Patrícia Pascoal
Patrícia Pascoal é sexóloga. Fala de fenómenos como as MILF (mothers I would like to fuck) ou de o sexo anal ser mais do que um jogo de dominação. Da hiper-vigilância em relação ao nosso corpo – “Ai, será que estou a ficar molhada”. Da instantaneidade e democratização no acesso a conteúdos sexuais. Usa palavras como “peniano” ou “socialização para o género”. A ela não a apanham a dizer que uma mulher deve vestir uma lingerie sexy e desinibir-se. Como num título de Woody Allen, eis um ABC do Sexo.
Fez a licenciatura e o mestrado em Psicologia Clínica em Coimbra. Uma pós-graduação em Estudos Femininos em Amesterdão. Outra pós-graduação em Sexologia Clínica na Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica. É responsável pela primeira consulta de Sexologia Clínica na Faculdade de Psicologia de Lisboa. Está empenhada no doutoramento. Colabora com a imprensa (teve, por exemplo, um programa no extinto Rádio Clube Português com Aurélio Gomes). Dá aulas. Dá consultas. “Temos de perceber o passo gigantesco que é para as pessoas chegarem à consulta. Quando estava a coordenar uma linha de atendimento telefónico, as pessoas diziam que não conseguiam falar disto numa consulta. O enquadramento anónimo permitia-lhes falar, mas a ideia de ir, e dar a cara, era sempre complicada”. O sexo é ainda um tema complicado? E continua a ser o mais apetecível?
Patrícia Pascoal dá algumas respostas, levanta muitas questões, gosta de desinstalar o que está instalado. É casada e tem filhos.
Numa sociedade hiper-sexualizada como a nossa, o sexo continua a ser uma obsessão colectiva? Nunca o sexo esteve tão visível, no cinema, na televisão, nas revistas, nos conteúdos veiculados nas redes sociais. Mas isto não conduz a uma banalização. Os conteúdos sexuais são sempre os mais vistos, os mais lidos, os mais procurados.
O sexo sempre esteve visível. O que talvez esteja [mais visível] são os genitais, a cópula, a nudez. Até na invisibilidade víamos alguma coisa. Tornou-se tudo muito mais rápido, à distância de um clique. Há consumo de informação, uma instantaneidade e uma democratização no acesso. Se procurar imagens de nudez, encontro. Mas se procurar informação sobre práticas sexuais seguras, locais de atendimento, linhas de informação, também encontro. A expansão não é só para a parte mais fácil, banal, espectacular. O difícil é perceber que critérios [usar para filtrar]. É o drama dos pais – os miúdos têm acesso à pornografia, à perversão, à informação. As pessoas procuram mais ajuda nesta área. Têm mais vocabulário para designar as coisas, questionam o que lhes é dito.
Exemplos.
“Existe mesmo um ponto G?”, “Não tenho orgasmo, será que tenho um problema sexual?”. Há dez, 20, 30 anos era inegável que isto seria um problema; hoje questiona-se. Há uma série de outros discursos que aparecem, comportamentos, testemunhos; e a partir deles as pessoas questionam-se. A sexualidade masculina está a mudar imenso. As pessoas dizem: “Agora há mais homens com falta de desejo”. O que há é mais homens a dizer quer têm falta de desejo.
O que era impensável. Um homem estava sempre pronto. Tinha sempre vontade.
Claro. Mas se um homem está sempre pronto, e a sua vida sexual não está ligada aos afectos, por que é que há tantos anúncios de prostituição a dizer “carinhosa, doce, meiga, conversadora”?
Há ou não Ponto G?
Parece haver uma forte evidência para a não-existência. Se meto o dedinho e vou lá à procura, aumento a probabilidade de me estimular, e de atribuir isso ao Ponto G. Será que as mulheres mais velhas são mais incompetentes e não o encontram, ou será que as mulheres mais novas encontraram nomes para dar às coisas? O que é que realmente interessa? É que as pessoas se permitiram procurar, estimular-se, tocar-se. A parte menos saudável disto é a procura da sensação máxima que nos torna hiper-vigilantes acerca do nosso corpo.
Em relação ao seu funcionamento, à prestação sexual?
E às sensações. “Ai, será que estou a ficar molhada?”, e verifico. “Será que os meus mamilos estão a ficar erectos?”. Mais vigilância em relação às sensações do próprio, mas também em relação às do outro. “Está a gemer; será porque está a gostar, será que estou a magoar?”.
Aquilo que as pessoas procuram reproduzir ou praticar é o receituário disponível nesta enorme quantidade de informação.
É. Sou contra essas receitas. Mesmo em termos de terapia sexual, posso dizer: “Existe esta técnica, que tem uma taxa de eficácia alta, é feita assim. Mas vamos pensar se é esta a questão. Se implementar esta técnica e passar, por exemplo, a ser possível a penetração (porque antes não era), o que é que acha que vai mudar na sua vida, no seu prazer, na sua satisfação?”.
As receitas são bastante taxativas (e prometedoras…): dez passos para ter um sexo melhor…
Ou dez conselhos para comunicar no casal. Não consigo imaginar coisa mais anti-qualidade da comunicação do que seguir um receituário. “Não diga não”. Não diga não porquê? “Não acuse”. Não acuse porquê? Podemos evitar magoar o outro, mas também podemos pedir desculpa.
Quais foram, para mulheres e homens, as mais notórias conquistas das últimas décadas?
O pensar da sexualidade para além da genitalidade. O prazer já não é só sinónimo de orgasmo (para algumas pessoas eventualmente ainda é). A ideia de prazer ou satisfação é muito mais ampla. O verbalizar, o escrever sobre isso, é uma noção nova. A procura mais rápida de experiências intensas é também um ponto-chave. E passámos de um modelo em que as mulheres não têm vida sexual para um em que têm ejaculação feminina, Ponto G, multi-orgasmos, conseguem fazer sexo tântrico, têm prazer com o sexo anal...
O modelo dominante ainda é o monogâmico, do casaram-se e foram felizes para sempre. Mas a taxa de divórcios é altíssima. As pessoas não ficam na relação a qualquer preço. Apesar dos filhos.
Há o modelo da relação monogâmica, tida durante muito tempo e da qual se espera que venha tudo o que é bom. Há pessoas a quem isso não satisfaz; ou satisfaz durante um período da sua vida e depois deixa de satisfazer.
Este modelo não é forçosamente excludente de um outro: o da procura do prazer, da novidade, da transgressão.
É legítimo perguntarmo-nos se a banalização, o excesso, não leva a que as pessoas se tornem mais insatisfeitas, mais à procura da intensificação da experiência. Numa lógica consumista, faço com o sexo o que faço com os carros ou com os restaurantes: quero cada vez mais o extremo, o que me dá as sensações mais fortes.
Para elas, o sexo continua a ser o caminho a percorrer para chegar ao afecto e à relação companheira? Eles têm de as entreter com basófia amorosa para chegar ao que verdadeiramente querem, o sexo? Esta visão maniqueísta, redutora, deixou de vigorar ou não?
Há um cartoon que resume isso: “Faço sexo porque te amo, amo-te porque fazemos sexo”. O tipo ama a mulher porque faz sexo com ela, ela faz sexo com ele porque o ama. Se desmontarmos isso, temos de perguntar: a mulher que quer um amor companheiro, tem que ser para a vida toda? E se o sexo deixar de ser bom, quer ficar na mesma? O que é que espera disso? Se calhar uma mulher de 40 anos já não está à espera de ter uma grande vida sexual, porque não é representada nem se vê a ela própria como uma bomba que vai ter sexo muito bom.
No livro Sex, lançado nem há 20 anos, Madonna fazia a encenação das suas fantasias sexuais. Numa das fotografias, estava ao espelho a ver o genital. Na altura parecia uma cena especialmente audaz, provocadora.
E continua a ser. Onde é que vê genitais de mulheres hoje em dia? Só na pornografia. É escondido. Os próprios manuais têm quase sempre desenhos.
Porque é que se vêem os dos homens? E aí, pelo contrário, é quase sempre numa posição priápica.
Podemos dizer que é porque estamos numa sociedade falocêntrica. Porque está à vista. Porque é fácil. E depois, sempre foi condenada a expressão sexual das mulheres. Se emergisse, seria de uma forma desorganizada, histérica. Apesar dos anticoncepcionais orais, e do acesso à protecção do preservativo, feminino ou masculino, os riscos, os custos maiores são para as mulheres.
Por causa de doenças e porque engravidam.
E por causa da punição social que ainda existe.
Se a pessoa apanhada no quarto de hotel em Nova Iorque fosse Anne Sinclair, e não Strauss-Kahn, a penalização social seria muito maior.
Claro. Nem conseguimos pensar nisso. Essas mulheres que têm carreiras em áreas tão masculinas são muito dessexualizadas, a começar pela forma como vestem. E normalmente, quando chegam a esses cargos, são mais velhas. Rapidamente passam o prazo de validade.
Os filhos são uma questão fundamental para a mulher de 40 anos. E é cada vez mais nessa idade que os têm. Depois da maternidade, tendencialmente deixa de ser a bomba sexual para passar a ser a mãe. Uma expressão muito sintomática disso: dentro do casal, o marido, pai das crianças, passa a chamar-lhe mãe.
O pai, as senhoras na maternidade, na escola…, deixa-se de ter nome. Passa a ser a mãe da Joana, a mãe do Carlos. E há uma pressão ainda maior sobre as mulheres. “Foi mãe há três meses e retoma a sua forma esplêndida”, “Mais sexy do que nunca agora que teve dois rebentos”. Porque é que tem que ser mais sexy? Os corpos, estes de que estamos a falar, das maternidades, que são tantas vezes dessexualizados, são muito erotizados nas representações antigas. As bacantes têm ancas largas e barriguinhas.
Mas isso hoje não é considerado sexy.
Voltámos à Lolita.
Isso de que falou é um símbolo da matrona, do que resulta da maternidade.
Há homens que desejam mulheres curvilíneas, com barriguinha. É engraçado olhar para os géneros na pornografia. Encontramos as MILF (mothers I would like to fuck). Dirige-se a um número de pessoas que sente desejo por corpos e mulheres que não são as teens, que é outro subgénero.
Quais são os grandes grupos, neste momento, na pornografia?
Gay, lesbian. Ebony (que é interracial). Os gang bang (as mulheres com múltiplos parceiros, em simultâneo). E depois os pequenos subgéneros, lesbian MILF, ebony MILF. Há uma indústria paralela, alternativa, com mulheres realizadoras, algumas ex-actrizes porno, outras não. Em termos das técnicas cinematográficas, não usam sempre o grande plano, andam entre o óbvio que não é óbvio, com temáticas, com narrativas.
É interessante que dêem a ver coisas diferentes, que romantizem o filme fazendo dele um objecto menos explícito.
Mas não tanto como estava à espera. Continuamos a estar no domínio, mesmo entre as mulheres realizadoras, dos jovens, belos, saudáveis, bem sucedidos e glamorosos.
Alguém que tem 60 anos, que observa ao espelho o seu corpo flácido, numa sociedade que faz o culto da juventude, quer ver num filme pornográfico outro como ele?
O que a pornografia e a observação da pornografia fazem aos homens em relação ao tamanho do pénis! Como a maior parte dos actores pornográficos tem pénis muito acima daquele que é o tamanho mais comum, muitos homens usam como referência aquela proporção; isto é causador de grande sofrimento. Mais do que a questão da imagem corporal global, que é a das mulheres, nos homens há uma preocupação com a barriga, com o tamanho do pénis. Há uma oferta de pornografia em que isto não acontece, e é mais tranquilizador. Mas há também muitos sites amadores, que cresceram imenso.
Porquê? As pessoas têm a ideia de que os filmes desses sites são mais “normais”?
Além da componente exibicionista de quem põe, diria que os sites cresceram porque as pessoas se identificam. O cinema facilita a identificação. O facto de não ser um tipo todo musculado, todo depilado, para muita gente é apelativo. Porque é mais próximo da vida que têm. Dá-lhes algum poder, sentem-se empowered.
A pornografia é olhada desde sempre como uma transgressão e uma explicitação de algumas das fantasias mais correntes. É interessante perceber quais são os géneros que aparecem. Dá-nos uma ideia do que paira na cabeça das pessoas.
O que é que é uma fantasia sexual? Todos temos uma espécie de entendimento sobre o que é isso. É um desejo recalcado? É uma ideia perseverante, só se quer fazer aquilo? Do que é que estamos a falar?
De um objecto não-concretizado ou concretizável?
Tenho muitas dúvidas. Diferentes fantasias nos filmes pornográficos? Aquilo não tem nada de fantasioso! Todos estes géneros são extremamente rígidos.
Mas são uma forma de consumação, e dão visibilidade a preferências.
Preferências, cenários, práticas. Não têm que ser necessariamente fantasias. Temos muitos discursos sobre fantasias, alguns culpabilizadores. Há pessoas que se sentem mal porque têm poucas fantasias, porque acham que a sexualidade boa é a de quem tem muita imaginação. Ou sítios muito exóticos, e muitas posições. A fantasia, uma definição possível: é um pensamento, uma ideia de conteúdo sexual, que pode ser, até, não necessariamente boa.
Essa definição parece do dicionário. Asséptica. Traduza isso.
Posso dar comigo a ter uma imagem de mim própria a ser violentada, que é uma coisa que não quero. Ou a violentar alguém. Nem todas as fantasias são sentidas pelas pessoas como boas. E muitas pessoas auto-observam-se e têm um deleite, gostam de falar sobre as fantasias que têm e não estão a pensar concretizá-las. Tentar perceber qual é o significado daquela fantasia, isso sim, é importante.
Duas das fantasias mais comuns, apontadas por homens e mulheres quando se fazem as inevitáveis listas, são, no caso delas, o sexo com desconhecidos, e que implique alguma força. Li um testemunho de um prostituto que dizia que recorrentemente as mulheres lhe pediam que criasse um quadro de quase violação, inescapável para elas. No caso deles, a fantasia apontada era ver duas mulheres.
E depois eles aparecem para aquilo ser bom!, só as duas não é bom [riso]. Os homens fantasiam com duas mulheres, mas fantasiam-se a eles em acção.
O homem é o salvador daquelas desviantes, aquele que finalmente pode dar prazer àquelas mulheres incompletas – é com isso que fantasiam?
Sim, são incompletas porque não têm o prazer da penetração do pénis. Outra ideia subjacente a essa fantasia é a das múltiplas fontes de prazer. Duas mulheres implicam uma variedade de estímulos em diferentes zonas do corpo.
Além da questão do falo reparador – o pénis que vai ali resolver o problema – também há a questão do poder. É um bocado difícil dissociar a sexualidade do poder. Isto leva-nos à fantasia das mulheres que apontou. Aquelas mulheres querem ser violentadas no sentido em que são agredidas? Ou pode ser interessante uma prática que, sendo imposta por fora, legitime que elas a façam?
Desculpabilizam-se porque foram forçadas. E por causa disso permitem-se fazer o que, em condições normais, não aceitariam.
É o descontrolo. As pessoas sabem que quando estão excitadas, e não estão demasiado controladas, deixam-se ir, deixam-se fotografar, fazem uma série de coisas incautas. O estado de excitação implica alguma perda de consciência, e legitima: “Ao princípio não queria, mas depois…”. Isto só é possível num contexto de duplo padrão moral. O discurso da sexualidade da mulher é muito pensado em função dos desejos masculinos. Isso continua a acontecer mesmo nos discursos mais libertadores. “Liberte-se, faça surpresas ao seu marido. Vista uma lingerie sexy para lhe agradar, seja ousada”. Isto é que é a liberdade? Libertar as mulheres é dizer-lhes como têm que ser?
Como têm que ser para agradar aos homens.
A socialização para o género ensina-nos a dizer: “Não consigo fazer amor se não estiver apaixonada. Não consigo ter prazer se não for com uma pessoa de que gosto”.
O que é a socialização para o género? Concretize.
Pequeninos. Se mexe as perninhas, e é rapaz, vai ser futebolista. Se mexe as perninhas, e é menina, vai ser fresca. Está a ver a diferença? Uma menina de quatro anos que ande a levantar as saias: “Tem que se ter mão nela”. Um rapaz que não queira jogar à bola, que não goste de jogos de competição com outros rapazes, vai ser maricas ou a mulher vai mandar nele. Nisto temos todos um papel. Montei uma consulta de sexualidade no espaço Diferenças, encaminhavam-me vários casos, alguns deste tipo. O menino tinha que ir à psicóloga porque não gostava dos brinquedos de rapaz, fazia desenhos com temática de menina. Fala com os pais, tenta perceber: “Mas a criança é feliz? É”. Então onde é que está o problema? Está a fazer aquisições, é autónomo. O problema está nesta ideia. Isto está tão enraizado que os homens dizem: “Tenho uma parte feminina, gosto de decoração”.
As mulheres são educadas para a monogamia, para a relação estável e duradoura.
Sim. Não se diz: “Quando fores crescida vais encontrar imensos homens de quem vais gostar, vais ter montes de experiências sexuais diversificadas”. Procurar actividade diversificada não é aceitável. Até porque vai ser mãe. Há todas estas ramificações, contágios. Está a construir um passado.
A reputação parecia um fardo pesadíssimo, do qual a mulher se libertou depois da pílula, da emancipação económica e profissional, quando caiu o fantasma da virgindade. Mas com as redes sociais voltámos à situação em que há um passado que nos persegue, sendo nós cúmplices desse processo: porque “postamos”.
“Posta” quem “posta”. Somos voyeuristas. No princípio era o olhar. Gostamos de ver ou imaginar o que poderíamos ver.
Isso é para ver como são os outros ou para nos confirmarmos na nossa normalidade/particularidade?
Por um lado isso – “Não sou assim, nunca faria aquilo”. Tapam-se os olhos com os dedos abertos [riso], para ver bem. “Postar” algo da intimidade de uma pessoa é uma violência enorme. Associa-se o prazer à violência.
Porquê esta associação? É a sensação de estar para lá dos limites?
Há um número restrito de pessoas que associa prazer e dor. Outra coisa são as pequenas agressões que as pessoas usam no seu erotismo. Os pequenos chupões, as mordidelas, a pancadinha no rabinho.
Quando vemos filmes dos anos 70, posteriores ao Maio de 68, à pílula, ao divórcio, assistimos a códigos libertinos, à experimentação. Um exemplo: festas nas quais se deixa a chave à entrada e se sai, não com o par, mas com outro cuja chave foi tirada à sorte. Estas imagens são a espuma de um tempo? Os filhos desses são mais conservadores?, procuram sexo com intimidade, encontros menos fortuitos?
As pessoas que punham as chaves para trocar de casal, se calhar também tinham relações íntimas. Não será isto um preconceito? Esta ideia de que a intimidade tem que ser a dois. Estou só a pensar, não estou a responder. Existe a norma, e a norma é sempre o caminho mais fácil. É mais fácil se uma pessoa se apresenta como casal; não é só socialmente, financeiramente também. As pessoas que optam por não seguir esse caminho têm que se confrontar com algumas dificuldades. E outras não optam, aconteceu assim. Hoje em dia isto não tem que ser tão pesado. Antigamente ficar solteirona era uma coisa horrível, era um atestado de incompetência.
As que ficam solteironas, se calhar não têm o mesmo atestado de incompetência; mas não sentirão culpabilidade por ter falhado uma dimensão importante nas suas vidas? Ou que a sociedade lhes ensinou que era importante nas suas vidas.
Sim. Como as mulheres que não têm filhos. É difícil perceber se realmente é o que querem ou se pensam que é o que querem porque lhes foi dito [que era assim que devia ser]. A pessoa sabe que não cumpriu o guião que esperavam de si, na sua intimidade, nas suas relações. Ao mesmo tempo, não sabe o que é que a vida lhe reserva; se calhar pertence a outros guiões e a outras histórias.
Essa diversidade de enredos ainda causa uma enorme estranheza nos próprios e nas pessoas à volta. O que é notório, por exemplo, quando alguém aos 30, 40, 50 anos revela ou descobre que tem uma orientação sexual diferente.
Ou tem ou mudou.
Muda-se? Também existe o preconceito de que essa orientação sempre esteve lá, a pessoa é que não tinha coragem para a assumir.
O que me parece é que há muitas sexualidades. Criámos esta divisão, homossexual, heterossexual, com a qual muita gente se identifica.
Os bissexuais, mais do que indecisos, são considerados pouco determinados ou incapazes de fazer uma escolha.
As histórias de vida das pessoas são muito mais ricas e diversificadas que estas divisões. Podemos encontrar pessoas que sempre se identificaram como heterossexuais e que têm práticas ou fantasias com o seu parceiro heterossexual que incluem a ideia de que estão a ter sexo com alguém do mesmo sexo. O que é isto? Será que aquela pessoa tem uma homossexualidade recalcada?
Dizer que uma pessoa tem uma determinada orientação sexual é um rótulo que se lhe cola. Ao colar o rótulo, o que se quer é que ela seja sempre a mesma coisa, uma coisa com a qual podemos contar?
O que se quer é uma cristalização. E há muitas pessoas que não são assim. Pensamos que uma pessoa, porque tem uma orientação sexual que não é maioritária, tem um problema associado. Depressões, que já tentou suicidar-se, deve ter sofrido muito. São anos e anos de processos internos da pessoa, da família, dos companheiros, da sua história de vida. Por outro lado temos tendência para pensar que se se libertou, se assumiu a sua identidade, agora está tudo bem.
E não está?
Esta questão dos rótulos é complicada. Dizemos não-heterossexual e estamos a dizer que o heterossexual é que é bom. Dizemos homossexual e estamos a utilizar um termo que foi utilizado para dizer que as pessoas são doentes. Mas um heterossexual pode ter problemas na sua sexualidade, pode ter dificuldades na sua intimidade, pode ter prazer, pode começar e acabar relações. Hoje em dia defendemos que é a pessoa que se auto-define.
Ainda na pornografia, uma das constantes é o sexo anal. Porquê?
É um género. A leitura mais imediata é a da dominação – colocar o outro no lugar do dominado e sentir-me como dominador. Mas se pensarmos bem, tem a ver com uma visão do que é o sexo anal – com o outro de costas para mim. Esta visão tem associado o não haver contacto visual, que é um aspecto que não podemos descurar. É um grande mistério, se por parte das mulheres que praticam, lhes dá ou não prazer. Há dados pouco conclusivos acerca disto, e muito contraditórios. É algo que se faz porque sabemos que dá prazer à outra pessoa, ou não? É uma prática de difícil execução. É difícil o relaxamento do esfíncter, e a contracção involuntária também.
Difícil, doloroso? Estamos a falar num quadro heterossexual, homossexual?
Em qualquer um. É uma prática que exige algumas condições, ao nível da intimidade, dos cuidados de higiene, da comunicação, para ser praticada; e que pode facilmente ver-se associada à violência, à agressão. É preciso o outro estar muito relaxado e muito à vontade para não ser desagradável.
O sexo anal e o sexo oral eram, aos olhos de uma prática conservadora, coisas que não se faziam com as mulheres legítimas. Por aí não passa de todo a procriação. Umas coisas faziam-se em casa, outras faziam-se com as amantes ou com as prostitutas. Isto faz ainda algum sentido?
Com a libertação de que falámos, com a igualdade do prazer, vimos a introdução dessas práticas dentro do contexto relacional, como potenciadoras do prazer, do conhecimento do outro e do próprio. O aparecimento do HIV mudou radicalmente o discurso da sexualidade para a liberdade, para a diversidade e para a experiência. Vemos isso na pornografia, começam a aparecer preservativos, fazem testes aos actores. Muita gente dentro da indústria morreu por infecção. E vimos práticas mudar. Vingou a ideia de que o sexo oral é seguro. A probabilidade, de facto, é muito diminuída, comparativamente ao coito. Então, algo [como o sexo oral], que se fazia depois de se conhecer a pessoa com quem se está, hoje em dia acontece antes.
Pratica-se como se fosse um preliminar?
Não é só um preliminar. Muitas pessoas que iniciam a sua vida sexual com penetração já fizeram sexo oral antes. Não é quando as duas pessoas estão juntas, é em termos de história da própria pessoa. As pessoas estavam muito focadas na virgindade, no romper ou não romper o hímen. Passavam essa barreira e depois começavam a explorar outras coisas. Hoje em dia o coito, a penetração, como tem mais riscos associados, fica para o fim. Não conheço os estudos feitos cá, mas no Canadá e nos Estados Unidos é isto que tem sido encontrado.
O sexo num quadro de conjugalidade é diferente daquele que se tem quando se tem relações avulsas.
Porquê?
Tenho ideia que uma das queixas mais recorrentes dos casais tem a ver com a falta de desejo, e isso muitas vezes acontece porque se cai na rotina.
Falta de desejo ou insatisfação? Tem-se confundido as duas coisas. Dizem que pode haver entre dez a 60 por cento de mulheres sem desejo.
O que é que pergunta para saber se as pessoas têm desejo?
Tem falta de desejo em relação a quê? Ao que gostaria de ter, ao que tinha no passado, ao que tinha com outro companheiro? Ao que o seu companheiro ou companheira tem, ou espera que tenha? Em relação ao corpo e à vida que tem? Às doenças e não doenças que tem? É preciso perceber isto. Há pessoas que gostariam que o desejo fosse exactamente como nos primeiros três meses de namoro.
Não é crível, apesar de desejável.
Falam da rotina, mas o que acontece é o acesso. O outro está ali, acessível. Não há a criação de expectativa. E depois, a própria sexualidade vai mudando de papel dentro da vida das pessoas. E há muitos encontros e desencontros. Como naquele verso do Sérgio Godinho: “À espera do comboio na paragem do autocarro”. Às vezes é mesmo isto. Estou à espera de ter um desejo imenso quando não me sinto desejada, ou quando a minha relação está deserotizada.
O que é que se faz quando as relações estão deserotizadas, ao cabo de dez anos de casamento e com dois filhos? Ter dois filhos que podem entrar no quarto dos pais num domingo de manhã inibe, por exemplo, a utilização de brinquedos sexuais?
Claro que altera, por isso mesmo não se pode ter o mesmo desejo que se tinha quando não havia putos. Se já não é a mesma coisa, que seja como pode ser. Se os putos podem entrar no quarto e mexer nos brinquedos, temos de os meter num sítio onde não estejam à mão. Ou vamos ter que ter relações quando não estão ali ao lado e sabemos que nos vão bater à porta de três em três minutos. É o ideal? Há um americano que diz: “The good enough sex”. Até acho um bocadinho conformista. Não podemos é, perante a dificuldade, cristalizar.
Muitas situações de separação e divórcio resultam de as pessoas não serem capazes de fazer aquilo que entendem como uma concessão em relação ao que é o seu ideal. Não se conformam que as coisas não sejam tão gloriosas como já foram, ou consentâneas com o que idealizaram. E vão ter relações extra-conjugais, vão ter relações virtuais, qualquer coisa que lhes dê essa dimensão que lhes falta em casa.
Isso é a tal questão da insatisfação. O divórcio ou a separação é muitas vezes visto como um fracasso, porque temos a ideia de que uma boa relação é a que dura sempre. Consideramos que a permanência na relação é o principal indicador de sucesso. E foi bom? Ou tinham uma relação muito boa, de grande qualidade, e quando começou a perder alguma qualidade acharam que era melhor acabar? As pessoas da terapia familiar muitas vezes dizem que quando os casais as procuram já estão muito perto do fim, que querem salvar o animal quando o animal está morto ou moribundo.
Porque não perceberam antes que estava moribundo? É porque um deles já decidiu que está morto e o outro quer ainda que ele ressuscite?
Pode ser. Às vezes há uma pessoa muito motivada para a reconstrução do casal e da conjugalidade, e outra pessoa que já fechou. É preciso perceber quando é que acabou a relação amorosa enquanto projecto. A relação não acabou quando começou o divórcio.
Outro cliché: o sexo continua a ser um excelente indicador da saúde do casamento?
Dizem que a sexualidade é o barómetro. A satisfação com a vida sexual e a satisfação relacional estão muito relacionadas uma com a outra. É a história do ovo e da galinha: não sabemos se as pessoas têm vidas sexuais melhores se têm relações mais satisfeitas, ou se, por as relações serem melhores, têm relações sexuais mais satisfatórias. Há pessoas que têm uma relação altamente sexual, e há pessoas que têm poucas metáforas sexuais, actividade, frequência, mas que têm uma óptima relação.
O que é que é ser bom na cama?
Não faço ideia, não sei responder a isso. Mas posso dizer uma coisa: há tanta coisa que os homens e as mulheres têm em comum… Uma delas é o medo da incompetência sexual.
Eles e elas acham que não são bons o suficiente? Que o outro os deixou porque não são bons o suficiente, que o outro já não lhes liga porque não são bons o suficiente?
Acham que é muito importante ser competente sexualmente.
Vivemos sob o jugo da competência. Temos que ser competentes profissionalmente, competentes a ganhar dinheiro, competentes a criar uma família. E competentes na cama.
Estamos sempre sob avaliação. Portanto, fizemos, qual é o nosso rating?
“É melhor do que alguma vez foi? Se comigo for melhor significa que gosta mais de mim, que sou especial”?
Isso é uma coisa um bocado narcísica, de competição. Todos queremos sentir-nos especiais em alguma coisa. Adoro o título do Stieg Dagerman, A nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer. Sentimo-nos únicos e precisamos que o meio nos confirme isto. O meio não confirma nada disto. E então há pessoas que têm que confirmar isto. Que são reparadoras, validantes. Isto muda todo o discurso do prazer, do hedonismo, do sozinho.
Porque a confirmação vem do outro? Não nos bastamos.
Sim. Só sou bom se for avaliado por alguém. Temos Narciso estarrecido a olhar para a sua imagem, que é tão bonita. A analogia seria uma pessoa que tem a masturbação, só, a quem não interessa mais nada. Mas de uma forma geral ser bom é ser bom para o outro, implica sempre a relação, o feedback. Isto é vivido com angústia.
Muitas imagens do que é ser bom na cama, a que é que isso corresponde, são veiculadas pelo cinema e pela publicidade. No Nove semanas e Meia, Kim Basinger parece ter imenso prazer, mas sob o ponto de vista anatómico aquelas posições dificilmente provocam um prazer intenso; por exemplo, porque não há fricção clitoriana.
Estamos a falar de artes circenses, malabarismo, contorcionismo. Digo assim: “Alguém foi para a cama com alguém”. Quais são as imagens que tenho na cabeça? A cama. E que estão deitados. Não disse que estavam deitados. Temos estes guiões, muito reforçados por estas imagens repetidas constantemente nos filmes. As pessoas tentam diversificar, experimentar posições que são desconfortáveis, à procura do tal sexo perfeito.
Além do cinema e da publicidade, há uma coisa importantíssima, as pequenas narrativas dos videoclips. Observo as camadas mais jovens através destas coisas. Há micronarrativas muito sexualizadas, uma série de trejeitos corporais, quase um doutrinamento. O problema é que temos poucas narrativas e representações alternativas. Lembro-me de ter visto duas coisas em cinema que achei geniais. Uma é no Carne Trémula, do Pedro Almodovar; um indivíduo com deficiência motora a dar prazer a uma mulher. E outra no Fiel Jardineiro; ela está grávida mas é apresentada como uma mulher desejável, aparece no banho e ele está altamente estimulado pela sua nudez, e durante todo o filme ela é referida como alguém que podia ter tido uma relação extra-conjugal, durante a gravidez. Isto é raríssimo.
O Nove Semanas e Meia leva-nos para os tipos de orgasmos femininos. A mulher pode ter prazer se não houver um contacto clitoriano?
Não gosto de dizer coisas que levam as pessoas a andar à procura do Santo Graal. Se acontece, é muito difícil. Implica um treino muscular muito específico, uma grande concentração. Mas prazer e orgasmo não têm que ser sinónimos. O orgasmo é muito bom e as pessoas não devem desistir de ter, de procurar ter, de querer ter. Há a ideia conformista do “não tenho sempre, mas não faz mal”.
Os homens sentem-se incapazes pelo facto de elas não terem orgasmo sem estimulação manual ou fricção clitoriana? Como se a penetração não fosse suficiente para lhes dar prazer ou as fazer ter orgasmos. Como se eles não bastassem.
Só com a penetração é difícil. Por isso é que se sentem mal.
Os primeiros brinquedos sexuais, de uma forma geral, tinham uma forma de pénis. À medida que nos despimos dessa crença (que com a penetração a coisa vai lá), até os brinquedos sexuais mudaram. Hoje em dia temos uma série de estimuladores que têm a função de dar prazer às mulheres e que não têm nada da forma peniana.
Pode haver motivos muito diferentes que conduzem à sensação “não chego para ela”. Um pode dizer isso porque está aflito com o tamanho do pénis. Outro pode dizer isto porque ela sozinha masturba-se e com ele não consegue ter prazer. Ou pode ser uma pessoa que tem um problema de ansiedade social, de avaliação e desempenho, em todas as áreas, e esta é mais uma. Se calhar é um tipo que acha que tem de ouvir de todas as pessoas com quem está, 20 vezes: “És o máximo”. Ou que acha que dez vezes por noite é que é e só consegue cinco. O que é que está ali por trás?
Publicado originalmente no Público em 2011