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Anabela Mota Ribeiro

Paulo Cunha e Silva

11.11.15

Paulo Cunha e Silva é formado em Medicina. Entre outros cargos, foi director do Instituto das Artes e conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Roma. É vereador da cultura na Câmara do Porto.

 

“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” – Fernando Pessoa. Pode falar-me de alguns dos sonhos do seu mundo? 

Não sei se o sonho comanda a vida ou se a vida comanda o sonho, talvez que a verdade se encontre no epicentro destas duas possibilidades. Mas não posso acreditar numa vida sem sonho, numa vida dedicada à gestão de um quotidiano determinista e causal. O sonho, mesmo que não se concretize, é o motor secreto da mudança. Um mundo sem sonho é um mundo condenado à sua previsibilidade e anomia. Sonhar é preciso, e é preciso perseguir o sonho, por mais inconcretizável que pareça.

 

O que se aprende nos livros, no cinema, na arte é muito diferente do que se aprende na vida?

Não encontro descontinuidade entre os livros, o cinema, a arte e a vida. Posso encontrar extensão, complementaridade. Nunca entendi a cultura como uma segunda natureza. A cultura é uma natureza expandida e estendida. Nesse sentido, o livro, a obra pode levar-nos a um lugar mais distante, a um ponto de observação simultaneamente mais lúcido e descontínuo – inspirador na capacidade que tem de nos provocar o espanto.

Frequentar e confrontar os territórios que a cultura nos propõe é munirmo-nos de novos instrumentos para encarar o mundo.

 

Há 40 anos tivemos um Verão Quente, com o país a rasgar-se. Que memórias tem desse tempo?

Nessa altura vivia em Braga. O meu pai era juiz e não sendo, obviamente, um opositor do regime, nem um manifesto antifascista, era alguém que olhava para a política e a sociedade com uma ironia tão crítica e desassombrada que lhe dava um estatuto de certa benevolência por parte de todas as forças políticas. Nunca esteve preso, não teve fugir, não foi saneado. Seria mais de direita do que de esquerda. Não tinha nenhuma medalha de mérito ou de demérito revolucionário para ostentar. Não terá gostado das minhas leituras marxistas aos 12 anos. Conta-se que num assomo de fúria me terá ameaçado de ser deserdado, não pela minha frequência de juventudes radicais, mas pelo universo literário da revolução que eu ia frequentando de uma forma crescente e visível.

Nesse ano, o que mais me marcou, porque o vi acontecer à minha frente e não na televisão, foi o assalto à sede do Partido Comunista (em Braga).

 

Que impacto teve esse episódio em si?

Nunca tinha assistido à violência a irromper à minha frente, como se houvesse uma espécie de fúria das multidões, uma acefalia do comportamento das massas que nunca tinha encontrado nos indivíduos. Nesse dia, eu que era de certa forma filho da prática da justiça e da administração que dela faziam os tribunais em nome do Estado, fiquei com medo da justiça popular. Fiquei com medo da cegueira da praça pública. E aprendi.

 

Também há 40 anos, o país recebeu 700 mil retornados, Angola, Moçambique e Cabo Verde tornaram-se independentes. O que é que acha que quer dizer de um país o facto de este ter acolhido sem convulsões sociais uma quantidade tão grande de pessoas?

Foi de facto uma gigantesca revolução silenciosa. A capacidade de um país incorporar em poucas semanas uma população externa que correspondia a quase 15% da sua população interna é surpreendente. É claro que nem tudo foi fácil. Lembro-me do estigma do “retornado” que se colava à pele do “outro” de uma forma muito desagradável.

 

Tem uma história pessoal ligada ao retorno que queira contar?

O meus avós maternos tinham investimentos em Angola, onde nasceram dois tios meus, mas nunca viveram de forma definitiva em Luanda. Com a descolonização, perderam os seus interesses lá. Mas viveram tranquilamente com os investimentos que tinham em Portugal. Todavia, o meu avô vivia numa nostalgia de recuperar o património, sobretudo imobiliário, que tinha ficado em Angola.

Ouvia falar num procurador que tinha tido instruções para vender tudo o que pudesse, mas que subitamente desapareceu sem deixar rasto... Memórias difusas de um tempo em que eu entrava na adolescência. Hoje lamento que não haja mais África na cultura portuguesa contemporânea. E com cultura também quero dizer política.

 

Acha o discurso: “Eles são todos iguais!” uma consequência do estado a que isto chegou? Ou considera que é grave e abre espaço a populismos?

Se fossem todos iguais mas também todos diferentes, a situação ainda passava. O problema é se são só mesmo “iguais”. Chamo a atenção para a configuração do “Eles”. O “Eles” são os outros, os maus, os corruptos. “Nós” somos os bons. Esta formulação é a evidência da fractura entre os políticos e a população. A afirmação é naturalmente populista, mas compete aos políticos criar condições para a sua dissolução.

 

Oficialmente saímos da crise. À esquerda e sobretudo à direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das suas possibilidades e que era preciso aprender a viver de outra maneira. Aprendemos?

Aprender é uma condição muito humana, diria mais, muito biológica. Os humanos aprenderam a aprender. Os seres vivos aprenderam a ajustar-se. Conseguimos aprender, conseguimos ajustar-nos, mas não podemos perder o direito à indignação.

 

Atravessamos um deserto em que todos sabemos o nome do ministro das Finanças alemão ou grego. Antes de mais: considera que é um deserto? Onde fica o oásis?

Para os investidores, o oásis talvez possa ser um índice NIKKEI favorável. Mas olho com tristeza e cepticismo para a captura da política pelas finanças e da cultura pelos fundos de investimento.

 

Se pudesse escrever uma carta a alguém, gritar alguma coisa (um insulto, uma advertência, um conselho, uma declaração) seria o quê e a quem? Pode ser a um político. Pode ser ao mundo. Pode ser mesmo a quem quiser.

Não deixem de gritar. O grito, mesmo o de Munch, é o desconforto do humano, o desassossego do vivo. Gritem, mas também dancem, se puderem!

 

O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?

Pra mim o futuro sempre esteve aberto, o futuro é um espectro de possibilidades. Sem futuro ficamos algemados ao passado, e o passado, mesmo glorioso, não é um lugar que goste de frequentar: muito dos víveres já perderam a validade. A esperança é o vector da vida, e por isso o único instrumento que temos para frequentar o futuro.

 

Pode fazer um curto auto-retrato?    

“Círculo branco sobre fundo negro”, sem referência a Malevitch.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015