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Anabela Mota Ribeiro

Para o José Medeiros Ferreira

20.02.15

Que outras pessoas conhecem capazes de reunir numa sala, dois dias, pessoas tão, tão diferentes a falar de uma vida, a celebrar uma vida? Esta sala é uma amostra do que era José Medeiros Ferreira. Personalidade caleidoscópica, riquíssima, com rara intuição para ver o desenho do futuro, inteligência poderosa, as qualidades que todos sabemos.

Eu gosto de olhar para ele como uma criança que se diverte com o seu brinquedo. E o brinquedo é o pensamento. E a diversão é uma forma de estar, talvez a única: manifesta o gozo de estar vivo, de abrir os olhos, muito, e rir-se do mundo, de tudo, de ter prazer na descoberta do mundo, na intervenção no mundo, como se isso fosse uma contínua brincadeira.

Numa das entrevistas que lhe fiz, perguntei-lhe que personagem seria no Júlio César, de Shakespeare, que citava muito. A resposta: “Li esse livro na Biblioteca de Ponta Delgada, com 16 anos. Foi talvez o melhor livro sobre o drama da actividade política. Vou dizer o Marco António. Por causa da frase de Júlio César sobre os seus amigos políticos: “Não temo António porque ele é alegre, bon vivant, dorme bem, está satisfeito com ele próprio”. Além do acto de fidelidade pos mortem ao Júlio César, muito bonito.”

Não é difícil reconhecer Medeiros nesta descrição: uma pessoa alegre, que dorme bem e é fiel – aos amigos, à liberdade, a si próprio. Alguém que, e volto a citá-lo, está pronto a nascer todos os dias, como uma criança. Que dá mais importância à sua existência do que à sua actividade. Por mais decisiva que fosse a actividade.

Uma amostra disso, falando da sua juventude.

- O que é que queria, mudar o mundo?

- Se pudesse, naquela altura era o mínimo [riso].

O mundo foi mudado por Medeiros Ferreira em todos os sentidos. O político, o universitário, o pensamento, pessoal... Ele tocou a vida e tocou-nos com a sua. E que deslumbramento isso ter sido feito graça e inteligência! Sublinho a graça: tocado pela graça. Se fosse só inteligência, seria tanto, e não seria a mesma coisa.

Uma pergunta para terminar: de onde vem Medeiros Ferreira? De que terra brota uma existência como a dele, a de alguém que sabe o seu lugar no mundo? Algumas pistas: “Não me sinto superior a ninguém, mas nunca senti ninguém em cima de mim. Há pessoas que admiro, mas não há ninguém de quem possa dizer que exerceu uma autoridade moral sobre mim. Os meus pais, claro, deram-me uma educação de grande empenhamento, valores clássicos e tradicionais, uma educação para a responsabilidade.”

Ele fez-se nos Açores: “Eu escrevia num jornal, que ainda existe, o Correio dos Açores, cujo director era amigo do meu pai, o Dr. Gaspar Read Henriques. Fazia crítica de cinema, como se faz aos 16, 17 anos, e ele publicava-me na primeira página. O meu pai assinava os jornais do continente, A Bola, o Diário de Notícias. Iam de barco, era mais barato. No princípio dos anos 50, havia duas carreiras regulares de Lisboa para São Miguel: o Carvalho Araújo e o Lima, de 15 em 15 dias. Eram barcos que tinham sido confiscados aos alemães no tempo da Primeira Guerra Mundial.” Quanta informação está nestas linhas, e a fluidez com que passa de uma a outra.

O texto da Maria Emília no livro de homenagem deixa-nos saber que foi muito amado, e sabia da centralidade deste amor. Talvez essa tenha sido a sua terra mais fecunda.

 

 

O essencial da comunicação que fiz na Gulbenkian, na homenagem a JMF nos dias 19 e 20 de Fev. de 2015