Pedro Norton de Matos
Um dia, ele percebeu que “há vida para além dos indicadores económico-financeiros”. Um dia, ele ouviu um amigo que lhe disse: “A pessoa já não quer ser o que não é, quer ser ela própria”.
O catalisador foi um enfarte. Um acontecimento trágico que ele descreve como uma sorte, um sinal, uma oportunidade.
Pedro Norton de Matos foi um executivo daqueles que fazem tudo aquilo que não se deve fazer ao corpo. Mesmo que, desde sempre, estivesse o desporto. “É um excelente palco para desenvolver a capacidade de dar espaço aos outros, para nos valorizar e enriquecer a nós”. O que é que o futebol tem a ver com a personalidade, com o modo como nos posicionamos profissionalmente? O que é que um defesa faz na presidência da ONI?
Pratica desporto, portanto. Vê pássaros. “Não é preciso viajar para ver pássaros. Também não tenho no agregado familiar a mesma paixão, não quero impingir circuitos para bird watchers. Se lhe disser que há muito mais de 20 espécies em Lisboa, isto surpreende quem pensa que a maior parte dos pássaros são pardais, pombos ou gaivotas”.
Conversar com Pedro Norton de Matos é perguntar de raiz: o que pretendemos, afinal?, ter sucesso ou ser felizes? E é tremendo pensar que muitas vezes os termos são antagónicos, incompatíveis, paradoxais.
Tem a simpatia (genuína) e a disponibilidade de quem está de bem com a vida. Tem qualquer coisa de homem que podia aparecer num anúncio zen (e isto é um elogio). A conversa podia soar fiada não fosse ele acreditar (e praticar) aquilo que diz, preconizar um modelo holístico que se explicita adiante, e fazê-lo consistentemente. Em pano de fundo à nossa conversa, pouco depois das nove da manhã, estava o Tejo, o barulho de quintais de Lisboa e um quadro maravilhoso de José Pedro Croft.
Porque é que um homem que cita Aquilino, na frase “aldeia, terra, gente e bichos”, andou tantos anos afastado disto?
Cito com muita convicção, mas não andei afastado. As minhas memórias de infância são muito ligadas à ruralidade. Quando encontrei Aquilino Ribeiro na adolescência, comecei por Quando os Lobos Uivam. Entusiasmei-me, e nos dois anos seguintes creio que li a obra toda. Estava deslumbrado com a escrita, com o retrato de regiões que conheço bem. Cito-o porque os meus referenciais maiores estão na terra, nas pessoas e na natureza, bichos, fauna. Só acrescentaria hoje o aspecto da flora.
Quando o provoco dizendo que andou tanto tempo afastado disto, é porque tenho a ideia que tudo na sua vida mudou depois da camoeca que lhe deu em 2005. Como se o seu enfarte o tivesse acordado para a harmonia e um outro estilo de vida, do qual parecia estar desligado.
Depois de acabar a minha formação em gestão de empresas, a minha vida profissional fez-se na área das tecnologias de ponta, informática e telecomunicações. As TIC, Tecnologias de Informação e Comunicação, são áreas que por definição têm um ritmo de evolução alucinante (quando um produto sai já há outro na linha de partida). Esta intensidade fez com que procurasse equilibrar esse lado com o lado dos valores associados à ruralidade e seus modos de vida – que nunca deixei.
As memórias de infância, de uma infância muito feliz, têm muito a ver com casas de campo, quintas de família. Aqui volta o Aquilino: do lado materno ligado à zona da Beira Alta, de Mangualde; e do lado paterno ligado a Ponte de Lima. Não terei falhado um único ano nas férias de Verão, em Setembro ia para Ponte de Lima. A oito quilómetros, não havia electricidade. Tenho o cheiro dos candeeiros a petróleo, muito antes dos primeiros geradores.
A relação com a terra é, então, por via da família.
Estivemos em África, em Moçambique. Não tenho memórias vivas, só de ver álbuns de recordação e de histórias. Tinha uns meses quando fui para lá e vivi lá um ano. O meu pai é agrónomo, estava num grande projecto agrícola no Vale do Limpopo. A minha mãe, um dos grandes receios que tinha era que naquele contacto com a natureza (mexia em tudo o que era sítio) me magoasse. Quando se discute o que é inato e o que é adquirido…, numa família de sete irmãos, sou o mais ligado à terra.
Mas não estudou agronomia.
Além de uma grande alegria de viver, tenho um conjunto de interesses alargado. Poderia ser agrónomo, veterinário, biólogo, psicólogo… A minha mãe encontrou numas arrumações relatórios da pré-primária que fazem a descrição da minha evolução enquanto criança. Uma vez mais falam no subir às árvores, nos bichos nos bolsos. Acabei por apanhar o ritmo da natureza. Uma das coisas que sinto, e que está ligada a projectos de sustentabilidade, tem a ver com o facto de nos afastarmos e contrariarmos os ritmos da natureza. Aprendi muito ao ritmo das estações, ao ritmo do nascer e morrer.
A respeitar ciclos?
A valorizar os diferentes ciclos e a enquadrá-los dentro deste ritmo sábio da natureza.
Os ritmos alucinantes, vertiginosos do trabalho são altamente desrespeitadores de tudo.
E símbolo disso: a fugacidade das coisas, o usar e o deitar fora.
Depois do enfarte, é verdade que tudo mudou na sua vida. Há um ritmo de vida que é diferente, há objectivos de vida que são diferentes. Esse lado sempre existiu, mas não tinha a mesma força na sua vida quotidiana.
Sem dúvida. Conseguia ir buscar este equilíbrio nos fins-de-semana, nas férias, em alguns hobbies, mas era sempre aquém da vontade e do tempo que gostaria de dedicar a isso. Quando tenho o meu episódio de saúde, no fundo sinto-me um privilegiado. Tenho sorte de ter tido esse aviso…
É extraordinário o que acaba de dizer. Tinha 50 anos?
Estava a um mês de fazer 50 anos. Digo que foi uma sorte enorme porque, não só não deixou sequelas, como serviu de aviso. Permitiu estabelecer outras prioridades. É certo que coincidia com uma vontade de mudança. Hoje em dia, já mais distanciado, percebo que estava dentro de uma máquina, de um rolo compressor. Falo muito, até em termos profissionais, com executivos das mais variadas áreas e idades; revejo-me em pessoas que estão dentro da máquina e que terão alguma dificuldade em distanciar-se o suficiente para se poderem observar dentro desse rolo.
É o que sente nas sessões de coaching (uma das coisas de que se ocupa), que as pessoas estão dentro desse rolo? E que não sabem muito bem como sair dele e ganhar distância em relação a outras dimensões da sua vida?
Há um desafio enorme. No limite cada um de nós quer ser feliz, quer ter um equilíbrio entre a sua vida pessoal e profissional, entre a sua parte física, mental e espiritual, numa perspectiva mais completa, mais holística.
Acha que é mesmo isso que as pessoas querem?
Acho. Podem é querê-lo de formas diferentes. Não há uma forma universal, o elixir da felicidade, uma receita que se vá aviar à farmácia. Há pessoas que encontram no materialismo a satisfação.
Justamente neste meio, parece que as pessoas estão focadas no sucesso, em alguns sinais que são sintomáticos desse reconhecimento social. E isso parece ter uma primazia absoluta sobre outros planos da vida. Significa que para essas pessoas a ideia de ser feliz corresponde ao sucesso?
Sim. As diferentes filosofias e civilizações procuram diferentes fórmulas. O próprio sucesso é entendido de formas diferentes. Se pensássemos que no bem-estar material havia uma relação de causa/efeito, então chegaríamos à conclusão de que na civilização ocidental, em termos de PIB per capita e outros macro-indicadores económico-financeiros, tínhamos pessoas mais felizes.
E depois temos a Suécia, com a sua taxa de suicídios elevada, para nos mostrar como tudo isso está errado.
Esse pode ser um indicador, mas há muitos outros, como o consumo de anti-depressivos. O Sarkozy agarrou um bocadinho nesta perspectiva: os índices de evolução não podem ser meramente económicos. Há vida para além dos indicadores económico-financeiros. Um autor francês, [Gilles] Lipovetsky, num livro notável, A Felicidade Paradoxal – Ensaio Sobre a Sociedade de Hiper-consumo, analisa este paradoxo da felicidade, aquilo a que ele chama o homo consumericus. O homo consumericus, de consumo em consumo, vai procurando a satisfação, mas tornando-se paradoxalmente mais insatisfeito. Muitos dos valores vigentes nesta sociedade, o tal estereótipo do sucesso, a competitividade em que as coisas acontecem, não parecem estar a conduzir o homem a uma situação mais feliz.
O enfarte despertou-o, foi um sinal para o fazer sentir que estar dentro desse rolo compressor não o fazia feliz.
Mas com contradições, e assumo essas contradições. Sinto-me também uma pessoa de desafios. A maior parte das coisas que fiz nessa fase de vida mais intensa, foram coisas que, do ponto de vista profissional, me deram gozo, muitas delas gratificantes em termos de aprendizagem.
Nesses anos o que é que perseguia?, ser um ganhador?
As coisas foram acontecendo, mas à medida que vão acontecendo quase nos perguntamos: “so what?”. No meu caso aconteceram com naturalidade, com a energia e com a ambição que coloquei nelas, com o brio profissional de não ser uma pessoa que faz as coisas a meio termo. Houve sempre essa determinação, não como objectivo último, mas sim num caminho que se faz caminhando. E à medida que as coisas iam acontecendo, eu próprio perguntava-me: “O que é que têm de diferente?”. Porque também percebia o quão efémero são os aspectos associados ao poder. Fui colocando as coisas em perspectiva.
Depois de conseguir, perguntava-se “so what?”. Mas até conquistar, não tinha a atitude do diletante que não se propõe conquistar.
Sinto que na minha essência não mudei, não me tornei diferente, nomeadamente nas relações inter-pessoais. Nas alturas de maior protagonismo, de maior poder profissional.
Mas houve uma determinação por trás disso, não se chega a número um da ONI por acaso.
Sempre houve essa energia positiva. Caracterizando-me, sou uma pessoa de ver o copo meio cheio. A certa altura, na minha carreira na Unisys, estava responsável pela Europa do sul. Fui convidado para ser o representante europeu do grupo de trabalho a reportar directamente ao presidente da corporação. Foram escolhidas dez pessoas a nível mundial para esse grupo de trabalho. Eram funções de muito contacto com o mercado, com os clientes, fomos convidados para desenhar o novo modelo go to market. Acabou por ser o meu último ano de Unisys, estava com esse posto internacional, vivia em Madrid. Estava numa multinacional a olhar para o mundo todo, a olhar para 100 países, e não só para o nosso mercado mais limitado.
E era um dos dez, o que também faz bem ao ego.
Exactamente, e era o representante europeu. Mas foi muito desgastante do ponto de vista físico e até familiar. Esse grupo de trabalho encontrava-se nos Estados Unidos à segunda, terça e quarta. Viajava ao domingo para os Estados Unidos, voltava na quarta à noite, chegava à Europa na quinta de manhã, e voltava no domingo. Estava quinta e sexta em trabalho na Europa do sul, e estaria com a família no sábado. Isto durou quatro meses, com os intervalos em que a família foi a Nova Iorque. Às vezes, a meio da noite, não sabia onde é que estava, se num quarto de hotel se na minha casa.
Com a conclusão desse trabalho, sou convidado para ir viver para a Florida e ficar responsável de todas as operações da América Latina e Caraíbas, com sede em Boca Raton, perto de Miami. Seria mais um degrau na carreira. E recusei.
Recusou cheio de dúvidas?
Recusei convictamente. Com o argumento, verdadeiro, da família. Seria disruptivo. Isto para dizer que a minha ambição é de fazer as coisas bem, gostar do que se está a fazer.
Mas não estava disposto a pagar a factura que, nomeadamente, pusesse em causa a sua estabilidade familiar.
Volto à questão dos equilíbrios.
Isso foi quanto tempo antes?
Cinco anos antes. Depois fui convidado para o projecto da ONI, que me atraiu desde logo por várias razões, entre elas a base ser em Portugal. Foram seis anos muito intensos, cinco anos como primeiro executivo; depois do meu acidente de saúde fiquei mais um ano mas em funções não-executivas. Foi já um ano sabático, de transição, no meu íntimo já tinha muitas decisões tomadas. Na cama do hospital, nos cuidados intensivos, prometi à minha mulher e às minhas filhas que ia mudar de vida.
Costumam ser promessas vãs. Conheço poucas pessoas que verdadeiramente tenham mudado de vida, mesmo depois de um acidente com essa gravidade, e com a sua idade. Factor não despiciente: é um homem muito novo.
Já me debatia com estas contradições de que falava. Por um lado, o gosto de fazer coisas aliciantes, por outro lado, o custo a pagar em termos de menor disponibilidade para os outros interesses da vida. Nisso o organismo muitas vezes é sábio, dá-nos os sinais, mas não os queremos entender. Tenho um tipo de personalidade mais susceptível de poder ter acidentes cardiovasculares.
Como assim?
É uma energia de ir aos desafios, de ir à luta, de alguma impaciência, intolerância com a mediocridade, coisas desse género. Perfis mais desgastantes do ponto de vista metabólico. Stress. E aqui voltamos ao ritmo da natureza. Perante as ameaças, enfrentamos ou recuamos e fugimos – esse é um bocadinho o nosso ADN de evolução biológica. No mundo moderno (está também estudado), quando passa os limites, e sinto que tinha passado limites, acaba por ser um stress crónico.
Tinha perfeita noção disso?
Era das pessoas que pensavam que tinham o stress controlado, habituadas a viver com o stress. Mas o organismo disse que não.
Quando jogava futebol, jogava em que posição? Para ver se tem alguma relação com isto de que estamos a falar. Não era um defesa…
Era médio. Hoje em dia, no futebol moderno, todos atacam e todos defendem; naquela altura o médio era a transição entre a defesa e o ataque, era o estar no campo todo. Gostei muito das funções de médio. Mais tarde, no futebol amador, fui recuando para defesa central. Mas um defesa central com características muito atacantes. Ter uma visão de helicóptero do campo, ter uma visão periférica do campo, com a possibilidade de também atacar.
Podemos extrair daqui alguma ilação acerca do seu modo de estar? O seu modo de estar profissionalmente, de olhar para as situações, de se relacionar com outros.
Os desportos de equipa, e gostei em particular do futebol, foi sempre uma paixão. E até uma paixão familiar; o meu irmão mais velho teve bastante protagonismo no futebol profissional [Luís Norton de Matos]. Fomos muito incentivados pelo meu pai, que também tinha sido praticante – “mente sã em corpo são”. Vi no desporto uma escola de virtudes. É algo que não aprendemos na escola, é mais a escola da vida. Como aprender a saber ganhar, a saber perder, a gerir e a controlar emoções, a vivê-las. A questão da solidariedade, do espírito de equipa, o colocar o interesse colectivo acima do interesse individual. E como é que, sobre pressão, nos comportamos.
Se há grace under pressure…
Ando a trabalhar estes temas. Naquele ano sabático, dentro dos meus múltiplos interesses acabei por ter de me centrar em dois, que acabaram por resultar na criação de empresas. Quis criar empresas-boutique. Não quero dimensão, quero foco, flexibilidade, pragmatismo. Escolhi as pessoas, capital humano, explorando caminhos como o da inteligência emocional, social, e também a área da saúde, do bem-estar e da sustentabilidade.
Cresceu numa família de sete irmãos. Os vossos pais educaram-vos para em campo serem o Cristiano Ronaldo? Não sei qual é que era o jogador que na altura vos inspirava.
Fui juvenil e júnior do Benfica. O Eusébio, de quem fiquei amigo, era sénior no Benfica, e em alguns treinos os miúdos treinavam com os graúdos. O Eusébio e outros craques constituíam referências. Na primária ou na pré-primária já estávamos no Ginásio Clube Português, experimentámos o râguebi, tivemos aulas de boxe (mais pela preparação física e mental, nunca praticámos). Estava no colégio São João de Brito, de jesuítas, e os meus irmãos também; evidenciámo-nos pelo jeito no futebol. O meu irmão mais velho e eu fazemos uma diferença de 14 meses, crescemos muito juntos. Fomos convidados para ir para o Estoril, para os juvenis, depois para o Benfica. O meu pai, contrariamente aos pais dos nossos amigos, tinha uma perspectiva muito aberta.
Sobretudo no vosso quadro social, o futebol não era uma opção seriamente considerada.
Era quase obrigatório ter boas notas para poder continuar a fazer o que nos apaixonava. O meu irmão acabou por fazer o INEF, Educação Física, foi estudar para Coimbra e jogar na Académica. Eu estava nos juniores, já no segundo ano de Económicas. Não fui jogar para o meu clube de paixão, que era a Académica. Um ano depois sou chumbado no centro de Medicina Desportiva com um pretenso problema cardíaco, o chamado coração de atleta, que me impediu de jogar.
Não se pôde profissionalizar, ao contrário do seu irmão.
Não. Segui outra via.
O que era expectável que fizessem? Situe-me no que era a vossa vida, porque isso também importou na sua formação.
Desde logo, uma matriz familiar forte. A família do meu pai era mais conservadora, tradicional, o ramo Norton. O ramo Costa Cabral, da minha mãe, era mais liberal. Acabaram por nos dar uma educação mista, equilibrada. Tenho um referencial grande nos meus avós paternos, até pela tal vivência regular. Vivíamos perto, na Alameda das Linhas de Torres, e depois nos Setembros, em Ponte de Lima.
Era no tempo em que no Lumiar umas casas apalaçadas acolhiam as grandes famílias?
Sim. Uma casa apalaçada com um jardim muito grande. Um tio-avô meu, que vivia lá, quando ia à Baixa, dizia: “Vou a Lisboa”. O meu avô era um juiz de carreira, muito culto. Não era comunicativo, mas fazia aos netos umas charadas. Só para dar o tom: “Dois carros encontram-se numa via que só tem lugar para um, um deles tem que recuar, estão ambos à mesma distância de uma saída; quem é que recua?”. Colocava esta questão e nós, miúdos, dávamos os nossos palpites. A resposta certa era: “Recua o mais bem-educado”. [riso]
A educação dos meus pais foi muito no sentido de nos darem as ferramentas e mostrar a importância da nossa formação, académica e moral, sempre num quadro judaico-cristão. Não havia temas tabu para se discutir. A minha mãe foi sempre uma católica progressista, questionando e procurando aprofundar. Isso permitiu que cada um de nós seguisse o seu caminho, fizesse as suas opções.
A figura do General Norton de Matos, fundador da cidade do Huambo, Governador da província de Angola, era dominante na família? Era a referência, mesmo que ausente, na família?
Só em parte. Nasci em Fevereiro de 55, e o General morreu em Janeiro de 55.
Disse, “o General”, e não “o meu tio-bisavô”.
O meu irmão ainda tem fotografias ao colo do General, já idoso, com 80 e tal anos. Foi sempre um importante referencial, mas não único. Até porque outras figuras da família se tinham notabilizado e eram mais próximas em termos de idade. O meu bisavô foi reitor da Universidade de Coimbra e era também juiz. O meu avô nasceu em Goa, fez toda a sua carreira de juiz e foi presidente da Caixa Geral de Depósitos. A área conservadora da família era predominantemente salazarista, e o General era alguém que em relação ao regime era um crítico, construtivo.
Uma vez em férias, em Sines, dávamo-nos com rapazes e raparigas da nossa idade, e uma dada família não queria que se dessem connosco porque o nosso tio-bisavô tinha sido grão-mestre da Maçonaria.
Famílias numerosas? Tem a sua importância perceber como conquistam um espaço, uma saliência, inclusive social.
Éramos muitos. A minha mãe, 12 irmãos, o meu pai, sete irmãos, nós, sete irmãos. Os meus Natais de infância eram reuniões familiares de 50 pessoas, de muitos netos. Os avós tinham essas casas apalaçadas, grandes, que permitiam isso. Tínhamos direito a estar à mesa, a partir da adolescência ou pré-adolescência. Nos jantares de quarta-feira ficava fascinado a ouvir as conversas, de uma mesa grande, com 20 pessoas.
Mas insisto: se muitos se destacam, a expectativa é a de que isso também aconteça na vossa geração?
Todos os meus tios se destacaram nas suas actividades e nas suas personalidades. Mas igualmente na família da minha mãe. Estou aqui a recordar coisas que vão saindo da caixinha da memória. Os serões em Ponte de Lima: depois do jantar, nove e tal, juntávamo-nos numa escadaria de pedra, nas noites boas de Setembro, e tínhamos a via láctea como testemunha das nossas conversas. Entretínhamo-nos a aprender as constelações, vi passar o Sputnik, o primeiro satélite, com a cadela Laika. Tinha vontade de crescer depressa, no ranking familiar teria que esperar um bocadinho para opinar [riso].
Gostava de falar do seu interesse pelos pássaros. Os gregos antigos adivinhavam o futuro no movimento do voo das aves e na análise das vísceras dos animais mortos. Estava a pensar no que será que vê quando vê o voo das aves.
Vejo beleza, estética, aerodinâmica, harmonia. Vejo tanta coisa no voo dos pássaros. Como na graciosidade dos próprios pássaros.
Fica mais encantado com o som ou com o movimento?
Num pássaro encanta-me tudo. A proporção, o canto. Sobre os pássaros fui lendo, fui aprendendo, fui observando. Os pássaros que passam mais tempo em Portugal, conheço-os pelo voo, pela plumagem, pelo canto, conheço os hábitos de nidificação (com que tipo de materiais, a que tipo de altura, em que tipo de circunstância fazem os ninhos). E aquele namoriscar dos pássaros, a reprodução... Aprecio também nos pássaros o dimorfismo sexual, que é um palavrão para dizer que na maior parte das espécies há uma diferença entre o macho e a fêmea em termos de plumagem, em termos de beleza. São os machos que são mais vistosos. As paradas nupciais: há tantas afinidades com o mundo humano… Os machos a quererem pressionar as fêmeas com as suas plumagens, as suas cores. É conhecida a dança do pavão, mas quantos pavões não há nos humanos?
Qual é o seu pássaro preferido, o canto preferido?
É difícil. Se pensar num passarinho de canto, com aquela fragilidade, como é que é possível sair uma voz tão maviosa, tão melódica de um corpinho tão pequeno? Para atirar com um pássaro que é uma referência do norte, desde a minha infância: o pisco-de-peito-ruivo. É um pássaro muito bonito, tem um canto longo e dobra o canto, tem várias tonalidades. É um canto de quem está em harmonia com o seu meio envolvente.
Qual foi o primeiro pássaro que teve, pediu, apanhou?
Não sei dizer qual foi o primeiro. Tive a sorte de viver sempre com espaços verdes. Apanhava muitos pássaros, um ninho, uma asa partida, dava de comer, levava para casa. Já adulto, numa reunião daquelas importantíssimas, liga-me a minha filha mais nova a dizer que tinha caído um borracho, um pombo pequeno, da palmeira do jardim, no Lumiar (durante muitos anos vivi numa casa no fundo do jardim que os meus pais conservavam). “Encontrei um pombo, o que é que lhe dou de comer?”. [riso] Achei maravilhoso. Deu-se-lhe o nome de Palmeirim porque tinha caído de uma palmeira.
Ainda não percebi é porque é que não foi veterinário ou biólogo e foi gestor.
Ainda posso vir a ser. Quando fiz 50 anos recebi um livro de uma amiga americana, um livro que cito muitas vezes em algumas das minhas actividades profissionais, The Power Years. É escrito por três indivíduos da geração do baby boom, que terão agora 60 e tal anos, e que retratam uma realidade moderna, num mundo chamado desenvolvido. Depois dos 50, a pessoa tem os filhos criados, integrados na vida activa, e nessas idades sabe-se mais o que se quer e o que não se quer. Um amigo meu dizia: “A pessoa já não quer ser o que não é, quer ser ela própria”. Pode ir buscar às gavetas os sonhos, os projectos.
Para ser finalmente quem é.
Exactamente. Os anos do poder são aqueles em que se assume o poder do “eu”, já não tanto egocêntrico. Um “eu” muito mais de individualidade do que de individualismo. O “eu” de auto-estima. O livro está recheado de exemplos fantásticos, do que é que as pessoas fazem nesses anos em que têm o poder. Há bocadinho dizia “ainda posso vir a ser”; porque não? Desempenharia bem as funções de biólogo. Havia um espanhol que fazia O Homem e a Terra, Félix Rodríguez de la Fuente, uns programas de televisão promovidos pela TVE; andava pelo mundo todo, fascinava-me. Morreu num acidente de avioneta, a filmar uma corrida de cães esquimós. Esse era para mim o ideal de vida.
Fale mais dele e desse ideal. Como é que adapta isso à vida que escolheu ter?
Vivia numa quinta perto de Madrid, tinha quase um hospital de campanha de recuperação de animais, e passava o ano a viajar. Tinha sempre possibilidade de, onde ia filmar, passar uma temporada, e interagia com as culturas, os povos. Tinha o lado de antropólogo, de sociólogo.
Do meu treino profissional ficou-me muito a questão do multi-tasking, o gosto de fazer várias coisas. Hoje em dia tenho uma actividade díspar mas com um denominador comum bastante alargado. São projectos ligados a pessoas, capital humano, inteligência emocional, como é que isto nas empresas se traduz em melhor desempenho e em equipas de melhor desempenho. Por outro lado, a área da saúde, em termos de bem-estar, que não é só físico, é mental e espiritual. E o tema da sustentabilidade, ambiental, social e económica, que me levou a ser o dinamizador principal do Green Fest [que se realizou recentemente em Portugal]. Voltámos ao ponto da “aldeia, terra, gente e bichos”…
Toda esta crise, mais do que financeira, é uma crise de modelo. Este hiper-consumo em que caímos, e esta evolução desde a Revolução Industrial – o modelo está esgotado. Há aqui uma interrogação: “Que modelo de desenvolvimento é que vamos ter?”.
Qual?
Termino dizendo: um em que as pessoas, e as sociedades em geral, se sintam mais equilibradas e mais felizes.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010