Paulo Lins (Cidade de Deus)
«Foi um acerto de contas com a minha realidade. Eu era muito revoltado. Com a vida, com a política brasileira, com a escravidão, com a colonização. Só não fui mais revoltado com os portugueses porque meus avós eram portugueses. Mas escrever sempre foi uma necessidade. Se não fosse a «Cidade de Deus» seria outra coisa. Está dentro de mim, desde criança. As professoras viam que eu era diferente, uma criança mais recatada, muito sofrida. Sou um sofredor. Naquele espaço, eu era diferente. Teve uma professora, Sónia Nobre Formiga, e outra, Maria Freitas Dias, que me acolheram. Elas são minhas amigas. Sempre fui muito magrinho, e a rua era muito violenta. Tudo era briga: futebol tinha briga, brincadeira de rua tinha briga. Não conseguia nem namorar!, era muito pacato».
Paulo Lins tem 44 anos. Viveu cerca de 30 anos na Cidade de Deus, uma favela na periferia do Rio de Janeiro. O livro que traduz esta experiência foi lançado no Brasil em 97 e está agora a ser traduzido para dez línguas. O filme, baseado no livro e realizado por Fernando Meirelles, foi visto por milhões de espectadores (só no Brasil foram quatro milhões!). Vive desde sempre com as palavras. A literatura serve-lhe para reconstruir o seu universo.
Conte-me a história da sua vida.
Sou filho de casal misto, como bom brasileiro. A minha mãe é negra, descendente de africano, o meu pai é branco, descendente de português, do Porto. Nasci no Estácio, que era um bairro negro e depois passou a bairro de português pobre, de emigrante. É um bairro boémio que também tinha a zona do baixo meretrício.
Baixo meretrício?
Uma zona de prostituição feminina e homossexuais. O Estácio era cheio de significado, foi lá que nasceu o samba, a macumba. Muito criança, eu não sabia nada.
Não sabia nada de quê?
Do lugar onde estava. Só quando me tornei adulto é que vim a saber o que é o Estácio. Nessa época, eu morava em baixo e quando chovia muito havia as enchentes. A minha casa encheu várias vezes. Foi por isso que fui morar na Cidade de Deus.
Qual é a distância entre o Estácio e a Cidade de Deus?
50 km. A Cidade de Deus foi um conjunto habitacional, conforme outros que foram criados nessa época de 60, na periferia do Rio de Janeiro. A ideia era tirar as favelas da zona sul do Rio, acabar com as favelas. Foi um projecto do governo americano com o governo brasileiro. Fui morar na Cidade de Deus com 7 anos de idade.
Lembra-se da mudança?
Lembro. A minha família não tinha nada, a enchente tinha levado tudo. A gente mudou só com uma cama, o fogão que o meu pai arrumou, umas roupas que sobraram. A minha família é muito pobre. Saí do Estácio, que era uma zona bastante urbanizada; a Cidade de Deus fica em Jacarepaguá, que era rural. Quando cheguei, foi a maior alegria da minha vida! Em frente da minha casa tinha um rio. E depois uma lagoa, e depois outra lagoa e depois o mar. Chegámos de noite, todos com muito medo, porque a gente não era favelado. O Estácio era um bairro normal, e a minha mãe tinha medo do pessoal das favelas, aquela coisa de proteger os filhos...
Medo de quê?
A favela sempre foi violenta. Só que não saía da favela, ficava restrito aos seus limites. Agora é que a favela se espraiou. A pobreza aumentou e o número de favelas também. Eu, o caçula [mais novo] de quatro irmãos, fui o que mais adorei. A casa era pequenina, rosa, toda bonitinha. De manhã havia barulho de boi, galo, o leiteiro tirava leite da vaca e a gente bebia logo, a gente se jogava no rio, o rio rasinho. Fui para a escola, para o segundo ano primário, e ganhei um monte de amiguinhos. Esse primeiro contacto foi muito bom. Quando fiz dez, onze anos vi o lugar em que estava, um lugar violento.
Como é que esse cenário bucólico se transformou aos olhos de uma criança? Como é que despertou para a violência que tinha à sua volta?
Com as próprias crianças. Elas eram violentas. Eu apanhava muito! Era muito mimado, muito criado dentro de casa, a minha família era muito católica e muito espírita, ao mesmo tempo. Ia para a igreja todo o domingo, era coroínha [acólito], fui escuteiro. Não jogo bola, não sei brincadeira de rua. Era muito acostumado a ler e era sacrificado por causa disso; porque ninguém lia.
Sabiam ler, os seus pais?
Sabiam. O meu pai era pintor de construção civil. A minha mãe foi muito tempo cozinheira de um hospital, depois foi feirante e depois ficou em casa, para tomar conta dos filhos. Os meus irmãos tiveram que sair da escola para trabalhar; mas eu, como era caçula, não precisei de trabalhar: eles me sustentavam. Hoje sou eu que sustento eles.
Foi um bom investimento.
Um investimento mesmo. Minha mãe obrigou eles a isso. Sempre fui bom aluno no colégio, sobretudo em língua portuguesa. Quando era criança, ainda antes de saber escrever, fazia poesia. A minha mãe anotava e botava Paulo Lins. A casa era pequena mas eu tinha um lugarzinho para estudar e uma caixinha cheia de versinhos. Uma vez a minha mãe ficou doente e uma vizinha foi ajudar a arrumar casa, fazer o comer. Então, ela pegou nos meus papéis, tudo riscado, e começou a amassar. E aí ouvi a minha mãe gritando: «Não, não, não, papel do Paulo não pode jogar fora!, porque meu filho é artista!». Sempre ganhava concurso de poesia, sempre ganhava festival de música. A minha mãe viu que tinha que investir em mim. A escola foi a minha grande salvação naquele universo.
Nunca perdeu um ano, pois não?
Nunca.
Pelos 18 anos quer tornar-se fuzileiro naval.
No quartel aprendi tudo. Aprendi a brigar, aprendi a dar tiro, aprendi a fazer defesa pessoal. Fui corredor de 100 metros durante quase 10 anos, e fiquei forte Os meus amigos da Cidade de Deus que me batiam, começaram a ficar todos baixinhos... Cresci mais do que eles. Naquele tempo, durante a ditadura militar, me pagavam muito bem. Fui para o quartel porque a ascensão social era mais fácil. Com o governo militar, o militar é muito respeitado.
É a questão central, a ascensão social?
É. Sempre tive vontade de ascender socialmente. Todo o mundo tem. Quando fui para o quartel já tinha o 2º grau.
E tinha vantagem sobre aqueles que eram praticamente analfabetos.
Exactamente.
Explique-me porque é que a ascensão social é a questão fulcral.
Todo o mundo quer mudar de vida, todo o mundo quer mudar de classe social. Mas não tem como. A única maneira do pobre, do favelado mudar de classe social é o futebol. Você vê o futebol do Brasil, não tem aquela coisa muito técnica, tem aquela coisa da ginga. Quem é o pessoal? A maioria é negro, mulato, que tem essa coisa da capoeira, da brincadeira de rua, da correria.
E dança.
Tem dança. A rua dá isso. A rua é uma escola. Onde é que estávamos?
Na ascensão social. O futebol é uma das maneiras. Quais são as outras?
O samba. O samba também era coisa de pobre. A elite não fazia samba. Eu tinha uma máquina de escrever, coisa que quase ninguém tinha. Os sambistas da escola «Académicos da Cidade de Deus» faziam o samba e me pediam para corrigir. Mexia com todos os sambas, porque batia à máquina e fazia a correcção do português. A primeira vez que ganhei dinheiro com arte foi fazendo samba enredo.
Como é que teve a primeira máquina de escrever? A sua família fez que sacrifícios para lha dar?
Demorou dois anos para me darem a máquina. A minha irmã mais velha pegou no 13º salário, juntou com dinheiro de todos, e me deram uma Olivetti, pequenininha. Eu tinha 15 anos.
Abraçou-a?
Ficou comigo. Foi nela que comecei a escrever a Cidade de Deus. Escrevia na máquina o tempo todo. Estou até emocionado...
Emociona-se facilmente?
Choro à toa, sou um chorão. Isso também era ruim para mim quando era pequeno!
A vida na favela é intolerável para todas as pessoas? Há quem goste de viver lá, quem esteja perfeitamente integrado?
Na favela tem muita fome, não tem direito a nada, não tem médico. É natural que as pessoas queiram mudar de vida. No quartel, comecei a ganhar mais do que a minha família toda junta. Várias pessoas da minha geração estão no quartel até hoje. Eu já tinha perspectiva de fazer a universidade, queria estudar. Mas o filho do pobre não consegue estudar, não consegue fazer uma boa escola, não consegue fazer a universidade; é muito raro.
Além do futebol e do samba, o que permite ascender socialmente é a educação.
Eu ouvia isso, as minhas professoras me falavam isso.
Disse numa entrevista que aqueles que não podem estudar transformam-se em criminosos ou em mão-de-obra barata. Não há outras hipóteses?
Ou vão para o futebol ou para a música, campos muito restritos.
É muito fácil ser engolido pela violência, pelo tráfico e pela teia de criminalidade?
Não. É muito fácil virar operário.
Mais do que criminoso?
Muito mais. Criminoso tem pouco.
Tem?
Essa miséria é reflexo de um país que foi sempre violento. O número de miseráveis é muito grande, o racismo é muito grande. É um país que teve 300 anos de colonização, 400 anos de escravidão, duas ditaduras, uma civil e uma militar. Tem uma historiadora americana que escreveu um livro sobre a escravidão no Brasil entre 1830-1840; ela diz que morriam de 100 a 120 negros por semana, assassinados ou suicidas, no Rio de Janeiro. É um país que vem com uma história de violência desde a chegada dos portugueses. O que é o Brasil? O Brasil é português, africano e índio. E o tráfico de escravos é a base da economia ocidental.
Foi.
Não. Continua a ser.
Como assim?
Movimentou milhões. Tanto Portugal, Espanha, como a própria Inglaterra ganharam muito dinheiro com isso. A escravidão já estava acabando no Brasil, mas o tráfico continuava. Rendia muito dinheiro. A formação da sociedade brasileira se fez em cima disso. Não tem negro empresário, proprietário. Nem índio. Negro aparece na arte, na música, no samba, no futebol. A imensa maioria dos proprietários no Brasil são brancos, descendentes de portugueses e dos emigrantes. Então a questão do Brasil é racial-social.
A seu ver, a partir dessa vêm todas as outras, a económica, a cultural?
É. Os imigrantes brancos europeus, (os italianos, os espanhóis), ascenderam socialmente porque eram brancos. O negro não ascende socialmente. Tanto é que agora, quando o Lula nomeou um ministro negro foi uma coisa! A própria televisão reflecte isso: o jornal nacional da Globo só no ano passado é que botou o jornalista-âncora [pivot] negro. Na novela brasileira que vocês vêem, negro só faz papel de empregado. E todo o mundo quer ascender. Ninguém quer ser pobre. Ser pobre é muito ruim.
Foi pobre até que idade?
Sou pobre ainda. Quando entrei para a universidade, aí ascendi socialmente. Só de entrar. Na verdade, a classe social não envolve só o lado financeiro, envolve também a formação.
Claro, é o estatuto.
Quando entrei para a universidade, mudei de status. Saí do quartel, trabalhei de garçon, de motorista, trabalhei de feirante.
Tudo isso para pagar os estudos?
Não. Para viver mesmo. Fiz vestibular e entrei na universidade. Meus irmãos continuaram a pagar os meus estudos. Em 82, num bairro de 120 mil pessoas, fui o primeiro universitário da Cidade de Deus. Foi uma emoção.
Foi pelos dez anos que se deu conta que vivia num sítio violento.
É. Eu era infeliz e não sabia. Tem aqui uma passagem no livro em que o Buscapé fala disso: «Recordou os ensaios do Orfeão de Santa Cecília de seus tempos de escola com alegria, subitamente desfeita, porém, no momento em que as águas do rio revelaram-lhe imagens do tempo em que vendia pão, picolé, fazia carreto na feira, no mercado Leão e nos Três Poderes; catava garrafas, descascava fios de cobre para vender no ferro velho e dar um dinheirinho a sua mãe. Doeu pensar na mosquitada que sugava seu sangue, e no chão de valas abertas onde arrastara a bunda durante a primeira e a segunda infância. Era infeliz e não sabia. Resignava-se em seu silêncio com o fato de o rico ir para o exterior tirar onda, enquanto o pobre vai pra vala, pra cadeia, pra puta que o pariu. Certificava-se de que as laranjadas aguadas-açucaradas que bebera durante toda a sua infância não eram tão gostosas assim. Tentou se lembrar das alegrias pueris que morreram uma a uma, a cada topada que dera na realidade, em cada dia de fome que ficara para trás».
Esse retrato é seu?
De certa forma.
Gostava de conhecer melhor o embate com a realidade, o movimento que o fez perceber que era infeliz.
O primeiro embate foi assim de sair mesmo. Quando saí do Primário para o Ginásio, em 75, vi que a única possibilidade era estudar o máximo possível. Depois, quando fui para o segundo grau entrei na política. Entrei no movimento negro, entrei no cineclube, entrei na associação de moradores, entrei no partido, no PT. Tinha uma certa consciência política e social e joguei isso tudo na política, na literatura. Vi que a saída era essa.
Lutar.
Lutar. Vamos fazer política, vamos mudar essa realidade. Hoje fico muito feliz que o meu partido está no Governo.
Nunca se desiludiu com o PT?
Não. Tive várias confusões porque o PT é um partido muito grande, com várias correntes, com vários sectores. Mas o PT continua no meu coração.
Pode ler-se logo no arranque de «Cidade de Deus»: «É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. (...) Falha a fala. Fala a bala». A tónica é na palavra, no raciocínio, na capacidade que os homens têm de comunicar e compreender.
Quando a gente não consegue resolver uma coisa na conversa, surge a violência. A palavra é a dona do artifício social. É com a palavra que a gente difere dos outros animais. Quando não existe um diálogo, a violência surge. Em qualquer sector, em qualquer lugar. Na família, em casa, no casamento, na vida social. Numa situação de guerra, ela surge quando não tem mais negociação.
A guerra e a violência são como uma interrupção da fala?
Exactamente. O maior crime é negar ao ser humano a sua história. E a história vem através dos livros. Ser humano e não ter essa dignidade de ser humano é uma violência tremenda. Uma pessoa que não tem condições para discutir, qualquer que seja a argumentação, qualquer que seja o problema, é uma pessoa que vive fora do seu tempo. Não está inserida no mundo em que vive. Está fora, está atrasada. São pessoas que não reflectiram através da leitura, do conhecimento que é necessário ter para quebrar com preconceitos e avançar.
Nesse sentido, a Cidade de Deus é uma metáfora dessa incomunicação?
É uma revelação do que a miséria faz. A miséria não é só não ter o que comer. A miséria é não ter o que consumir. E, sobretudo, ser miserável é não ter acesso aos bens culturais e ao ensino. Porque na sociedade brasileira quando você consegue, pelo menos, estudar, já mudou de classe social.
Se não tivesse o que comer, não se sentiria miserável pelo facto de ser uma pessoa instruída?
Com certeza. Com certeza. Se eu tiver que vender pipoca na rua, a minha pipoca vai ser melhor preparada do que por quem não tem estudo. Outra coisa que é interessante: a segregação. O favelado não consegue estabelecer contacto com pessoas fora da favela. As pessoas são preconceituosas, mas também não tem diálogo! Vai conversar sobre o quê?
Sobre que é que falam as pessoas da favela?
Sobre o que os media passam e sobre a realidade local.
Posto assim, não difere muito dos outros bairros.
Nos outros bairros tem um cinema onde pode ir, pode falar-se de cultura, trocar informação, pode viajar... O mundo está ao seu dispor.
Sobre afectos, as pessoas falam?
Onde há humano, há sentimento. Existe amor, é normal.
No filme, que faz a adaptação do livro, diz-se: «Malandro não ama, malandro só sente desejo». Nas conversas mantidas nas favelas, as pessoas conseguem expor-se nos seus sentimentos mais íntimos?
Expõem-se. Malandro, não.
O que é um malandro? É o malandro da ópera do Chico Buarque, ainda?
Esse malandro do filme, o Cabeleira, é o malandro do Chico Buarque, dos anos 60. É o sujeito que está ali, faz aquele assalto, mas não está ainda envolvido no crime organizado. Malandro podia ganhar no jogo de snooker, vivia da aposta, ia num samba e tal.
O cafajeste a quem as mulheres não resistem.
É. Hoje tem bandido, criminoso mesmo.
Este bandido é aquele que mata como quem muda de camisa?
Que assalta, que mata, que vê o crime como profissão. O malandro vê o crime como sobrevivência.
O bandido mata e assalta com ligeireza; tem consciência do mal que está a infligir aos outros? Quais são as suas balizas de Bem e de Mal?
Tem, tem. Hoje a favela é um lugar seguro quando a polícia não vai. Existem regras dentro da favela: não tem assalto, não tem estupro, não se cometem crimes contra as pessoas que não estão na criminalidade. Essa consciência do Bem e do Mal é tão grande que se você for assaltada, se não reagir, não é molestada.
É isso que se deve fazer? Não reagir?
É. Se reagir, lógico que o bandido se vai defender, e você é molestada fisicamente. O bandido só mata a polícia ou rivais que também são capazes de matar. Por exemplo, se subir na favela, vai ser revistada, vão perguntar onde vai, vão pensar que você é da polícia. Mas se provar que não é da polícia, se disser que conhece alguém lá ou que vai passear, não é molestada. A consciência do Mal e do Bem está bem expressa ali porque bandido só mata bandido. Só mata quem ele sabe que pode matar ele.
Aquele que reage passa a ser potencialmente um agressor.
Exactamente.
Onde é que estão arreigadas essas noções de Bem e de Mal, na religião?
No humano. Uma coisa bem aristotélica. O Aristóteles é que diz: «Todo o homem tem noção do que é certo ou errado». Acho que é do humano que o bandido sabe isso. Aquilo que você não quer para você é o mal. Essa noção é um impulso natural do homem.
« - Tem que matar. Quem cria cobra morre picado!
- Porra! Você só pensa em matar, matar, matar, nunca opta por outra solução!
- Tem uma solução melhor?»
Para estas pessoas não há outra solução?
Na guerra não. Senão é morto. Foi isso que aconteceu no livro. É melhor ter um inimigo morto do que um inimigo vivo. Um político sempre destrói o outro, quer ser superior e quer acabar com o outro. É uma espécie de assassinato, de homicídio. Acaba matando o outro mostrando que ele é incompetente e que você é melhor do que ele.
Estamos a falar de poder e de sobrevivência. As questões são essas?
É exactamente isso.
Qual é a sua definição de dignidade?
Ter dignidade é ter acesso a bens materiais básicos e condições de evoluir. Quando te dão o básico para poder evoluir socialmente, materialmente, espiritualmente, isso é dignidade.
Sempre reconheceu em si dignidade ou aprendeu a conquistá-la?
A minha família me deu dignidade. O esforço deles. Os meus irmãos não tiveram dignidade, mas me deram dignidade. Eles trabalhavam ainda crianças, e isso não é digno – a criança tem que estar na escola, tem de brincar, tem de ser criança. Na Cidade de Deus as crianças são envolvidas no negócio do tráfico, levam tiros nas mãos como castigo, são deixadas ao Deus dará pelos pais. E não querem ser crianças. «Não sou moleque. Eu fumo, eu cheiro, já matei, já roubei. Sou homem».
Estes meninos têm infância?
Ou têm uma infância anárquica, despreparada, ou vão trabalhar.
Essa coisa terrível, «Eu fumo, eu cheiro, já roubei, já matei», acontece regularmente?
Acontece bastante. Se fosse em Portugal seria uma percentagem exagerada. Mas no Brasil, como é muito grande, proporcionalmente é pouco. Costumo falar que pelo tamanho da desigualdade social do Brasil, lá tem pouco tipo de bandido. Tem os sonegadores de imposto de renda, tem os corruptos, tem os especuladores – para mim são bandidos também.
Porque jogam com as expectativas alheias?
É. Mudam, aumentam o valor do dólar, baixam o valor do dólar. Quando o Lula estava bem nas pesquisas, o dólar foi lá para cima! Isso é uma barbaridade, isso é um crime!
Polícias de um lado, criminosos do outro. Há medo?
Muito medo. Quem manda na favela é o traficante. E é preciso seguir as regras do tráfico. São mínimas: não pode ser um delator. Delator morre. Às vezes, quando morre um traficante, mandam fechar tudo, o comércio. Não pode roubar na favela. Não pode mais bater na mulher. Marido que bate em mulher é julgado lá dentro, no tribunal de rua.
Como é que chegaram a essa regra?
As mulheres apanhavam, e a polícia era chamada por causa disso. (Ninguém pode chamar a polícia). Então o traficante instituiu essa regra.
E bater em crianças?
Também não. Criança sempre foi respeitada.
Sempre foi respeitada? Mas o que vemos no filme, e que é uma transposição do seu livro, é que as crianças são permanentemente violentadas.
Mas há crianças que estão envolvidas: «Já matei, já roubei, sou homem». Na medida em que coloca uma arma na cintura, é bandido. É homem. Está de igual para igual. No momento em que não usa arma, nunca se envolveu, ninguém mexe com você.
É-se morto quando se atenta contra a honra e o corpo. E contra o património? As dívidas podem resultar em morte?
Na favela, sim. Se pedir fiado e não pagar, pode ser morto. Não pode fazer isso.
É preciso ter palavra e honra. O que é que vale a vida humana lá?
A vida humana não vale nada.
Isso não é o mais assustador? Viver com a convicção de que a qualquer momento se pode morrer porque a vida não vale nada?
É. É horrível.
Retomemos a história da sua vida. Quando é que saiu da Cidade de Deus?
Quando fui para a faculdade. Fui morar no alojamento da universidade, no campus. Ficava lá e dormia na casa de amigos da classe média. Comecei a namorar tudo o que era branquinha da zona sul.
Como foi esse contacto? Ostracizavam-no pelo facto de ser um favelado da Cidade de Deus?
Não senti isso, não. Integrei-me logo com o pessoal. Quando você tem uma formação, o preconceito diminui. Estava de igual para igual.
Os actores de «Cidade de Deus», que são meninos de favela, puderam viajar aquando da promoção do filme; li os relatos entusiásticos que fizeram das comidas que haviam provado! No seu caso, os sabores e as viagens da classe média constituíram também uma grande novidade?
Não teve tanto impacto comigo, fui entrando devagarinho. Na escola fui fazendo esporte e viajava. Depois foi o quartel, viajei de barco. Depois fui estudar fora da Cidade de Deus, para o Mayer, na zona norte. Na universidade vivia no mundo cultural do Rio de Janeiro, no cinema, no teatro, na poesia. Lancei um livro de poesia.
A sua família continuou a viver na Cidade de Deus nesse período?
Continuou. No final de semana voltava para casa. Minha casa era lá. Tinha que voltar para lavar roupa, passar, ver minha mãe, meu pai. Aí depois casei. Tinha 30 anos. Dava aula na escola secundária, na universidade, dei pré-vestibular... Dei aula até 97. De literatura brasileira, literatura portuguesa e língua portuguesa.
Gosta particularmente de Mário de Sá Carneiro. Porquê?
Adoro a poesia dele. Também Cesário Verde. Um tipo de poesia que é quase filosofia. O Fernando Pessoa fala: «Não sei se é poesia se é filosofia». Gosto da poesia assim. Como gosto de Baudelaire. Um poeta que se parece muito com Mário de Sá-Carneiro é o Augusto dos Anjos. Mário Faustino, também. Para mim o grande poeta da Humanidade é o Maiakovsky. Acredita que o humano vai tirar do pensamento as mazelas do seu eu. «O século XXX vencerá o coração destroçado pelas mesquinharias». Você conhece o poema «Poeta Operário»?
Não.
Ele fala assim: «Cabe ao técnico produzir comodidades/ Cabe a mim que sou poeta produzir ilusões porque os corações também são motores». Esse poema ele pegou na lata, rápido. Estava na rua com um chapéu dizendo poesia e pedindo dinheiro e aí houve alguém que lhe disse: «Ó poeta, gostava de te ver na fábrica!». E ele respondeu isso. Também adoro poesia brasileira, João Cabral, Ferreira Goulard, o Machado de Assis, que é um dos maiores poetas da Humanidade. Como é que o Brasil pode produzir uma pessoa como o Machado de Assis, né?
O seu caminho foi o da poesia. Mas aquilo que nos pôs um frente ao outro foi o seu livro «Cidade de Deus».
Eu só fazia poesia. O livro tem muitas partes poéticas. Depois que passei para o romance passei a ler os romances com olhos de escritor. Porque só lia com olhos de leitor. Teve romances brasileiros que li cinco vezes! Li tudo o que podia ler, li muito. As influências vieram do modernismo, sobretudo de José Lins do Rego, da poesia e também da Filosofia. Li todos os clássicos, vim até aqui, até Heidegger.
Como é que decidiu escrever o livro? Foi um projecto muito aturado, a pesquisa demorou 8 anos a ser feita.
Demorei 8 a 10 anos. Um crítico literário muito respeitado, um dos maiores do país, Roberto Schwartz, me chamou para ir na casa dele depois de um poema que fiz. Um poema sobre o que era ser bandido. Ele pegou o poema, publicou numa das revistas mais importantes do Brasil. Fui ter com ele a São Paulo, de ônibus, não tinha dinheiro, arrumei uma grana para a passagem. Já tinha escrito 200 páginas da «Cidade de Deus». Ele falou para eu escrever. Com um aval desses, «Se ele acha, se ele falou, está falado». Comecei a escrever.
Os textos anteriores ao seu livro eram visões da classe média sobre a favela. A originalidade deste é ser uma visão que vem de dentro, de alguém que viveu lá a vida toda.
É um olhar interno.
Mas qual é o seu olhar?
É denunciativo. Tem a complacência de quem viveu e se acostumou. E teve de se acostumar. Quando você lê o livro, passa a ser uma pessoa ali dentro também. Quando você lê o livro, entra para dentro de um universo e acaba vendo ele com uns olhos mais amplos. Porque quem contou estava lá dentro.
Está rico?
Não. Eu vivo como professor universitário. Poderia até ficar com mais dinheiro, mas sou de uma família muito pobre. Então, para começar, dei uma casa para cada irmão.
Com o dinheiro deste livro pôde comprar uma casa a cada irmão?
Com este e com outros trabalhos. Se fosse viver só do livro, não teria dinheiro, teria que dar aula. Mas escrevo artigo, faço roteiro de cinema, dou palestra... Livro não dá dinheiro. Só quem vende muito, muito.
A sua mãe não chegou a ver o seu sucesso?
Não. Ela foi feliz enquanto viveu. Conseguiu criar a família dela unida, não perdeu nenhum filho na criminalidade. Viu eu entrar na universidade, viu eu dando aulas, que era um sonho que tinha. Meu pai também viu. Minha família foi feliz. Com muita dificuldade, mas feliz.
Vive agora ao lado de Copacabana, em Santa Teresa. Os seus filhos, que têm 22 e 14 anos, têm uma vida muito diferente da sua. O que significou para si poder dar aos seus filhos uma infância?
É conseguir romper a barreira social. Hoje a minha filha é classe média, se comporta como classe média. Não sabe o que é favela, não conhece essa realidade. O garoto nasceu lá, ainda viveu um tempo lá. A mãe do meu filho e a mãe da minha filha são da favela. Mas a mãe da minha filha é também historiadora, ela se formou. A minha filha é uma burguesinha.
Diz isso com que tom? Com gosto?
Com certeza. É muito bom ver teu filho tendo uma vida digna. Estudando, numa escola boa, comendo bem, sem problemas materiais. Só tem problemas existenciais.
É o luxo da classe média.
É.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003