagem de Lorca, orgulhosa da sua capacidade de sobreviver e que não fica destruída por não corresponder. Ester não produz um filho, mas cria o seu bebé, dá-lhe inclusive um quarto).
Escrever é um modo de superar. É ser capaz de gerar. É vencer o sentimento de infertilidade.
Não resisto a partilhar esta associação: o arquitecto finlandês Alvar Aalto construiu um sanatório em Paimio, em 1933, depois de uma estadia no hospital. É uma obra que surpreende pela pormenorização, ao ponto de ter pensado na luz de um doente que vive deitado na cama. O que muda em nós com a doença? O que fazemos com o eu que supera?
“Nascemos embarcados (...). Depois, somos desembarcados. O que quer que pensemos sobre aquilo que nos espera, nada podemos. Está fora do nosso alcance”, disse Eduardo Lourenço, citado pela autora. Como foi embarcar? Como está a ser o desembarque? Como está a ser o que encontra?
Gabriela Moita, psicóloga clínica
Texto apresentado na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, a 30 Setembro de 2023, na sessão Porto de Encontro.