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Anabela Mota Ribeiro

Paulo Teixeira Pinto (2006)

22.02.15

Esta é a história de um homem que em menino tinha cara de homem. Nasceu em Nova Lisboa, (Huambo), numa África branca e administrativa. As pessoas à volta diziam que tinha ar de adulto. Não se imaginam as suas gargalhadas. Viveu o horror da guerra civil quando tinha 14 anos. Não gosta de recordar esse período nem de olhar para o passado.

É um homem elíptico, misterioso, que usa palavras que já ninguém usa, que se perde nas paisagens surreais de Bosch ou Dalí, que cita Heidegger, Borges ou Alice no País das Maravilhas. “Há uma frase de que gosto especialmente. É quando Alice pergunta se o caminho para onde vai é bom. A resposta é: “Depende para onde queiras ir...”. Ela diz: “Tanto me faz”. “Então, esse caminho serve”.

Os seus caminhos são transparentes, e simultaneamente enigmáticos. Fez o curso de Direito, experimentou a carreira académica, quis ser político, foi secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. O presidente do Millennium BCP é um homem ainda jovem que tem mais cabelos brancos do que há um ano atrás. Nasceu em 1960. É casado, tem dois filhos. Acertámos que a dimensão familiar ficaria excluída da conversa e que a razão disso seria explicitada.

As páginas seguintes resumem horas de conversa divididas em duas partes, na sala contígua ao seu gabinete. É uma sala pomposa. No gabinete tem pinturas maravilhosas de Menez ou Almada Negreiros (o artista português que mais admira). Mas na sala onde estamos há quadros de Malhoa e salvas de prata. Felizmente a conversa situa-se mais no ambiente intimista e depurado da sua sala de trabalho.

Paulo Teixeira Pinto diz sempre aquilo que pode ser escutado. 

 

É bastante surpreendente o seu interesse por autores como Boris Vian. Não encaixa na imagem que temos de si. Podemos começar simbolicamente pelo escritor francês para falar do facto de não coincidirmos com a nossa imagem pública.

O Boris Vian é um dos meus autores nucleares. A sua capacidade de descrever a realidade de um modo (quase) surrealista tem mais pontos de contacto com a realidade positiva do que imaginamos. A ideia que fazemos dos outros é, por definição, limitada. Como alguns antigos diziam: “Definir c’est finir”, definir é limitar as coisas. Ninguém é unidimensional, felizmente. Mas um interesse acaba por ser prevalecente em termos de conhecimento público.

 

As pessoas procuram a coerência? Quando falámos a primeira vez disse-me: “Escrevem e pensam de mim sempre as mesmas coisas: que sou Opus Dei, que sou católico, que sou monárquico”.

E tudo isso também é verdade.

 

Mas tudo isto tem o mesmo som. A surpresa resulta de uma aparente contradição. É mais difícil operar uma síntese de elementos inconciliáveis.

Essa inconciliação só é aparente. As pessoas têm uma dimensão poliédrica, como se fossem um caleidoscópio: podem ser vistas de diferentes perspectivas, cores, movimentos. Em cada momento, somos mais do que nós próprios e a nossa circunstância, apesar do célebre aforismo do Ortega Y Gasset. E entendo que a realidade ôntica é mais importante do que a imagem.

 

O que é que fica? É mais a realidade ôntica ou a imagem que vai sendo construída?

Gosto de pensar que tenho, não vários heterónimos, mas vários homónimos_ se é possível dizer assim. O que fica, se não nos quisermos converter na imagem que os outros têm de nós, seja ela qual for, é a realidade tal como ela é.

 

E qual é? Num dos seus livros escreve: “O que é a verdade?”.

É uma pergunta feita por Pôncio Pilates, na Paixão de Cristo. É uma interpelação fulminante. A verdade existe, objectiva e exterior à interpretação subjectiva de cada um. A realidade é que cada pessoa não pode deixar de ter essa dimensão multifacetada e polissémica. Nalguns casos, a combinação dessa diversidade resulta mais surpreendente, inverosímil.

 

Usa em epígrafe uma frase de Boris Vian: “Não existe a felicidade da humanidade, existe a felicidade de cada homem”.

Conduz, no fundo, a este conceito: não existe a humanidade, existem os homens. Este cuidado de pensar que cada pessoa, cada situação, cada momento, é único e irrepetível é algo que me diz muito.

 

Se quisermos, numa linha, ir à política, à luz do que está a dizer, o comunismo, a diluição do indivíduo no Estado, é qualquer coisa que é para si impensável.

Sim. Interessa-me a prevalência do homem, como sujeito, não apenas o indivíduo. Aprendi em miúdo, com o latim, que cada palavra não tem o seu absoluto sinónimo, porque cada uma nasceu para significar coisas diferentes. O homem é o seu invólucro e é aquilo que habita o seu invólucro. É esta concepção antropológica que está, para mim, na origem de todas as mundivivências. O que está na origem de todos os totalitarismos, não apenas do comunismo, é sempre um ideal transpersonalista, um ideal que supera a própria pessoa com uma realidade.

 

Se transpusermos isto para o âmbito da religião, há na tríade Deus, Filho e Espírito Santo uma relação fusional – não existem individualmente. Se pensarmos numa organização tão estruturada quanto a Opus Dei, existe essa atenção e espaço para se ser individualmente?

Tem que existir. Essa é a razão pela qual acredito que Deus se fez homem.

 

Essa preocupação com o destino do próximo, expressa na frase de Boris Vian, significa cuidar, intervir?

Exactamente. Algumas vezes isto é feito, católicos incluídos, como uma espécie de alforria de consciência – pagar para ter boa consciência. Mandar comida para a Etiópia e para o Biafra são actividades muito úteis e beneméritas, mas não é caridade. A caridade significa sobretudo a partilha dos [tormentos] daqueles que sofrem. Como os que estão na situação mais lastimável da condição humana, que é o desespero.

 

Alguma vez sentiu desespero?

Senti uma vez um medo muito grande de que acontecesse uma tragédia, que para mim seria uma situação de desespero.

 

Pode dizer mais sobre isso?

Publicamente não.

 

A pergunta deveria ter sido feita de outra maneira. Deveria ser: “Alguma vez se sentiu desesperado?”, uma vez que estamos a falar do indivíduo, e não em termos abstractos.

Outra forma de fazer a pergunta é se alguma vez senti que Deus me abandonou. Não. Senti que muitas vezes abandonei Deus.

 

O que é que o fez abandonar Deus?

Sempre que fazemos alguma coisa, no pleno uso da nossa liberdade e da nossa racionalidade (as duas têm que estar ligadas), que seja contrário àquilo em que acreditamos, estamos a desligar-nos de Deus.


Fiquei surpreendida quando li nos seus livros palavras nos quais não o revia. Parece sempre, quer pessoalmente, quer nos livros, entre a formalidade e a ironia.

É outra coisa pouco conhecida em mim, a ironia.

 

A palavra “humilhação” é uma dessas. Não consigo imaginar o que possa significar para si.

Um sinónimo, para mim, de humilhação é revolta, porque uma coisa induz a outra. No mundo em que vivemos formalmente não há castas, mas a verdade é que a sociedade está cada vez mais estratificada. A organização pode ser feita por afinidade social, económica, ideológica…

 

Familiar. Religiosa.
Religiosa, também.

 

Até pela orientação sexual.

O que seja. Há uma espécie de microsistemas de ligações mais complexas. Num mundo assim não pode ser tolerável que subsistam os párias, os excluídos de uma sociedade. A humilhação consiste em dar a uma pessoa um tratamento que não é condigno com o estatuto de pessoa.


Todas as pessoas são “igualmente” pessoas?

Todas. Todos os homens, independentemente do seu percurso de vida, das suas convicções, da sua actuação, não podem deixar de ser tratados como pessoas. Essa é a razão pela qual sempre fui contra a pena de morte. [Mesmo] nos crimes contra a humanidade, nos casos de genocídio. A aplicação da pena de morte é uma humilhação, não só para aquele que é condenado, mas também para aquele que a aplica. É um direito com o qual nenhum de nós nasceu, o de tirar a vida ao outro.

 

No índice de um dos livros encontrei um texto chamado “Paixões Bestiais”, e comecei por esse. Na verdade era sobre bestas...

É uma bênção uma vez na vida viver paixões bestiais, (no sentido de estarem para além do controlo da pessoa). Eu acho que a vida tem que ser vivida até ao limite. O Papa anterior dizia uma coisa de que gostei muito: tinha a eternidade inteira para descansar. Independentemente de se acreditar ou não na eternidade, a vida tem que ser vivida com intensidade. Para mim, uma das formas de intensidade é a velocidade. Claro que tem um reverso que me cria um grande problema, que é o da impaciência.

 

Mas uma coisa são paixões ocasionais, entusiasmos, outra coisa é perder a cabeça. Eu referia-me a estas. Entende-as como bênção e não como ameaça?

Quando deixamos de ser o sujeito titular da relação com as coisas, em vez de possuirmos as coisas, são as coisas que acabam por nos possuir a nós. E podem ser coisas materiais, ou desígnios intelectuais...

 

Ou pessoas.

Ou pessoas. Diria que qualquer situação em que o homem perca o autodomínio, é lastimável. Não estou a dizer condenável, porque isso implica um juízo. É lastimável que alguém que é portador de faculdades como a inteligência, a memória e a vontade perca o controlo sobre si próprio. Vontade é o que nos distingue de todas as coisas e é o que nos torna homens. Quando se perde, de alguma forma perde-se também um pouco da nossa densidade, da nossa dimensão humana.

 

Sendo muito sensível, nomeadamente às artes, fala pouco dos sentidos: do toque, do olfactivo..., de qualquer coisa que é mais animal...

É uma observação acutilante. Tenho uma conexão com a realidade que é muito mais intelectual do que sensorial. E isso leva a dificuldades.

 

Porquê?

Porque [há um desejo] de perceber tudo do ponto de vista da vontade, da intelectualidade, de estabelecer uma verosimilhança lógica. (Gosto muito de lógica). Há um limite a partir do qual não conseguimos perceber a realidade. Por natureza, temos capacidades limitadas, e eu particularmente sinto as minhas.

 

Por que é que o seu modo de acesso à realidade é mais intelectual do que sensorial?

Todos os dons da natureza humana têm que ser educados. Essa é uma das maravilhas da nossa condição: a incapacidade de chegar à perfeição, e a capacidade ilimitada de caminhar em direcção a ela. Mas o caminho que cada um faz para encontrar essa identidade é inato. É quase como criar empatia: num primeiro momento, faz com que um entenda os olhos do outro. O que está por trás desse olhar não resultou de nenhuma educação, foi assim porque foi assim. É essa incerteza que torna as coisas belas. Gosto de acreditar na liberdade do mundo, de não haver coisas pré-determinadas ou destinadas. Sou completamente antifatalista.

 

Não existem, de todo, destinos?

Eu acho que o homem é verdadeiramente livre.

 

Pode ou não ter condições para cumprir o que aponta para si. É o que quer dizer?

Sim. O homem é até livre de não escolher a verdade, mesmo quando ela se lhe apresenta irrefutável e evidente. É uma das maravilhas da liberdade, a escolha.

 

Gosta da palavra resiliência?

Gosto muito. Significa mais do que resistência. O Heiddeger dizia que “a palavra é o palácio do Ser”. Acredito que as palavras não são só sons ou grafias, alguma coisa habita nelas. Essa palavra tem um sentido de vida em que me reconheço.


Ainda os sentidos: nasceu em Angola, uma terra de que se fala de modo muito sensorial. Mitifica-se África com horizontes intermináveis, o cheiro da terra, a presença dos bichos...

Essa ideia romântica de África, que para algumas pessoas terá sido verdadeira, nunca fez parte da minha vida. Nasci numa cidade completamente “europeia”, no sentido em que era uma cidade artificial, criada administrativamente. Tinha um propósito, quando foi fundada, de ser uma espécie de Brasília para Angola. Já li que era a única cidade em África que tinha mais habitantes brancos que negros. A vida que fiz até aos 14 anos, que foi a altura em que vim embora…

 

Veio, com a sua família, depois do 25 de Abril?

Vim já em 1975. Só quando a guerra civil… É um período que prefiro não lembrar. Não é próprio para ninguém, muito menos para pessoas de 14 ou 15 anos, viver num cenário de horror como esse. Mas até aí, a vida que fiz, se se tivesse passado numa outra cidade em Portugal, teria sido igual.


Em que momento teve pela primeira vez consciência de que existia? Lembra-se?

Lembro. A primeira vez que percebi que era “eu” e o que significava “o outro” foi quando nasceu o meu irmão. Não tinha ainda três anos. Tenho bem presente [esta noção]: o outro era a mesma coisa, porque era do mesmo pai e da mesma mãe, mas era outro e não eu.

 

Viveu essa existência do outro como uma ameaça? O medo marca também o território da consciência.

As situações em que senti medo foram aquelas em que os que amo podiam correr algum risco. Felizmente nunca mais tive uma situação de confrontação [como aquela, em África]. No período em que começou a guerra civil, eu nunca tinha ouvido um tiro, nunca tinha visto mortos e feridos … Tudo podia ter acontecido. Recordo-me perfeitamente que, [mesmo no decorrer dos acontecimentos], nunca deixei de fazer o que estava a fazer. Se estava a estudar, continuava a estudar, se estava a ler, continuava a ler.

 

O que isso quer dizer é que não deixa que o medo tome conta de si.

Julgo que isso não depende da vontade. Ninguém decide se pode ou não ter medo.

 

Pode sentir medo, mas não deixa de fazer aquilo que está a fazer; é uma maneira de resistir.

Aí foi um bocadinho da tal resiliência. Muitas vezes é acreditar que não vai acontecer nada, não pode acontecer. Não nasci para isto. Eu não digo que não tenho medo, todos os homens têm medo. O homem que não o diga é porque nunca experimentou ou porque mente. O meu medo é sempre em relação a alguém.

 

É o medo de perder um laço que lhe é essencial, precioso. Ainda menino, lá atrás, era bem-comportado, arrumado, sozinho?

Era uma criança normal e tive uma infância feliz. Não gosto de olhar para o passado. Não guardo coisas a meu respeito, não revisito álbuns de fotografias e de memórias.

 

Se olhar para uma fotografia sua quando era pequenino, reconhece-se no olhar?

O que toda a gente dizia era que eu não tinha cara de menino e tinha cara de homem. Tinha um ar adulto. Daquilo que posso honestamente recordar é que era bom aluno e bem comportado. Tive uma fase de rebeldia, ou pelo menos de alguma irreverência, na transição para a adolescência, que todos os miúdos têm.

 

Tinha algum brinquedo com que gostasse de brincar? (Continuo à procura de surpresas, factos, memórias que não encaixem no que esperamos de si...)

Sempre tive a ideia de que vou acabar por perder todas as coisas que tenho. As coisas materiais. E por isso, gosto de sentir que são minhas, mas que sou eu que as possuo e não elas que me possuem a mim. Essa experiência [em África], de um dia para o outro ter de abdicar das minhas coisas, terá contribuído para a minha formação. Tudo parece ter uma importância macroscópica, diluviana... E depois, ao nosso lado, há dramas verdadeiramente sérios. Percebemos quanta sorte temos, apesar de todas as desventuras. Tenho muita sorte na vida. Já tive mais do que mereço, tenho isso perfeitamente claro.

 

Continuava a ler, a estudar, apesar do horror que passava à sua volta. Dizia: “Não nasci para isto, não nasci para ter uma vida interrompida aos 14 anos”. Imaginava que tinha nascido para quê?

Desde os seis anos que dizia que ia estudar Direito. Houve uma altura, antes de entrar para a universidade, em que pensei que, se calhar, do que gostava mais era de Filosofia. Mas se tirasse Filosofia não tinha opções na vida. Foi a única vez que problematizei a escolha. Tirei Direito, mas nunca me imaginei advogado ou juiz. Achava que ia ser político.

 

As três experiências essenciais da sua vida são a académica, a política e a financeira. A primeira, apesar de expressiva no currículo, não foi tão impactante em termos de reconhecimento público.

Interrompi a carreira, não ganhei notoriedade. Não foi aí que atingi alguma posição de mais responsabilidade. Acredito num provérbio árabe que diz que aquilo que merece ser feito, tem de ser bem feito. Tive um professor, de quem fui assistente, que me disse que eu abraçava cada função como se fosse a minha vocação natural.

 

Não fazer as coisas contrariado é diferente de inclinação natural, daquilo a que vulgarmente se chama talento.

Faço as coisas com brio. Mas, de todas, aquela que me criava mais empolgamento era dar aulas. O que é paradoxal ou contraditório com o facto de ter feito o curso sem assistir às aulas. Optei por estudar por mim.

 

Trabalhava?

Não. Dedicava-me a outras coisas, lia outras coisas, que achava mais interessantes do que o Direito. Antes dos exames estudava o que tinha que estudar e acabei a licenciatura em termos que me permitiram entrar para docente da Faculdade.

 

Na faculdade, podia destacar-se? É uma coisa fundamental para si, a notoriedade? Não me refiro ao ocupar cargos de destaque, mas a uma distinção, pelo brio e inteligência.

Nunca pensei nisso como um objectivo ou uma necessidade. Se há função que está na sombra, hoje em dia, é a vida universitária. Um especialista em Direito Comercial ou Direito Administrativo pode ganhar muito dinheiro, como consultor, como profissional liberal. Não é o caso de alguém que se põe a estudar o século XVI, como eu estava. Estudava o governo de Portugal durante o tempo dos Filipes. Supostamente ia ser a minha tese de doutoramento. Acabei por não entregar porque fui para o governo… Até me custa a dizer isto: há 15 anos.

 

Gostava de introduzir o tema da confiança. Quando se tem muito a perder, confia-se mais dificilmente. Em quem é que confia? O que teria a perder se a confiança que depositou em alguém fosse traída?

A confiança é o activo mais valioso que temos. Não se traduz numa realidade contabilística ou algébrica, mas é um valor fundamental. A confiança e a reputação. Considero-me repleto de defeitos, mas com algum dote para avaliar a natureza humana. Prefiro sempre errar por ter confiado, e um dia perceber que alguém não mereceu essa confiança, do que o contrário, ter desconfiado de alguém que provava merecer essa confiança.

 

Não é desconfiado?

Não. Tenho uma visão de algum cepticismo sobre a natureza humana, que é outra coisa. Não acredito que o homem seja naturalmente bom. Acho, ao contrário, que o homem é naturalmente mau. E é através da educação que pode adquirir valores como a disciplina, a convicção, fazer-se melhor.


Essa “maldade” congénita pode emergir em momentos menos controlados, menos educados, onde se impõe aquilo que é do domínio da sobrevivência?

É preciso ter uma disciplina interior forte para que não sejam os instintos a predominar sobre o intelecto. A confiança: seria incapaz de colaborar com alguém em quem não confiasse. Não me passa pela cabeça pôr em dúvida a palavra ou a bondade com que decidem os que estão perto de mim. Não fecho gavetas à chave, não tranco portas.


Está a dizer isso no sentido metafórico ou literal?

Literal.

 

Não tem medo de estar sob escuta?

Nenhum. Digo sempre aquilo que pode ser escutado. Aquilo que digo ao telefone pode ser escutado por qualquer pessoa, embora só interesse, em princípio, à pessoa com quem estou a conversar.

 

Mesmo que só se diga alto o que pode ser escutado por todos, quando se tem muito a perder, tudo é medido...

Eu distingo a confiança da prudência. Nunca faço a prova diabólica, que é obrigar os outros a provar o que estão a dizer. Dou por adquirido aquilo que me é dito como sendo a verdade.

 

O que é que tem a perder? O que é mais precioso para si?

Quando acreditamos em nós próprios, nunca temos nada a perder. Perder os bens materiais: isso já vivi na adolescência, e não é determinante para a formação ou para a felicidade de alguém. De todas as coisas que estão dentro do coração, a esperança é a coisa mais terrível que se pode perder. Aquilo que está ínsito no coração de todos os homens, mesmo naqueles que não o sabem e não reconhecem, é a demanda da felicidade.

 

Tenho uma palavra do calibre do seu “ínsito”, que é “ínvios”! Mesmo que sejam ínvios os caminhos por onde se procura a felicidade.

O caminho para a felicidade de cada homem é seguramente diferente de todos os outros. Eu não sei o que é um caminho ínvio, pode é ser um caminho de engano.

 

Eu não estava a pensar em caminhos imorais. Estava a pensar no erro que é próprio da procura. Até se encontrar.

E muitas vezes, não se acha toda a vida. Sendo aquilo que é mais comum a todos os homens, devem ser muito poucos aqueles que reconhecem que têm a felicidade. Nesse aspecto, considero-me raro.

 

Porquê?

Nunca me considerei infeliz.

 

Sente-se mais feliz hoje do que há dez anos, do que há 20 anos?

Não sei o que é que sentia há dez anos. Sei que me senti sempre bem na minha pele. Não tenho aquilo a que se chama a mística do “oxalá”. “Se eu tivesse feito, se eu fosse”. É uma forma de utopia, inviável, seria uma reescrita da história. É evidente que tive momentos de tristeza. Mas a tristeza circunstancial não é o estado de infelicidade permanente.


A dilaceração em que muitas vezes nos achamos, quando, perante uma bifurcação, não sabemos que caminho tomar, não é um tema nuclear na sua vida?

A vida é um acto permanente de escolhas, mesmo por omissão. Tal como no xadrez, não podemos evitar que os adversários joguem. Temos sempre que fazer uma escolha, mesmo que seja não mexer numa pedra. E não é possível querer uma coisa e não querer os efeitos decorrentes dessa opção.

 

Podemos é não estar completamente conscientes dos efeitos e dos resultados dessa escolha.

Normalmente não estamos. Às vezes temos a sensação de que é a vida que escolhe por nós e não nós que escolhemos a vida. Já me aconteceu algumas vezes ter mudado de vida por circunstâncias que não derivaram do meu impulso. Podem ter derivado da minha aceitação, mas não da minha opção. Quando fui para o governo, por exemplo, ou quando passei a ter estas funções no banco. Não era algo que pudesse procurar.

 

Foi uma surpresa quando o convidaram para este cargo?
Absoluta. Recordo-me que foi ao final da manhã, mas não me recordo do dia. Fiquei espantado... Foi muito simples: não pedi períodos de reflexão, disse apenas isto: “Confio em quem confia em mim”. Se as pessoas que tiveram maior responsabilidade na construção desta instituição, e que são as mais habilitadas a decidir o que é melhor para o futuro da instituição, consideram que eu protagonizo essa solução, confio em quem confia em mim.

 

Não se interrogou por que é que foi o escolhido?

Não. Isso implicaria fazer um juízo comparativo com outros que poderiam ter sido escolhidos.

 

Por que é que não queria fazer esse juízo comparativo? Por ser infrutífero? De qualquer modo, tinha sido o escolhido.

Muitas vezes as coisas são mais simples do que possam parecer. Tal como me foram apresentadas, sei que isto não resultou de uma reflexão de véspera. Embora tenha sido uma surpresa, a única forma de merecer essa confiança era dizer que acreditava nela.

 

Isso ao mesmo tempo dá-lhe segurança para o exercício diário das suas funções.

Há cargos que não podem ser exercidos por pessoas inseguras. Não tenho a pretensão de decidir tudo bem, mas tenho a pretensão, firme e segura, de decidir sempre que tiver que decidir, e decidir com toda a liberdade e confiança. Será dificil acertar sempre, mas isso não me inibe de decidir.

 

Gosta desse exercício da decisão? A sua voz ganhou uma tonalidade diferente agora que falou disso.

Gerir é sobretudo decidir, é fixar uma missão, definir os meios e decidir os momentos. E fazê-lo com toda a confiança e esperança. Uma das regras instituídas nesta casa é que só o melhor é suficiente, e não admite medidas e comparações com outra coisa que não seja melhor. Medirmo-nos e superarmo-nos é uma forma de respeito para com aqueles a quem servimos.

 

Pode dizer quem foi o seu interlocutor, quem foi a pessoa que o convidou?

Foi o Presidente do Conselho Superior, que é o órgão onde têm assento os accionistas mais relevantes do banco.

 

E nesse dia, horas depois desse convite, em que é que pensou?

Não podia partilhá-lo com ninguém até ser público. A minha mulher foi a única pessoa que soube durante alguns dias. Comecei a pensar, desde o primeiro momento, como é que deveria exercer o cargo, e qual a melhor maneira de servir o banco.

 

É profundamente católico, mas não usa expressões como “Se Deus me ajudar”, nem cita os salmos…

Não.

 

É como se o seu rigoroso catolicismo fosse uma coisa discreta.

É uma dimensão interior, que nunca neguei mas que não tenho que exibir. Transformar a realidade está nas nossas mãos. Somos livres, e devemos, ao abrigo deste livre arbítrio, procurar o nosso caminho. Qualquer que seja a importância na hierarquia social, o resultado da liberdade de todos nós é a transformação de pedras em pão.

 

Pensa muito na morte?

Penso. Não sou mórbido, tenho muita alegria na vida, mas é a única coisa certa que temos. Todos vivemos com uma espécie de convicção íntima de eternidade. A morte é uma coisa que acontece aos outros, agimos em cada momento como isso não fosse connosco.

 

Ou é, simplesmente, a maneira de tornar os dias mais habitáveis... Se nos centramos na ideia da inexorabilidade da morte, isto fica invivível…

Precisamente. De todas as formas de morte, aquela que mais me sensibiliza é a dos suicidas. Porque é o contrário da esperança. Apesar da qualificação teológica, porque é um atentado contra a vida, não consigo emitir qualquer juízo de culpabilidade sobre quem está nessa situação. Pelo contrário.

Seria pretensão ou ilusão elevada a um grau exponencial pensar que só a bondade habita em mim. Todos temos momentos de erro. Uma coisa é a nossa fragilidade interior, outra coisa é o Mal que se pretende repercutir noutros e que tem muitas consequências e emanações. De todos os chamados defeitos capitais, há um a que me julgo imune: o da inveja.

 

Por que é que não inveja? Significa que tem tudo aquilo que quer?

Não, basicamente tem a ver com o ponto de me reconhecer na minha fragilidade, feliz com a maneira como vivo, como sou. E dentro de mim não habita só o meu eu. Habita, eu acredito, uma realidade que me transcende.

 

Mas quais fragilidades? Quais são as suas fragilidades?

Aquela que é para mim mais visível é a impaciência. Outra é ter dificuldade em partilhar em público aquilo que são os meus defeitos, ou o que possam ser os meus atributos. Procuro conhecer-me a mim mesmo, como um mapa interior de que conheça todos os locais.

 

Há uma parte de si que é muito silenciosa, não sei se muito solitária. É nesses campos que habitam os seus lados lunares?
Sempre gostei da descrição, e isso não tem a ver nem com segredo. Tem a ver com uma idiossincrasia, com uma preferência natural em não ser o centro da atenção. O silêncio, sim, é algo que me atrai. Há coisas que só se podem ouvir no silêncio. Perante as pessoas que me rodeiam, penso que sou transparente. Embora algumas vezes se diga que sou enigmático. Num dos livros de curso um colega retrata-me como sendo enigmático.

 

Na primeira sessão desta entrevista, há cerca de duas semanas, falámos avulsamente de coisas improváveis como gostar do Futebol Clube do Porto, de banda desenhada ou dos Surrealistas. Tudo isso contrasta com a imagem unívoca que temos de si. Não permite que esses elementos expludam, porque há uma ideia de coerência a que não pode fugir?

É um ângulo interessante... Nenhum homem é unidimensional. Embora alguns sejam mais uniformes e outros tenham faces esculpidas em dimensões diferentes. Se fôssemos um sólido, uns seriam mais quadrados, outros mais esféricos. Eu seria certamente uma pedra com muitos lados irregulares.

 

Desde que assumiu a presidência do banco a sua expressão corporal rigidificou-se. Claro que tem mais cabelos brancos do que tinha há uns anos...

Mais do que tinha há um ano. No outro dia vi gravações de declarações que fiz há um ano e meio e eu próprio fiquei admirado!

 

Achou que tinha de se formalizar?

Não, de todo. Aliás, procedo exactamente da mesma maneira com todas as pessoas que trabalham comigo e todas me tratam exactamente como me tratavam antes. Houve, por absurdo, quem me perguntasse como é que me passava a tratar... Se tivéssemos tido esta conversa há dois anos veria que era da mesma maneira.

 

Dá gargalhadas? Nunca o ouvi dar uma gargalhada, só pequenos risos.

Isso é muito raro, de facto. Normalmente é o absurdo, ou o irónico, ou o subtil, que me desperta humor, e não o óbvio. Os chamados filmes cómicos não são coisa que aprecie.

 

Se vê ”O Pecado Mora ao Lado”, com a Marilyn, não me diga que não ri à gargalhada... Ou o “Quanto Mais Quente Melhor”, ambos do Billy Wilder.

Gosto muito do humor inglês, que é diferente do humor grosseiro, das piadas. Mas reconheço que mesmo a rir a minha forma é contida.

 

Tem ambições políticas?

Nem poucas nem muitas. Decidi, quando aceitei este cargo, que era algo que ficava definitivamente sepultado na minha história.

 

O que é que isso quer dizer? Que vai ficar na banca até aos 62 ou 63 anos?

Não penso estar toda a vida no banco. Há cargos que pela sua natureza não devem ser exercidos eternamente. Se há quem se sinta anestesiado pela tentação da eternidade, são os titulares do poder. Acrescido de um outro problema: uma necessidade quase doentia de serem amados. Qualquer político precisa que gostem de si.


Qualquer pessoa.

Sim. A diferença é que os que não são políticos gostam que os outros, que têm nome e rosto, gostem de si. Um político gosta que a massa goste de si. Uma reflexão que os titulares do poder político deviam fazer é que cada dia que passa é menos um que falta para sair.

 

Está sempre pronto para sair?

Exactamente. No subconsciente dos decisores, muitas vezes está o contrário – é mais um dia em que se exerceu o poder. Todos vão ter que sair. Se alguém entrar para o exercício do poder político contando os dias ao contrário, tem uma humildade maior, e tem um sentido de urgência e de gestão diferente.

 

E isso aplica-se ao seu modo de estar no banco?

Também é o que está na minha empresa. Nunca neguei que sempre tive um gosto político, mas esta função é incompatível com qualquer grau de intervenção, directo ou indirecto, na vida política. E quando estou a dizer política, não é só partidária. Não creio que seja provável, para não dizer que considero impossível, voltar à vida política.

 

Falhou a possibilidade de compra do banco da Roménia. O sucesso da OPA sobre o BPI é uma incógnita. A possibilidade de isto não correr bem é uma coisa que o inquieta?

Não, nada. Nesta ponderação não existe o medo. Estou obrigado a correr riscos com sensatez, equilíbrio, mas a fazer tudo quanto estiver ao meu alcance para criar valor para o banco. Na Roménia poderíamos ter ganho. Seria fácil para mim invocar a glória de ter tido sucesso numa grande operação de privatização, comprando o maior banco de um país terceiro. Mas isso não era valor para os accionistas do Millenium BCP.

 

Como assim?

Para ganhar, teria que oferecer um preço maior do que aquele que oferecemos. E oferecemos o máximo do que achámos que podíamos oferecer. Pus condições: o aumento de capital não podia ultrapassar determinado limite, e não precisaríamos de mais de três anos para gerar um valor adicional àquele que era oferecido. Poderíamos ter comprado o BCR ultrapassando uma destas regras, mas tínhamos um compromisso e os compromissos são para se manter.

 

Em relação à OPA...

A mesma coisa: se fosse fácil, já estava feito. Se fosse fácil comprar o BPI, já outros tinham comprado. Se eu pensasse exclusivamente na protecção da minha imagem, como se estivesse a fazer uma carreira, não tomaria decisões tão…

 

Arriscadas?

Não só arriscadas, mas de impacto tão grande. E de sucesso incerto. Deixaria passar uns anos, calmamente, deixaria as ondas correrem por si. Mas não é a minha forma de agir. Desde o primeiro momento que penso que tenho que aplicar todos os recursos disponíveis, todo o entusiasmo. Uma das funções principais de uma liderança é transmitir ânimo aos outros, empenho num projecto, sentindo que o tempo corre contra nós, que a realidade não é estática.

 

Que projecto é o seu, essencialmente?

Aquilo que temos em mente é constituir um banco, que, sendo de origem portuguesa, cada vez será menos português para ser cada vez mais internacional. E que tem a ambição de protagonizar alguma coisa de mais relevante, de se medir com maiores e melhores fora da paróquia.

 

E se corre mal?

Se corre mal, os outros julgarão. Não posso ter medo. Eu acredito, sou optimista. Neste caso, não é uma questão de optimismo, é uma questão de racionalidade e confiança. O meu critério é simples: o que pode ser feito, tem que ser feito. Isto também significa que o que pode ser tentado tem que ser tentado. Procurar a excelência significa também tomar as decisões correctas, mesmo que de sucesso incerto.

 

Acordámos que não falaríamos da sua família. Gostava de perguntar se a entrevista resultaria muito diferente se tivéssemos abordado o lado familiar.

O meu eu é sempre o mesmo. Tenho hoje uma exposição pública que não posso evitar. Mas posso tentar proteger uma reserva de vida íntima que abrange os que estão comigo: os meus pais, o meu irmão, os meus filhos, a minha mulher. Prezo muito a minha família, vivo muito o espírito de família, o que faz com que nunca tenha quebrado isto.

 

Muitas vezes, as chaves de um indivíduo estão nesse reduto mais íntimo, mais familiar, ou que diz respeito à infância.

Mas não, no meu entendimento não. Não teria alterado aquilo que eu disse.


Diz-se que vai todos os dias à missa, que é um católico fervoroso, que leva a sua mulher todos os dias ao trabalho. Há nisto um lado folclórico, em que gostamos de acreditar quando o outro é enigmático. Procuramos aí uma espessura mais humana, e acessível.

Não sou inacessível. Espero ter a lucidez suficiente para não permitir qualquer tipo de culto de personalidade. Revelei há anos que sou membro da Opus Dei. Quando as pessoas exercem cargos públicos não devem manter reservados factos que possam permitir aos outros mudar de juízo a seu respeito. É claro que nunca ninguém me perguntou se eu era da Sociedade de História, de Geografia, do Círculo Eça de Queirós…

 

Isso não tem o mesmo protagonismo nem o mesmo poder, como é óbvio. E é de poder que se trata.

Não, não. Não há poder nenhum na Opus Dei.

 

Não?!

Nenhum. Nunca recebi, nem toleraria receber, qualquer ordem ou instrução temporal, ou sugestão, sequer. E também nunca a daria a ninguém. Tem exclusivamente a ver com uma forma de viver a vocação cristã.

 

Está a dizer que é mítica a ideia de poder (esmagador) da Opus Dei?

Absolutamente mítica. Sem qualquer aderência à realidade.

 

Se o senhor não fosse Opus Dei, católico cumpridor, duvido que estivesse no lugar onde hoje está.

Tenho que pensar que estaria. Que me escolheram por quaisquer outros critérios que não esses. O ser Opus Dei não pode ser ouvido, nem relevante, em nenhuma decisão da vida profissional das pessoas. Como não foi parte no processo de candidatura para assistente, ou quando fui convidado para membro do governo. Se neste caso concreto fui escolhido, foi por factores que tiveram a ver com a minha personalidade e com a minha capacidade profissional, não por qualquer outra razão do destino.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2006