Olga Roriz
Podia ter sido fotógrafa, pintora – diz ela. Todavia, sempre soube que seria bailarina. Desde muito jovem, desde aquela primeira professora que insistiu com os pais para que investissem no talento da menina. A família mudou-se de Viana do Castelo para Lisboa para dar seguimento ao projecto. Ela estudou e firmou-se como intérprete de excepção no panorama da dança em Portugal.
Em 2005 coincidem três aniversários: os seus 50 anos, os dez anos da sua companhia e os 30 anos de carreira. Um ano de comemorações e de produções constantes. Curtas-metragens realizadas por si e de exibição apontada para Agosto e Novembro (a primeira foi em Abril). E uma nova coreografia com um título cinematográfico: «Amor ao canto do bar vestido de negro», que deve estrear no Outono.
Olga Roriz é bailarina e coreógrafa. Fala do seu corpo como se fosse uma casa que ela conhece muito intimamente. O que lá se passa, os percursos e emoções, são uma parte do que podemos ver sobre o palco.
Disse numa entrevista que «o amor é para ficar fora do palco». Contudo, uma das coisas que definem a sua dança é o movimento estar prenhe de sentimentos, de vísceras. Como é que exclui o amor?
A grande distinção, no meu trabalho, tem a ver com a paixão. A paixão é uma coisa descontínua, curta, forte, extrovertida, que implica os órgãos todos; não é só o coração, há um revolver dos intestinos… O amor está mais próximo do equilíbrio. O estado de felicidade é um bocado amorfo, improdutivo, não produz. O meu trabalho é desenvolvido com muito amor. Mas o que levo para o palco tem a ver com um lado conflituoso, com coisas e ideias que me perturbam. Há uma grande confusão entre a minha personalidade e aquilo que faço!
É aparentemente contraditório. Porque há uma grande tranquilidade no processo de construção e descoberta_ mesmo na sua voz, que é pausada e suave. E depois há uma agressividade, uma tensão que parece estar prestes a desabar, que é o que aparece nas suas coreografias.
Exactamente. A maior parte das pessoas que falam comigo dizem: «Ah, mas afinal é tão calma!». Estava à espera que eu agora lhe desse um murro?! É óbvio que é uma conjugação de tudo o que sou. Trabalho muito como um encenador, dirijo. Mas estive 18 anos na Gulbenkian onde trabalhava com o método mimético: fazia o movimento e os bailarinos interpretavam-no mais pelo lado de cópia. Neste momento, há um diálogo criativo muito maior, entre o improviso dos bailarinos e a minha direcção. Comecei com as mesmas características que tenho hoje, apesar de ter havido um percurso de desenvolvimento. Tem a ver com o meu próprio corpo.
Tem uma definição para corpo?
Corpo é invólucro deste cérebro e desta alma. Que tem características específicas. Anatómicas e orgânicas, tipo de musculatura, tipo de articulações, desenvolvimento ósseo. Como mulher, como ser humano, tenho tendência para fazer umas coisas. Sou uma mulher lenta, com peso, com um tronco exageradamente longo em relação às pernas; é um tronco que fala muito. Umas costas largas, curvas, em forma de concha, um pescoço longo com uma cabeça que flutua. Umas mãos muito expressivas, uns braços compridos, umas pernas e uns pés muito agarrados ao chão.
Faz uma descrição exacta do seu corpo.
Sim. É nos nossos limites, no encontrar o nosso limite, que devíamos trabalhar. Às vezes, ao tentar ultrapassar os limites, o que a pessoa está a fazer é a descurar aquilo que consegue fazer, e é aí que se deve desenvolver. Houve, pelo menos, duas pessoas, bastante cedo, na minha carreira, que me despertaram para este meu tronco, esta parte de cima das ancas, [para o modo] como isto tudo se move.
Há no seu corpo um lado térreo, as pernas, os pés, como um tronco firmado no chão, e há toda uma parte mais volátil, como se fosse a copa de uma árvore, onde o movimento é mais solto.
Sim. O facto de todos estes membros terem uma característica mais oval, arredondada, faz com que eu tenha muita facilidade (e aí está o limite) na contracção rápida. Uma das qualidades da minha movimentação, e por aí da minha coreografia, tem a ver com uma dinâmica. Essa dinâmica é muito precisa: são os contrapontos entre uma coisa muito suave e uma capacidade de contracção muito rápida, que dá essa tal agressividade.
Como é que se reconheceu assim?
Fiz um percurso de formação linear, não houve empurrões nem saltos para a frente – por isso é que ainda consigo dançar, toda esta musculatura foi bem construída… Quando conheci a técnica Graham, (da escola Martha Graham), que passa por um recolhimento ao chão, apercebi-me de que estava como um peixe na água. O meu corpo cedia muito facilmente a essa técnica. A minha relação com o chão foi, desde o início, de amor e paixão.
O que é que caracteriza essa relação com chão?
O desejo e a vontade e o gosto pela queda. Na queda há o prazer do precipício, o momento da verticalidade, o momento em que já não há recuo.
Não tem medo do impacto e do contacto com o chão?
Isso foi uma técnica que fui adquirindo e passando a outras pessoas. Vários bailarinos se lembram do primeiro ensaio que tiveram comigo, de, no dia a seguir, estarem cheios de nódoas negras, doridos... Porque não sabiam cair.
Falou de uma coisa muito importante: o reconhecimento que cada um faz de si, das suas características, do perímetro que tem para explorar.
É aí que sou diferente do coreógrafo que está ao meu lado, que tem características completamente diferentes, que teve outro percurso. Isto falando só na parte física, porque, depois, as nossas cabeças e as nossas vivências são outra coisa...
Entram em igual proporção?
Completamente. Mas a parte física é muito importante, porque podia pensar uma coisa e o meu corpo não estar ao meu serviço, digamos. Há uma osmose. Não sei qual é que começou primeiro, como é que se entenderam os dois, mas a minha cabeça e o meu corpo dialogam muito bem. Às vezes faço coisas e pergunto: «Mas como é que este corpo sabe isto?». Entraram em sintonia, ou sempre estiveram em sintonia. Se me perguntar quando é que comecei a dançar, não me lembro. Acho que sempre dancei.
Tem memórias recônditas de si a dançar?
Recordo-me de, quando ainda era muito miúda, arranjar a sala, fechar os estores, pegar numa cadeira, pôr uma luz, a música certa, estar a encenar qualquer coisa, que partia sempre de uma ideia.
A ideia funcionava como um enredo?
Pode ser uma espécie de diálogo simbólico... Por exemplo, uma improvisação sobre como é um corpo esvaziado de paixão, mas cheio de desejo, um corpo sozinho.
Como é que se lança para uma improvisação sobre este tema e como é que faz aqueles gestos todos?
Eu sei que isto é para escrever..., mas explico-lhe e talvez consiga transcrever. [fecha os olhos e o movimento passa a acompanhar aquilo que diz] Penso numa pessoa que me deixou e que eu desejava. Ele era deste tamanho. Eu gostava de lhe pegar no pescoço e de o trazer para mim, e de o embalar. Mas ele já não está cá, não existe nada agora. [Cessam os movimentos e volta a falar comigo] Eu posso realmente só fazer isto [os gestos], isto, isto. Que é nada!
Os seus movimentos nunca são esvaziados. Abstracção é uma palavra que nunca irá bem consigo. A sua base é o concreto.
Aliás, um dos problemas que enfrentei no início da minha carreira foi quando me pediam, (e insistiam) que fizesse dança pela dança, deixasse de ter aquelas ideiazinhas que tenho... Até que o Jorge Salavisa, que foi a pessoa que me incentivou e me fez crescer no Ballet Gulbenkian, se apercebeu de que por aí eu não ia. Escolher uma música e fazer uma coreografia para essa música, então, é o fim!
Portanto, os seus movimentos têm um enredo por trás e têm uma ambiência. Essa preocupação com a encenação, com o espectáculo total, é uma coisa muito antiga em si. Terá que ver com proximidade com a ópera? Estudou desde os oito anos no Teatro S. Carlos, pôde conviver desde muito cedo com a mais sintética das artes.
Eu vivia num conto de fadas. Não posso deixar de dizer que isso me influenciou, dos oito aos 14 anos só pode ter influenciado. Ainda por cima há um lado barroco. Numa festa de Verdi há uma mesa, há pratos, há cadeiras, há uma vivência das coisas no sentido real. Não transpus isto completamente para a minha obra, fi-lo de um modo mais depurado. As coisas aparecem sempre com um “porquê”. Aquela cadeira existe porque vai ser utilizada. Raramente usei um cenário pelo lado decorativo.
Tudo é funcional.
É uma coisa funcional, usada pelo bailarino como se fosse um outro corpo. Quando eu própria faço os cenários, tiro as coisas do lugar, transformo-as, passam a ser outras. No caso dos “Malmequeres” [peça “Não destruam os malmequeres”], um canteiro de malmequeres num jardim, não é exactamente o mesmo que um canteiro de malmequeres num palco... Essa vivência das óperas, do palco, com certeza que ficou. Foi utilizável, serviu-me, integrou o meu imaginário.
Os livros que lê, os filmes que vê, que peso têm na construção do seu imaginário? É um peso tão expressivo quanto o das óperas? As palavras estão muito presentes no seu trabalho, e desempenham uma função, não são simples adereços.
As minhas primeiras leituras nem sequer foram influenciadas pelos meus pais, apesar de eles lerem imenso. Comecei com o Nietzsche e Schopenhauer, novíssima. Ainda no outro dia encontrei o [Assim falava] “Zaratustra”, todo escritinho nas margens, com uma letra ainda diferente. Gosto de ensaios de filosofia, psicologia. Quase nunca leio romances. Ou então são histórias como as do [George] Pérec, que, em vez de falar do casal que está dentro da casa, fala da modificação da casa ao longo dos anos. Claro que depois há Kafka, Jean-Paul Sartre, Camus, Genet.
É aparentemente mais fácil coreografar histórias de amor: trata-se de encenar a vida como ela é. Mas como é que se encenam ideias? Como é que se dá corpo e tridimensionalidade às ideias?
É um trabalho que demora muito tempo. Agora demoro quatro a cinco meses a desenvolver um projecto. Mas, antes de o trabalhar em estúdio com os bailarinos, há uma pesquisa sobre o tema. Por exemplo, «Propriedade Privada» era sobre cinema, «Propriedade Pública» era sobre sem-abrigo. Os bailarinos estiveram a dormir na rua para perceber o que era. Eu estive a observar, observei imenso. O próximo projecto, que estreia em Outubro, chama-se «O amor ao canto do bar vestido de negro».
Esse título sugere um quadro do Hopper...
O que é que é este «Amor ao canto do bar vestido de negro» sem ser “aquele” amor ao canto do bar vestido de negro? Ou seja, desligado das minhas vivências. Foi uma luta de noites e noites, eu a escrever. Até que um dia, um minuto, um segundo as imagens começaram a aparecer desapegadas das minhas memórias. De repente, deixou de ser “aquele” casal e passou a ser um grupo de homens e mulheres e a relação de cada um deles com o amor. O que é que é o amor?, este encontro, este desencontro, esta sensação, este ar que passa de repente? Começo a construir cenas, três homens, três ventoinhas, e uma mulher de cabelos ao vento.
A história que é contada, através do movimento do corpo e das palavras que são ditas, é a sua história? O que temos nas suas coreografias são fragmentos da sua vida, pedaços de si reelaborados, reinventados?
Não. Eles partem todos de mim, são quase reflexos, como se me visse no espelho. Coisas que vivi, li, coisas que me perturbam, de que não gosto, com que não concordo. São os meus medos, os meus exorcismos.
E no movimento, na expressão, na libertação, a sensação é sobretudo de prazer? Também de desprazer? A exigência física é tremenda. Como um atleta de alta competição, como um instrumentista que trabalha infatigavelmente o seu instrumento, o bailarino exige do seu corpo o absoluto.
Depende. O desprazer pode ser uma coisa que não acaba mais. O prazer acontece, comigo e com os meus intérpretes, quando se percebe o que é que se quer dizer quando se faz o que se faz. Não se trata de depurar o movimento per se, mas de comunicar esse movimento da melhor maneira. Aí está um prazer inaudito: o da comunicação. Só pode trabalhar comigo quem tiver essa vontade e essa necessidade. O prazer de trabalhar o corpo e a voz vem depois.
É capaz de ter uma relação próxima com pessoas que vivem desligadas do corpo? Que não usam o corpo como elemento de expressão?
Só não consigo falar com pessoas que não sejam criativas, sensíveis. Mas podem não ter absolutamente nada a ver com o corpo. Faz-me confusão se não há o mínimo de elegância no estar. Pode ser uma mulher ou um homem. Os bailarinos têm aquela coisa de serem magrinhos, mas não tem a ver com isso. Há em mim um lado estético muito forte.
É no corpo que mais sente a marca do tempo?
Sim. Gostava de ser desligada das datas, mas já percebi que não sou, bem pelo contrário. Mesmo em relação à minha vida privada, não sou nada desligada. A minha memória é muito visual e muito física. Geralmente lembro-me daquele dia, daquele sítio, da minha posição, da posição das outras pessoas.
O envelhecimento atormenta-a?
Estou muito bem dentro do meu corpo. Talvez seja porque foi bem tratado. Só comecei a fumar depois de ter tido a segunda filha, aos 33 anos. Só comecei a sair à noite aos 40. Como as coisas que se devem comer; nesta altura, não como carne, mas gosto de tudo.
Vive bem com o seu corpo?
É com este corpo que me faço, que cresço, que continuo a crescer. Apercebi-me de que vamos estando prontos para as coisas. O problema é pensarmos nelas prematuramente, pensarmos na morte prematuramente, pensarmos no envelhecimento prematuramente. Uma ruga não aparece de um dia para o outro, as coisas vão-se modificando aos poucos. Eu pensava que uma mulher de 50 anos era uma mulher velha. Neste momento estou no meu estado quase perfeito.
Estado adulto.
A todos os níveis. O meu corpo sabe tanto, a nível profissional e a nível íntimo; a minha cabeça também. O meu corpo é muito activo, mexe-se bem, gosto do que faço. Neste país, sou a única bailarina que, aos 50 anos, continua a fazer solos de uma hora. Tenho o privilégio de ser coreógrafa. Não tenho que lutar contra o meu corpo, fazer uma coisa que alguém me manda fazer. Faço coisas económicas para mim, coisas que estão certas. Até o meu osteopata me diz: «Os seus trabalhos fazem bem ao corpo». Danço aquilo que o meu corpo sabe dançar e faz bem.
Aquilo que lhe é natural…
E que vai fazendo cada vez melhor. Obviamente sei o que não posso fazer, e não me lanço para isso. Para quê? Façam outras pessoas mais jovens! Eu tenho muitas coisas para dizer agora que não podia dizer antes. Coisas que só agora é que sei e consigo dizer. E isto é extraordinário para conseguir levar a bem essa coisa que é o envelhecimento.
Por último, gostava de pedir-lhe um comentário à extinção recente do Ballet Gulbenkian, por onde passou e onde se destacou.
Fica uma lacuna. Era uma companhia de qualidade, uma das melhores da Europa, e uma alternativa. E essa qualidade e o ser alternativa só eram possíveis graças ao apoio financeiro da instituição. Aí nasceram e cresceram e apresentaram-se coreógrafos e bailarinos portugueses e estrangeiros. Houve um público que foi educado para outras linguagens na dança, e tudo isso desaparece. Não quero dizer que seja insubstituível. Mas é uma pena desaparecer de um dia para o outro qualquer coisa que demora tanto tempo a construir.
Publicado originalmente na Revista Elle em 2005