Pascal Teixeira da Silva
Para o país dos cravos, Pascal Teixeira da Silva trouxe o seu cravo. O instrumento, lindíssimo, está já disposto no palácio de Santos, sede da embaixada de França em Lisboa, nova morada deste luso-descendente. Em Setembro, recém-chegado, monsieur l’ambassadeur deu uma entrevista num português titubeante, mas correcto. Foi dele a escolha de falar em português.
É um énarque, nome dado aos alunos da École Nacionale de Administration, frequentada pela elite francesa. É um diplomata que estava na Alemanha quando caiu o muro e em Moscovo quando a União Soviética se desmembrou. Começa a carreira como embaixador em Lisboa (um posto habitualmente atribuído a diplomatas em fim de carreira). Não é factor despiciendo ser luso-descendente, claro. A fasquia fica mais alta, considera. Tem 53 anos.
Pascal Teixeira da Silva foi educado num colégio de jesuítas, em Bordéus. Tem dois filhos: “O mais jovem, que está aqui connosco, aprende português no Liceu Francês. O mais velho, que está em Paris, porque é estudante na Escola Superior de Comércio, está a aprender português também”. O português e a cultura portuguesa são, mais do que tudo, uma escolha que consolida um vinco identitário, um património.
Na família Teixeira da Silva, as mulheres não são concièrges, como acontecia frequentemente com as portuguesas que emigravam para França. Mas o pai, que morreu há 17 anos, e que sonhou para o filho um futuro notável, ainda conheceu a carência, a dureza, o trabalho árduo.
A conversa excluiu quase completamente questões políticas e é anterior às greves gerais que assolaram a França nas últimas semanas. Tratava-se de traçar a história de uma ascensão social, por via do estudo e do trabalho, de contar parte da história de uma família portuguesa que emigrou para França.
Pascal Teixeira da Silva, monsieur l’ambassadeur, é contido, afável, toca cravo. Quando soube que vinha para Lisboa, pensou que para o país dos cravos trazia o seu cravo.
Martin Scorsese, no documentário A minha viagem a Itália, ao lado de uma pequena televisão, começa por dizer que nasceu num bairro americano, e que aprendeu o que é ser italiano a partir dos filmes italianos que passavam na televisão e que via religiosamente ao domingo. Isto serve de intróito para lhe perguntar como é que aprendeu a ser português? Se é que se sente português.
Acho que cada pessoa tem várias identidades. Há o ponto de vista do país de que se sente cidadão. Há a dimensão cultural. Há a dimensão sentimental. Do ponto de vista do país onde se vive, sou francês, nasci em França. O meu pai e a minha mãe são franceses; com uma dimensão adicional, particular, um enriquecimento: o meu pai nasceu em Portugal, de pais portugueses.
Os seus avós emigraram, como tantos outros.
Sim, milhares de portugueses foram para França, em especial nos anos 50, 60. Mas no caso dos meus avós e do meu pai isso aconteceu no início dos anos 30. O meu avô era trabalhador de uma pedreira, uma carrière de pierre. Ouviu falar de possibilidades de emprego em França, que precisava de mão-de-obra. Um milhão e meio de franceses tinham morrido na Primeira Guerra Mundial, a demografia francesa era depressiva. Foi-se embora para uma pequena cidade, Argenton-Chateau, mas a mulher e os filhos ficaram dois anos em Portugal. Em 1933 decidiu que a família iria viver com ele. E na primavera desse ano, o meu pai, a mãe e a irmã foram-se embora. Muitos filhos nasceram depois em França, onze atingiram a idade adulta. Os meus avós fizeram a escolha de aprender francês e de falar francês com os filhos.
O seu pai, quando foi para França, tinha cinco anos.
Aprendeu francês muito rapidamente. Quando tinha 17 anos, na escola, preparou-se para o baccalauréat. “Aprendi latim, grego, inglês, mas não falo português. Esqueci a língua dos meus pais e do meu país de origem”. Aprendeu por correspondência. Em 1948 voltou a Portugal, um mês, para visitar a família e falar português. Dois anos depois, com dois amigos franceses, veio a Portugal de bicicleta, no verão, por Espanha. Pode imaginar o que era andar de bicicleta por Castela em 1950... Lembro-me de o meu pai contar essa viagem extraordinária. Essa origem portuguesa era parte da sua história, da sua identidade, da sua personalidade.
A sua experiência, no que diz respeito à língua, não difere muito da do seu pai.
Estudei Ciências Políticas e Direito, e decidi que ia aprender português. “Não posso falar em português com o meu pai, já visitámos primos, tios-avós. Porque não aprender? Faz parte da minha história”. E como ele, 33 anos depois, fui a Portugal passar férias, por Castela, no verão. Não de bicicleta, mas de carro, sem ar condicionado.
Queria perceber um pouco melhor a natureza do seu avô. Era um homem audacioso? Anos antes do grande surto de emigração, aventura-se numa realidade que desconhecia.
O meu avô viveu até aos 81 anos, o que é bastante para um homem que nasceu em 1902 e que trabalhou muito, num trabalho muito duro, primeiro em Portugal e depois em França. O meu pai nasceu numa aldeia que se chama Sardoura, perto de Castelo de Paiva. (Quando a minha avó, com os filhos, foi embora, em 1933, um irmão acompanhou-os à estação do Porto e foram de comboio para França.) Não é uma decisão fácil, deixar a terra, a família, os amigos, e criar uma nova vida num país estrangeiro, sem conhecer ninguém. Fez uma aposta sobre o futuro, mas não conheço as suas motivações. Nunca ousei perguntar ao avô, e ele nunca mo disse.
Tinham uma relação próxima?
Nunca tive uma intimidade que teria permitido fazer perguntas desse tipo. O tipo de relação que existe agora entre as gerações é diferente; os meus filhos e a minha mãe têm um intercâmbio, falam dos seus problemas, ela conta coisas sobre a minha juventude, sobre o meu pai. É uma experiência que tive não só com os avós portugueses mas também com os franceses. É uma questão de época. O pai da minha mãe nasceu em 1893.
Os emigrantes portugueses, sobretudo os que foram na grande debandada dos anos 50 e 60, mantiveram uma forte relação com Portugal. Continuavam a ser portugueses, mas desta vez em França. Aquilo que descreve é uma família que quer adaptar-se absolutamente ao meio. Falar francês em casa é expressão desse corte.
Não totalmente. Mas é preciso lembrar a situação. A família dos meus avós era a única família portuguesa numa cidade muito pequena, 1500 habitantes. Manter um pequeno Portugal à dimensão de uma família, embora numerosa, não fazia sentido. O que queriam era oferecer aos filhos oportunidades de ter uma vida melhor – por isso [a opção de] falar francês. E todos conseguiram, encontraram um lugar na sociedade, na economia francesa. É diferente quando há milhares de portugueses que vão para França nos anos 60, formam comunidades, mantêm uma prática de língua, em casa e com os amigos. A perspectiva da volta a Portugal, não só nas férias mas também “um dia”, era mais palpável para esses do que na época em que os meus avós foram para França.
Mas isto não impediu o meu pai de preservar uma outra identidade. Por isso aprendeu português. Veio a Portugal várias vezes, primeiro em 1948, depois em 1950 e em 1956 com os pais, de carro. Cada vez que vinha, o carro era um pouco maior. Era um símbolo do sucesso social. Foi o único da sua geração que aprendeu português. Eu sou o único da minha geração, dos netos, que aprendeu português.
Lembra-se de o seu pai, já depois de se reencontrar com a cultura portuguesa, lhe falar de coisas que eram tipicamente portuguesas?
Sim. Viemos a Portugal várias vezes nas férias. Aprendi a conhecer Portugal e as características portuguesas. Uma coisa que me impressionou porque o meu pai me falou disso: a muito famosa saudade, que ele considerava um traço específico, difícil de definir. Um pequeno exemplo: construiu uma casa numa estância balnear, na região onde se instalou e passou a maior parte da sua vida de adulto, Bordéus; e deu-lhe o nome de Saudade. Significava uma espécie de encarnação de sonhos ou de esperanças, uma forma de mostrar que conseguiu combinar o sonho e a realidade, o passado, o presente e o futuro, várias identidades.
Aquela casa era uma forma de gratificação pelo esforço começado pelo seu avô?
E pelo seu esforço, também, porque trabalhou muito. Quando tinha nove anos deixou de ir à escola. O pai disse: “Não consigo ganhar o suficiente para toda a família, o mais velho tem que trabalhar”. Começou por trabalhar numa quinta, cuidava do gado. Aos 12 anos conseguiu voltar à escola. Graças a um padre que o ajudou e que reparou que era inteligente e trabalhador, com capacidades. “Este rapaz merece mais do que ser um trabalhador rural”. Foi para um pequeno seminário.
Interno, vivia lá?
Sim. O meu pai tinha um reconhecimento grande à igreja, porque os estudos que fez no seminário deram-lhe uma possibilidade muito maior do que teria se tivesse ficado na quinta ou simplesmente estudado até aos 14 anos. Esteve no seminário dos 12 aos 20. Era preceptor dos meninos da quinta nos fins-de-semana e nas férias, e tinha pequenos empregos paralelos para ganhar um pouco de dinheiro. Nunca recebeu dinheiro da família, os pais não podiam gastar dinheiro com ele, havia os outros irmãos e irmãs.
Há aí um ensinamento fundamental que depois toca a sua vida: o de que através dos estudos pode-se alterar um destino, pode-se contrariar o determinismo da origem de classe, da família.
Exactamente. A escola é uma porta que se abre para um outro destino. O que digo é uma coisa banal, é a ideia de base do ensino público e gratuito – que é uma forma de liberdade.
Foi o seu pai que sonhou para si que fosse um énarque, um aluno da reputada École Nationale d’Administration (ENA)?
Não, foi escolha minha. A educação e o sucesso escolar eram muito valorizados, o meu contexto familiar conduziu-me a seguir essa via.
Frequentar uma escola de elite era uma coisa, em princípio, improvável para um luso-descendente, mesmo na sua geração. Havia outros luso-descendentes a frequentar a escola?
Não os conheço a todos. A promoção social e socioprofissional deve ser vista não só no espaço de uma geração. O meu pai era presidente de uma companhia de segurança, depois foi director regional de um banco, pertenceu à categoria de cadre supérieur [quadro superior]. O meu avô era um operário muito básico.
A promoção social fez-se em duas gerações. O que fiz não é uma coisa extraordinária. Há pessoas que não têm a possibilidade de escolher devido à origem familiar, ao nível de estudos, ao bairro onde moram, ao ambiente cultural. As possibilidades gerais são muito estreitas. Mas temos que manter e consolidar a meritocracia. Escolher os melhores na base do esforço e do mérito deve ser o critério principal.
Na sua infância, deu-se com portugueses? Tinha amigos ou filhos de amigos portugueses?
Não.
Quando é que lhe ocorreu pela primeira vez que podia ser embaixador, que podia ir para as grandes escolas, que podia seguir o caminho iniciado de ascensão social pelo seu pai?
De início não foi uma decisão consciente. Era um bom aluno. Nasci em Bordéus, vivi lá até aos 23 anos. Sou filho único, e isso também tem um papel. Fui o único alvo de atenção e preocupação dos meus pais.
O que também já marca uma grande diferença em relação ao seu avô, que teve 11 filhos.
Sim. Nunca fui muito forte nas matérias científicas, tinha uma preferência marcada pela história, as línguas, a literatura, a economia, as ciências sociais. Depois do baccalauréat fui para a universidade, o Instituto de Ciências Políticas e a Faculdade de Direito, e uma das opções lógicas era o concurso para a Escola Nacional de Administração. Consegui.
Como é que se desenrola, depois, a sua carreira?
Tinha um interesse pelas questões internacionais, mas entrar no Ministério dos Negócios Estrangeiros não era uma coisa óbvia. Na Escola de Administração há um estágio (naquele tempo eram oito meses) numa embaixada. Fi-lo na embaixada do Brasil porque falava português, que tinha estudado na universidade. (Na ENA continuei a estudar alemão e português). Encontrei no Brasil a minha futura esposa. É francesa, estava de férias para visitar os pais – o pai era embaixador da França no Brasil. Esse estágio na embaixada reforçou o meu interesse pelas coisas internacionais, pela diplomacia. Consegui um lugar na classificação final que me permitiu entrar no Quai d’Orsay [sede do MNE].
O seu pai, que viveu a França ocupada, tinha memórias da Segunda Guerra?
Contou-me as dificuldades da época, com o racionamento, a falta de aquecimento no inverno. Ao acordar, fazia frio nos quartos, a água era gelada. Mas a região é agrícola, alguns camponeses, cujos filhos eram alunos no internato, levavam produtos alimentares para sustentar os alunos. Ele considerava que já era privilegiado em comparação com os irmãos – estudava – e lembrava-se sempre de onde tinha vindo.
Onde queria chegar era a um interesse do seu pai pela política e estratégia. Mesmo que apenas como espectador. As questões das Ciências Sociais e Políticas são aquelas que profissionalmente lhe interessam. De onde é que isso vem?
O meu pai era um cidadão que sempre votou.
Votava à esquerda ou à direita?
Tinha as suas opiniões, mas o que valorizou foi o trabalho, o esforço pessoal, o empenho. Os valores da honestidade, da lealdade, da palavra dada. Contava consigo próprio.
Significa que não esperava que os outros lhe dessem nada gratuitamente.
Exactamente. Não gostava de gente que fica sempre à espera da ajuda do Estado. Construiu-se graças aos seus esforços, ao seu trabalho. Isto não significa uma espécie de individualismo puro e duro. Conhecia bem o preço da ajuda, que recebeu deste padre que detectou nele um potencial. O que importa são os valores que me transmitiu. As opiniões políticas, os votos nas eleições – não é uma questão que tenha um papel importante.
Na sua carreira diplomática presenciou alguns dos grandes acontecimentos políticos da história do séc. XX, nomeadamente a queda do muro de Berlim (apesar de estar em Bona) e o desmembramento da União Soviética. Porque é que se especializou em questões de estratégia e ciência política?
Quando aconteceu a queda do muro, estava na Alemanha um pouco por acaso. O ministério mandou-me para a Alemanha porque falava alemão, e parece que não havia muita gente que falasse alemão.
Consta que os franceses não são especialmente dotados para as línguas…
Já não é verdade. Conheço muitos jovens, não só os meus filhos, que falam muito bem inglês e outras línguas. Chegámos em 1986 e a abertura do muro ocorreu a 9 de Novembro de 1989. A reunificação, que inicialmente devia implementar-se no espaço de muitos anos, até dez, ninguém sabia, aconteceu no espaço de dez meses. Isso espantou o mundo todo, também os alemães, e o chanceler Kohl. Foi o início de uma transformação incrível da Europa. Depois fui para a União Soviética; tinha aprendido a língua russa, comecei a minha carreira a tratar de assuntos soviéticos.
Porquê esse interesse?
Porque a partilha, entre o ocidente, a União Soviética, e os satélites, era um traço fundamental da organização do mundo depois da Segunda Guerra Mundial. E também a confrontação ideológica entre o sistema comunista e o sistema democrático, de economia de mercado. Era um tema essencial, não só do ponto de vista da política internacional, mas também da história ideológica e intelectual da Europa. Tinha um interesse pela língua e pela cultura russa.
Fale mais dessa atracção por aquele mundo, vermelho. Nos seus anos de juventude foi comunista?
Nunca fui atraído pela ideologia comunista. Nem intimamente, nem oficialmente. A prática política em todos os países onde a experiência foi feita, e os países foram diversos, resultou sempre no mesmo: numa espécie de tirania. É a pretensão de um grupo que dita uma verdade absoluta, que não é baseada numa crença metafísica mas numa compreensão das leis históricas; é a pretensão de um grupo de ter o monopólio do poder e impor a toda a sociedade as suas ideias. Há poucas pessoas que gostem de tirania, sobretudo quando são os objectos dela. Tenho respeito pelos que têm esse ideal, que pensam que há desigualdades nas sociedades, que é preciso melhorar e assegurar mais justiça social. Faço diferença entre os ideais e a prática. Mas é um facto, uma experiência histórica: na União Soviética, na Coreia do Norte, na China, em todos os países onde houve um regime comunista, há uma prática de monopólio do poder. Uma democracia é o compromisso entre vários interesses, é o sistema mais justo (em termos de respeito pela pessoa humana) e mais eficaz.
Como foi a descoberta in loco daquele mundo que já conhecia dos livros e pelo qual tinha um fascínio à distância?
Não foi uma decisão fácil. Há uma diferença entre um posto interessante e um posto onde queremos passar três anos. Mas tinha um grande interesse por ver e saber mais, e perceber melhor qual era a realidade deste país.
Gosto muito de Gogol porque tem humor, sentido crítico, sentido de observação da sociedade russa. Mas há Tolstoi e Dostoievski… Também gosto muito de Bulgakov, da sua maneira de dizer a verdade sobre o ser humano, sobre a sociedade, através de situações fantásticas.
Começa por referir a observação do homem em sociedade de Gogol. Não por acaso, o seu interesse é a ciência política, e é menos o sujeito e os seus demónios, que encontramos genialmente em Dostoievski.
A esse respeito posso acrescentar uma coisa: tive um professor que me perguntou: “O que é você? Sente-se um fazedor ou alguém que observa?”. É uma questão muito importante na formação da personalidade, na escola da vida, não só da carreira profissional. Eu não tinha a resposta, estava à procura, e aconselhou-me a ler Narziss und Goldmund , do Hermann Hesse. Conhece? É uma história de duas pessoas, duas opções de vida.
A diplomacia é uma maneira de escapar a uma resposta clara a essa questão. É a actuação sobre o mundo, mas também é a observação e o conhecimento dos outros. Conhecer bem não é suficiente. A promoção dos interesses do seu país, políticos, estratégicos, económicos, comerciais, culturais, a negociação internacional, são fundamentais. Fiz isso em Nova Iorque, nas Nações Unidas.
Porquê escapar a uma resposta clara? Porque não há respostas claras ou porque não nos queremos comprometer com respostas claras que excluem outras respostas igualmente válidas?
Ambos são interessantes, são importantes e são necessários. Acção sem reflexão pode ter consequências sérias e negativas. E a observação sem acção é a impotência, é o fatalismo. A diplomacia é uma das combinações [possíveis].
É o primeiro luso-descendente a ocupar este cargo. Há uma expectativa acrescida em relação ao trabalho que possa aqui desenvolver por causa disso? Isso foi-lhe passado?
Não posso fazer especulações sobre os motivos por que me nomearam. Mas posso imaginar. Sou um diplomata de carreira que é um luso-descendente, que tenta falar português, com um nome português, que conhece um pouco o país, cujos antepassados vêm deste país. Isso foi tomado em conta, sem dúvida. Os portugueses, os luso-descendentes em França, constituem a maior comunidade de origem estrangeira. É difícil saber exactamente o número; há os que têm a nacionalidade portuguesa e há os luso-descendentes só com nacionalidade francesa, como é o meu caso.
Gosto de lembrar, em especial aos interlocutores que não conhecem bem a história francesa, que a França é uma excepção na Europa. Há mais de um século que a França tem sido um país de imigração, quando quase todos os países europeus têm sido países de emigração. A percentagem de cidadãos franceses que têm um pai ou um avô de origem estrangeira é quase de 25 por cento.
A questão dos imigrantes é agora sensível, como sabe.
É sensível. Mas ao contrário do que as pessoas pensam, quando vêem fenómenos recentes, há muito mais entradas de estrangeiros do que saídas. A estatística da Prefeitura de Polícia de Paris, até ao fim de Agosto, [garante] que 130 mil documentos, provisórios ou títulos de residência, foram entregues; só duas mil pessoas foram repatriadas. O balanço é claro.
A integração é mais difícil quando as diferenças culturais são maiores, quando as diferenças económicas e sociais, e também urbanas, são menos favoráveis. A árvore não deve esconder a floresta. A violência de Novembro de 2005, de que toda a gente se lembra: li erros de interpretação, foi um movimento que durou duas semanas e parou tão subitamente como disparou.
Mas deixou marcas.
Sim. Houve uma parte de violência bruta, uma espiral alimentada pela mediatização. “Conseguiram queimar 15 carros uma noite neste bairro…”. Lembro-me de uma imagem muito forte, a de jovens de origem estrangeira mas que são franceses, que brandiam o cartão de identidade: “No papel somos franceses, mas na realidade não temos os direitos e não gozamos das mesmas oportunidades que os outros cidadãos franceses”. A reivindicação, quando foi expressa, muitas vezes era de tipo político. Isto é muito sério e deve ser tratado. O problema é a distinção entre os direitos formais e a realidade social.
Como disse em relação à experiência dos meus avós, é mais fácil integrar uma família portuguesa numa pequena cidade do que fazer processos de integração quando 30 ou 40 por cento da população têm origens variadas. Não é uma questão de segregação. Não é verdade que não haja diferenças entre integrar cinco por cento de elementos estrangeiros ou 45 por cento.
Uma pergunta pessoal: nunca foi rebelde?
Rebelde contra o quê?
Nunca houve nada contra o que tivesse de se rebelar?
A vida é uma luta permanente. Primeiro contra si próprio, contra a rotina, contra a facilidade. Faço uma citação de Madame de Staël: “A República deve ser baseada na moral”. Acredito nisso profundamente. A Res Publica deve ser baseada na moral do cidadão, dos responsáveis políticos, dos funcionários políticos que servem o Estado. O Estado ainda é um pilar essencial da organização da sociedade e da sociedade internacional. Fiz a ENA, não por acaso. O responsável político e o funcionário ao serviço do Estado devem mostrar virtude e sentido moral. Há tempos difíceis em que um funcionário deve fazer-se perguntas, se o que o Estado exige é coerente com uma espécie de moral superior. Por exemplo, a situação em que se encontraram os funcionários em França em 1940, depois da ocupação. Felizmente há poucos casos, em especial na Europa Ocidental, depois da Segunda Guerra, em que tenhamos de nos confrontar com grandes escolhas. Enquanto tivermos uma democracia não teremos que as fazer. Espero que isto dure. [riso]
O seu pai podia imaginar que um dia o filho seria embaixador de França em Lisboa?
Sabia que havia uma probabilidade de isso acontecer, um dia. Morreu quando regressei de Moscovo, era um jovem diplomata. Mentiria se não dissesse que ser embaixador em Lisboa era um objectivo, um sonho profissional e pessoal. Mas entre o sonho e a probabilidade de ver o sonho realizado vai uma distância. É um posto prestigioso, com condições de vida agradáveis. Há muitos candidatos e geralmente os embaixadores [nomeados] estão no fim da carreira. Estou muito feliz e honrado. Também sou consciente de que com a minha história pessoal e familiar a responsabilidade e o significado são maiores. É um incentivo muito forte.
Como é que se diz, bonne chance?
Boa sorte.
Publicado originalmente no Público em 2010