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Anabela Mota Ribeiro

Paula Rego - Museu Picasso Málaga, 8-6-22

11.07.24

“Se eu morresse, morria com O Anjo. Levava O Anjo comigo. É verdade. Ela é ao mesmo tempo um anjo da guarda e um anjo vingador. A sua missão é proteger e vingar. Traz os símbolos da Paixão, a espada e a esponja.” O Anjo foi feito no fim da [série do] Padre Amaro (1998).

Apesar desta relação com o quadro, apesar de estarem condensados nesta pintura assuntos fundamentais da sua obra, a artista considera que O Anjo não é o seu melhor auto-retrato.

Este anjo não tem a cara de Paula Rego. Mas não é preciso ter a fisionomia da pintora para ser um auto-retrato. Os seus retratos são uma colecção de máscaras. Os retratos são as narrativas que aparecem nos seus quadros, mais disfarçados, menos disfarçados.

N’ O Anjo, a modelo é Lila, a enfermeira que emigrou para Inglaterra para acompanhar os anos de doença do marido de Paula Rego. Lila encarna a mulher portuguesa, o seu corpo traz o imaginário dos anos de formação em Portugal.

Paula gosta especialmente d’ O Anjo, d’ A Filha do Polícia (1987), As Criadas (1987), À Janela (1997).

Quem é então Paula Rego? Primeira resposta: ela é sempre uma multiplicidade, uma confluência de opostos e de pulsões contraditórias. Como diz a sua filha mais velha: “Com ela nunca é acariciar ou bater, é sempre acariciar e bater.” Paula é esta tensão. A pintura é o instrumento de aglutinação destas linhas narrativas.   

Vicky, a segunda filha, que é actriz e posou várias vezes para os quadros da mãe, é eloquente: "Ela é o trabalho dela e o trabalho dela é ela. Não lhe é possível livrar-se dessa realidade, desligar. [...] Havia sempre alguma coisa que não era possível atingir na mãe. A mãe sempre ergueu uma espécie de parede entre ela e todos nós. Não sei. O pai era mais real, por assim dizer."

No livro Paula Rego por Paula Rego, o mesmo é expresso pelos três filhos. “O estúdio era realmente o seu santuário, e privado, quer fosse a adega, na Ericeira, ou o quarto do andar de cima da nossa casa, em Londres”, conta Vicky.

Cas guarda também essa memória. “Passei a minha primeira infância na quinta. O pai e a mãe usavam a adega como estúdio. Ele, o lado esquerdo, ela, o lado direito. A pintura foi sempre a actividade mais importante e o tópico central de conversa às refeições. Bons, maus, pintores interessantes eram discutidos. [...] Não me lembro de a minha mãe alguma vez ter falado de técnica, embora pudesse estar orgulhosa de uma coisa especialmente bem desenhada. O que mais a preocupa é o conteúdo. Frequentemente, o que ela pede como presente de Natal é uma ideia”.

Uma ideia, uma história para pintar. O resto é trabalho solitário, focado, árduo.

Se Paula é o seu trabalho, vamos procurá-la nos quadros.

Durante anos, o seu trabalho foi ignorado em Inglaterra, e foi tratada com condescendência quando tentou arranjar um galerista. Vicky lembra-se de perguntas estúpidas, como: “Ainda continua a pintar?”. Basicamente porque Paula era mulher e não era suposto que uma mulher fosse uma pintora, reconhecida, séria. Vic Willing é que era a estrela do casal. Era o artista de quem se espera tudo.

No filme Paula Rego - Histórias e Segredos, Cas é explícita quanto a esta cisão entre a mulher-mãe-esposa, obediente, domesticada por uma educação castradora do feminino, e uma artista fulgurante que "despeja tudo" no quadro. No entender da filha, é por não ser capaz de dizer "não" na vida real, pela timidez, pela submissão ao mundo exterior, que os quadros são tão poderosos e intensos. A arte é uma forma de exprimir a sua visceralidade, o seu lado indómito, a sua identidade mais autêntica. E a arte é uma forma de se salvar.

"Pintar quadros é como ser um homem, tem a ver com o nosso lado agressivo, é o mesmo tipo de impulso, de ofensiva. Ter bebés, estar com eles em casa, é parecido a fingir que brincamos às casinhas quando somos crianças. É quando estou a pintar um quadro que me identifico mais comigo mesma".

A expressão que Paula mais recorrentemente usa para designar aquilo que faz, ou seja, pintar, é "fazer bonecos".

Tácteis ou desenhados, são bonecos. E pode acontecer que os bonecos toscos que constrói (sobretudo estes) sejam similares aos bonecos da infância, a bonecos de brincar, e que tudo isto seja uma forma de brincar às casinhas. E desenhar é descrito, em muitos passos do seu percurso, como um riscar feroz, infantil, experimental.

Paula confessou-me numa entrevista que há um quadro especialmente revelador: Target (1994), o alvo. “É a menina de costas, a abrir o vestido, cúmplice na maldade que lhe estão a fazer. Vão dar-lhe um tiro nas costas, ou uma seta, como ao São Sebastião. (Gosto muito do São Sebastião por causa das setas.) E ela está a ser cúmplice naquilo que lhe estão a fazer: está a abrir o vestidinho para lhe fazerem mal. É um quadro que me saiu muito simples e que tem muita coisa de que gosto”.

Frequentemente há uma rendição, um entregar-se ao carrasco, àquele que tem poder e que tanto se teme e se ama – e há um prazer nisso.

Paula Rego é esta mulher, sacrificial, entregue ao prazer e à culpa.

Estes temas atravessam as diferentes fases da sua obra. A expressão plástica, num percurso tão longo e fértil, é diversa. Mas as obsessões da artista não são tão diferentes assim. O resumo de Paula é este: “Mandar nas pessoas. Obediência. Subversão. Fazer bem às pessoas más, fazer mal às pessoas boas. Poder. Desigualdade entre os sexos. Os homens mandam nas mulheres em geral. As mulheres às vezes mandam, mas é de outra maneira. A relação entre os sexos. É isso. Não é preciso mais. São tudo coisas caseiras. Tudo se passa no espaço doméstico.”

Ou seja, as relações de poder, o lugar da mulher, a visceralidade do amor. A subversão social. As verdades ditas através de animais. É isto que se revela no universo pictórico de Paula Rego. As suas palavras essenciais: Medo, Vergonha, Sexo, Poder.

A famosa série A Menina e o Cão retrata a última fase da relação de Paula com o marido: o cuidado, a dependência, a ternura. Nesses últimos anos, Vic vivia confinado ao seu quarto. Paula regressava ao fim do dia, desenrolava o que tinha pintado, pedia-lhe opinião.

Estava a pintar A Dança, uma tela imensa e triste, quando ele morreu. Demorou seis meses a completá-la. “A fumar brutalmente e a pintar.” Ficou entregue a si própria. Sem ninguém a quem perguntar. Perguntar se está bem, perguntar o que fazer. Seguiu o conselho de Vic, a dádiva, segredado pouco antes de morrer: aprendeu a confiar nela.

Se é verdade que a produção de décadas não é uniforme, o traço, o desenho, é o elemento comum. “Todo o risco é muito importante. A pressão, o riscar, que tem também a ver com o ferir. Todo o trabalho, desde o princípio, envolve desenho, mais do que pintura. O traço tem de dizer qualquer coisa, senão seriam riscos.”

A pintura – e, antes dela, o desenho – constitui uma fala primordial, uma língua materna, onde Paula Rego se reconhece e afirma enquanto pessoa e enquanto criadora. Pintar é uma forma de se escutar a si própria. Uma auscultação íntima que conhece som e conteúdo no momento em que se ausculta. E assim se torna expressão, língua visível.

Passa-se assim: “O Pillowman era o meu pai. É a história dele, verdadeira. Não sei porque é que o Pillowman era o meu pai, mas compreendi que era. Estava no estúdio a falar com o Marco Livingstone, e, na nossa conversa, compreendi o que tinha feito. [...] Normalmente [compreendo] depois de desenhar. Às vezes nem isso. Outras vezes, antes de desenhar. Depende.”

Pintar é um modo de trazer à luz, de dar à vida qualquer coisa que antes só existia no reduto íntimo de cada sujeito. (Curiosamente, há imensas grávidas nos quadros de Paula Rego.)

Pintar parece ser a sua forma primordial de pensar, de se pensar, em liberdade. Parece ser a sua forma de aceder a uma verdade que era desconhecida e que se revelou no gesto pictórico.

Toda a sua genealogia familiar é convocada, mas o seu país e a sua cultura também. É curioso que, mesmo vivendo em Londres desde os 17 anos, nas suas referências a artista continue a ser, sobretudo, portuguesa.

Sem uma história, um enredo, nada existe. A palavra, a literatura ocupa um lugar central. Todavia, outras disciplinas têm presença significativa na sua obra. A dança, o teatro, o cinema, a escultura, a própria pintura. As representações de cada uma destas são abundantes. Podemos mesmo dizer que elas se entrecruzam permanentemente.

No início do filme Paula Rego - Histórias e Segredos, de Nick Willing, ouve-se a voz da pintora a explicar a aproximação a um assunto. Quando tem dúvidas quanto ao local que cada personagem e cada objecto deve ocupar na micro-narrativa que é o quadro, regressa a um sítio que conheceu em criança. Desenha a sala que era a sala da sua infância e põe a história lá dentro. A sala da casa do Estoril onde viveu com os pais até se mudar para Inglaterra. É o seu território, o seu refúgio, o que a sustenta.

Paula Figueiroa Rego nasceu no seio de uma família da alta burguesia. O pai era um engenheiro electrotécnico, anglófilo, que ouvia fervorosamente a onda média da BBC para saber notícias da Guerra. Tinha uma espécie de cinema em casa e uma “Divina Comédia” ilustrada por Gustave Doré. Foi sempre um grande apoio para Paula, inclusive quando a filha engravidou, solteira, num país tão conservador como Portugal, em plena ditadura.

A mãe era uma senhora elegante, que deixou em Paula o gosto pelos vestidos. “Íamos a Lisboa às compras, de comboio, e eu adorava. A minha mãe punha o chapéu, arranjávamo-nos muito bem, com luvas e sapatos, e lá íamos para o Chiado. Eu tomava sempre um café glacé com bolas de Berlim”. Folheavam as revistas de moda. Tiravam os modelos. A menina Francisca vinha a casa costurar. Há uma blusa desse tempo que Paula conserva. Integrou-a num quadro da série da vida de Nossa Senhora.

O pai e a mãe encarnavam o mundo do Estoril. Aveludado. De hierarquias vincadas, regras estabelecidas. A menina devia aparecer na sala de luvas brancas, se havia visitas. Comportar-se, obedecer. “O maior problema toda a minha vida tem sido a incapacidade de me exprimir frontalmente, dizer a verdade. Os adultos tinham sempre razão: a menina ouve e não responde. Responder, contradizer, era a morte, era cair de repente num vazio terrível. Esse medo nunca me há-de deixar. Vêm daí os disfarces infantis, os disfarces femininos. Menina pequenina, menina bonita, mulher atraente. Daí a evasão de contar histórias”. (conversa com o biógrafo John McEwen)

E agora, e o futuro?

“E agora vamos ver se vem alguma coisa interessante, está-se sempre à espera do que se vai fazer, não é verdade? Não importa nada o que se fez até aqui. Importa até certo ponto, mas não é suficiente. O que importa é que o se vai fazer, o encher-me de medo.”

Paula Rego pronunciou estas palavras num tempo de consagração, quando se inaugurou o seu museu Casa das Histórias, em 2009. Que uma artista continue a sentir este medo e este desejo de futuro, com a sua idade e o seu estatuto, manifesta uma imensa vitalidade e génio criador.

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Parti deste texto para falar de Paula Rego no Museu Picasso de Málaga, no dia 8 de Junho de 2022. Estava no comboio, entre Madrid e Málaga, quando soube da morte da artista. Revia as notas, escritas uma semana antes, e a entrada premonitória: “Se eu morresse, morria com O Anjo. Levava O Anjo comigo. É verdade". Nessa tarde, discutimos a sua pintura, a professora de Filosofia Marta Postigo e eu, fizemos um minuto de silêncio, despedimo-nos de Paula entre os seus quadros. Partilho o texto quando nos preparamos para nos despedirmos outra vez, no dia do seu enterro. Embora a despedida seja um pouco irreal: porque ela fica e não tem tempo. 

No dia seguinte, vi uma carta de Paula Rego para Júlio Pomar. Comentava uma exposição retrospectiva de Picasso, o incomparável. A última exposição inaugurada em vida da pintora era na terra natal do génio espanhol... Tudo estranhamente se encaixava.

Este texto foi primeiro publicado no site da CNN Portugal.

Quase não tenho fotografias com Paula Rego. Esta é de 2011, no dia do seu doutoramento honoris causa pela Universidade de Lisboa.