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Anabela Mota Ribeiro

O Quarto do Bebé p/ Sónia da Silva - Luxemburgo

04.01.25

De que fala o primeiro romance da Anabela Mota Ribeiro?

A contra-capa resume-o bem, e numa só frase: “Escrito em grande parte durante o confinamento e a doença, e concluído após uma longa gestação, O Quarto do Bebé é um romance autoficcional em forma de diário íntimo.”

Mas será tão simples de resumir? A própria gosta de evocar um encontro em Lisboa com uma leitora, que lhe disse: “Já li o seu livro. Gostei muito, mas ainda não sei sobre o que é!” Uma reacção que recebeu como um grande elogio.  

O que leva certamente muitos leitores ao encontro deste romance é a hibridez do registo autobiográfico/autoficcional, e o grau de abandono.“Escrever é conseguir estar nua, desorbitada, fora do tempo cronológico. É avançar nua e intrépida. E sem vergonha, que é o mais difícil. Nua. Sinônimo de diário. É estar a sós comigo, a falar comigo”.

Sei que, enquanto romancista, esta questão da “identificação biográfica” não a interessa de todo, acha a questão pouco pungente; no entanto, cultiva esse amálgama. Qual foi, então, a sua motivação para propor um livro de “memórias contíguas”?

O enredo do livro é denso e cheio de referências intertextuais (Machado de Assis, Natalia Ginzburg, Svetlana Aleksievitch) que contrastam com desenvolvimentos mais pessoais e crus. Eu poderia desenvolver mais sobre a sua escrita em forma de rizoma, como assinalado pela Lídia Jorge, sublinhar o processo de mise en abyme, de simbologia ou de lapsos comentados (lixo/livro, mãe/mão, levura/leveza, etc.) aos quais recorre para adensar o propósito romanesco.

Mas o que reverberou, por fim, em mim, são certos temas desenvolvidos e que flutuam entre o que podemos chamar os 3 “I”: o interior, o instinto e o intestino.

Evacuamos logo o terceiro “i”, obsessivamente convocado. (páginas 54-55 / 33 / 140)

Há aqui uma “fala orgânica” que parte das vísceras e que pode incomodar certos leitores mais reticentes em ler considerações sobre essa matéria. Pois nem todos têm a ferramenta para fazer uma leitura psicológica - ou mesmo metafórica ­- deste processo de gestação, e de ver nele uma forma quase auto-irónica de se afirmar.

O que a levou a obrar desta forma? Será que foi para “limpa, emergir da noite e do silêncio / e leve, habitar a substância do tempo”, citando assim o famoso poema de Sophia?

Voltando às temáticas, escava com uma invulgar sinceridade temas universais como a infertilidade, a filiação, a fisiologia, a feminilidade, a mortalidade, mas também as origens do eu, do país e da linguagem.

Essas introspecções constantes e destemidas mexem muito com o leitor: deslizamos nessas “correntes de consciência e subconsciência” e emergimos atordoados. 

De facto, a leitura do romance detona coisas muito poderosas. Gostaria de evocar em particular as seguintes:

- o retrato antropológico que faz do país: “O isolamento desperta as memórias mais inesperadas” e traz assuntos à tona como o do tempo colonial; (pág. 74)

- a escrita como catarse;

- a constante analogia com a obra de Machado de Assis, sobre o qual prepara um doutoramento; (pág. 68)

- a viagem ao eu íntimo, que equivale a um processo de escuta da sua própria voz, e que explora com tacteamento e angústia: “Quando eu for borboleta, terei escrito um romance. Resta saber se serei capaz, ou se prolongo mais e mais o tempo de gestação, com medo de parir. Que parir doa muito”. (pág. 183)

- estabelece um paralelo entre a escrita e o processo de gestação: “Perguntei-me se o que escrevo não é uma fala orgânica. O meu corpo e o meu ser a falar em discurso direto. Um filho, como a escrita, é a extensão orgânica de quem somos”. (pág. 187)

“La peur d’être déplacée, d’avoir honte” é uma frase de Annie Ernaux que Anabela Mota Ribeiro cita amiúde. Tem origens humildes, apesar de hoje ter um estatuto e uma carreira profissional com grande exposição pública. Com este romance, chega e leva os leitores a sítios onde as pessoas raramente vão. Será um modo de vingar os seus na escrita, de que falou a escritora francesa no discurso de aceitação do Nobel?

Dito de outro modo, trata-se de: linguagem “primordial”/ casa original / lugar primordial. No léxico usado, surgem palavras do passado que são como marcos identitários, que remetem para um lugar constitutivo do nosso ser. (pp. 96/97)

O corpo das mulheres como “um lugar de batalha” é um assunto central n’ O Quarto do Bebé.

- alerta para a sua preocupação de não fazer o luto do corpo erótico. (pág. 60) 

- a obsessão com a magreza é constante:“Vejo as fotografias nos meus anos. Ali estou eu, preocupada com um cancrozinho de merda, aflita com a possibilidade de engordar ou perder o cabelo.” (pág. 56)

- fala de um prazer de se dominar, tal como na escrita tenta chegar ao osso. Essa vontade de secura revela um desejo de se auto-editar, de cortar a gordura, de se despojar e ficar apenas com o essencial - para “ser uma pluma, sem peso ou dor”?

Quando aborda a relação/identificação mãe-filha, é marcante a vontade de se sintonizar com a primeira infância, com esse substrato primitivo, a forte identificação com a mãe, a sua atenção empática ao contexto rural do qual é oriunda, faz uma evocação honesta do amor filial especialmente revelada durante a viagem a Londres (pp. 220-221 / pp. 225/226).

Podemos resumir o romance como um livro sobre a sua mãe?

 

Sónia da Silva é tradutora, doutorada em Letras. Este é o texto a partir do qual conversou comigo no Centro Cultural Camões do Luxemburgo, no dia 18 Out 2024.