O Quarto do Bebé p/ Prof. Sheila Khan - Univ. Minho e UTAD
O Quarto do Bebé: Um Dicionário para as Cicatrizes
Percorro com atenção a minha memória do encontro inesperado com o livro que a Anabela me convida a analisar. Perpassam-me emoções, indagações sociológicas sobre o que é afinal este quarto e este bebé. Quero afastar-me da minha ternura pela autora e reservar-me no dever de ler esta narrativa que é, com surpresa, um grito de liberdade, uma página nova na literatura sobre como escrever os traumas, as memórias sociais e familiares, a dor, a solidão a partir da doença.
Faço-me esta pergunta: como escrever sobre a nossa realidade partindo da memória vivida de um corpo vulnerável, inquieto e, no entanto, crítico a tudo o que o rodeia?
Há um registo literário que me interpela e exige esta partilha. Elif Shafak, escritora turca, escreve em A Ilha das Árvores Desaparecidas (2022), as seguintes palavras: “(...) os traumas familiares são como resina espessa e translúcida a pingar de um corte na casca. Gotejam de geração em geração. A trajetória de um trauma herdado é aleatória: nunca se sabe quem poderá atravessar-se no seu caminho (...)”.
Dentro deste quarto à beira de um país em confinamento, acompanho o percurso de uma doença que é metáfora esperta e vigilante sobre o que somos perante o nosso tempo contemporâneo. Encontro o estertor, a ousadia e a energia lúcida de uma reivindicação, uma pedagogia criada para mergulhar não apenas na consideração narrativa do cancro. Mas, e inesperadamente, identifico o mapeamento dos elos entre passado e presente histórico nas cicatrizes sociais e familiares, que assombram e continuam a desassossegar a nossa experiência humana, os caminhos e as múltiplas viagens que fazemos com os diversos eus ao longo de uma cronologia subjetiva e coletiva.
Neste quarto e, sobretudo, nesta escrita íntima cabe a expressão de uma sociedade portuguesa refém e, porque não dizê-lo, vítima de uma afasia social e cultural, perante uma amargura ainda por dizer, ainda a meio caminho, sobre a guerra colonial, as desigualdades sociais, os muros de separação cultural, os abismos agrestes que são a pobreza, a incapacidade de um chão seguro, que não seja frio e árido.
Eis a minha pausa, neste momento narrativo:
"Há poucos meses, a minha mãe contou que o pai da sua mãe, o avô Baltazar, era tão pobre que andava ao tostão. Nome de rei e mendigava. É daí que a minha mãe vem. Da sardinha para três, do caldo engrossado com farinha. A minha mãe não come sopa porque já comeu caldo que chegasse em criança. [...] Ter sido pobre, tão pobre, é um dos acontecimentos mais significativos da minha vida. Talvez o mais significativo."
Dizem que o 25 de Abril trouxe a liberdade airosa e vermelha nos cravos. Porém, esse tempo de outrora, esse pretérito teimosamente presente nas nossas memórias, não nos permite nenhuma distração, ou uma forma despudorada de esquecimento. O acolhimento das experiências de resiliência familiar e da coragem de muitos portugueses combatentes nessas outras terras ocupadas por um imaginário de superioridade colonialista, e que poucas esperanças trouxe para uma geração que viu esmagada a sua liberdade, o direito a uma vida digna, é trabalhado em cada veia memorial com a mestria de um escultor:
"Quando passaram quarenta anos sobre o 25 de Abril, dei-me conta de que o meu pai não estava quando comecei a andar e a falar. Tinha meses quando ele foi para a tropa. Essa era a condição de milhares de crianças. A compreensão dessa ausência, do trauma, da orfandade é uma coisa que só agora começa a ser escalpelizada. [...] Enquanto o meu pai lutava no mato, a minha mãe poupava dinheiro. Trabalhou de sol a sol."
A vivência da pobreza social, do passado colonial, os desafios do tempo atual, a gramática das feridas subtis e mudas reverbera em tantas outras memórias convidadas para este livro. Há tantas páginas e linhas sobre os quais pretendo falar, e até encostar-me a cada vírgula para aprender como uma aluna curiosa sobre como estar neste plano de pensamento através da escrita. Como diz Lídia Jorge, e cito-a não diretamente: a arte prepara-nos para enfrentarmos os grandes desafios do mundo.
A literatura é essa ferramenta, uma vontade ousada, imparável para olharmos por debaixo do espelho. Ter o desejo obstinado de irmos ao fundo de um dicionário explicativo das experiências humanas.
Por isso, coloco para mim mesma o seguinte compromisso: quero fazer da leitura de O Quarto de Bebé não só um objectivo afetivo. Vou ser eu mais do que uma leitora apaixonada pela literatura, um sujeito sociológico comprometido com um olhar sem medo, atrevido, acutilante, incomodando silêncios, exigindo outros lugares e vozes escondidas em tantos quartos do bebé; e colocar-me ao lado desta hospitalidade partilhada e auspiciosa.
Sheila Khan é investigadora da Universidade do Minho e professora auxiliar convidada da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
O texto constituiu o ponto de partida para a apresentação do livro na livraria Centésima Página, em Braga, em Junho 2023