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Anabela Mota Ribeiro

Porque sou feminista

08.03.24

O meu nome é Anabela Mota Ribeiro, nasci em Trás os Montes em 1971.

Esta frase, tão simples, contém apenas alguns elementos de identificação. É o núcleo a partir do qual vou falar convosco sobre pequenos e grandes delírios domésticos.

Por doméstico vamos considerar a casa, a família, uma certa atmosfera, um espaço habitado por homens e mulheres, com noções diferentes do que é ser homem e ser mulher, com diferentes identidades, papéis, idades, relações de poder, possibilidades de futuro. Uma vez perguntei a Paula Rego sobre os assuntos da sua pintura. A resposta foi: “Mandar nas pessoas. Obediência. Subversão. Fazer bem às pessoas más, fazer mal às pessoas boas. Poder. Desigualdade entre os sexos. Os homens mandam nas mulheres em geral. As mulheres às vezes mandam, mas é de outra maneira. A relação entre os sexos. É isso. Não é preciso mais. São tudo coisas caseiras. Tudo se passa no espaço doméstico.”

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Não conhecia a obra de Paula Rego na minha infância. Mas quando me encontrei com as avestruzes sonhadoras dos seus quadros, com as pernas tão grossas quanto as minhas; quando me encontrei com as mulheres que ela pinta, cheias de força e de sofrimento, percebi que aqueles quadros me interpelavam. Que aquela narrativa era também a minha. Só anos mais tarde pude conhecê-la, entrevistá-la, interrogar a sua pintura como um espelho onde podia ver quem eu sou.

Mas qualquer coisa despertou em mim a noção precoce e aguda de que os assuntos da pintura de Paula Rego eram os meus assuntos, que a minha vida ia ser, provavelmente determinada, seguramente marcada, por palavras como obediência e subversão.

Vamos voltar à minha frase de abertura: chamo-me Anabela Mota Ribeiro. O meu nome próprio é Anabela. Mota é o apelido de família da minha mãe e Ribeiro é o apelido de família do meu pai. O que há nestes nomes e nesta escolha? Uma forma de dizer: eu sou feita pela minha mãe e pelo meu pai, e faço-me a mim mesma. Ou seja, recebo uma herança, tenho uma pertença, e construo uma identidade com as características que me são próprias. Os meus progenitores são convocados de forma igual no meu nome. Sempre me pareceu injusto não ser, no nome, filha da minha mãe. Claro que estava lá, na minha cédula pessoal. Contudo, no modo como eu aparecia na escola, na sociedade, era apenas Anabela Ribeiro. Porque é que só usava o nome do pai? Porque é que, de um modo geral, e em particular naquele Portugal em que cresci, o nome das mulheres era preterido no espaço público pelo nome dos homens?

Eu interrogava-me sobre estes assuntos ao mesmo tempo que me interrogava sobre o futuro, sobre o sentido da vida, de um modo dramático, como é próprio de quem tem 15 anos. Quando penso na pessoa que eu era no meio dos anos 80, quando tento reconstruir uma narrativa de mim própria na transição da infância para a vida adulta, estas questões começam a surgir de uma forma vigorosa. A palavra feminismo é usada sem medo. Julgo ser exacta quando digo que, mais do que afirmar do feminismo, quis recusar o machismo. As duas coisas ficaram intrinsecamente ligadas, como um corpo que é cosido com uma linha grossa. Vamos à segunda parte da frase de abertura: nasci em Trás os Montes em 1971. Nesse tempo, demorava-se quatro horas pela estrada do Marão para chegar ao Porto. 100 km. Mas nesse tempo e nesse lugar remotos, a ideia de um homem mandar em mim era o absurdo que eu jamais consentiria na minha vida. O machismo era aquilo contra o qual eu iria lutar com todas as minhas forças. Fazia discursos inflamados, excessivos. Conjecturava o meu futuro e anunciava decisões irrevogáveis: jamais teria filhos!, e o meu sonho era viver sozinha numa casa, sem marido (e sem pais...). O célebre final dos contos de fadas nunca estimulou a minha imaginação. Sobretudo a primeira parte, a que diz: tiveram muitos filhos. Porque é que precisavam de ter muitos filhos? Ou porque é que ter filhos era uma condição para passar à etapa seguinte, ao “e viveram felizes para sempre”?

Quando me vejo neste incêndio, compreendo que estava a manifestar-me contra os estereótipos que eram mais visíveis no mundo em que eu vivia. O da mulher como objecto reprodutor, a maternidade como um destino. E estava a rebelar-me contra a desigualdade entre os sexos de que Paula Rego fala no excerto que citei.

Muito cedo identifiquei essa desigualdade. Esse quadro, e volto a repetir, Trás os Montes, 1971, uma cidade de província, raízes rurais, fazia das mulheres um alvo, um elemento frágil, muito frágil. As mulheres amavam mais do que homens, as mulheres suportavam as traições dos homens, as mulheres apanhavam pancada dos homens, as mulheres ficavam em casa com os filhos enquanto os homens disputavam o espaço público, as mulheres ganhavam – ganham! – menos do que os homens, as mulheres não tinham prazer, a não ser que fossem putas, as mulheres eram menos inteligentes, as mulheres não ascendiam – não ascendem – a cargos de poder (e por isso acho imprescindível a existência de quotas), as mulheres são menos fortes, menos capazes, as mulheres ocupam-se da lida doméstica, e os homens, na melhor das hipóteses, ajudam, como se essa não fosse obrigação deles, e fazem-no com vergonha de o fazer. Uma das recordações mais antigas que tenho é a de um vizinho fechar a porta do armário da cozinha de modo a impedir que os outros vizinhos o vissem a arrumar a louça. 

Acabo de falar de dois planos: o doméstico e o social. Num e noutro há uma constante: o lugar da mulher é o inferior, é o do sacrifício. Um lugar castrado.

Este foi o Portugal em que cresci. Podia acrescentar elementos importantes para a compreensão da minha narrativa, falar da minha origem social. Como sabemos, as desigualdades aumentam quando se é menos livre. Quero dizer: quando se é mais pobre, menos instruído. Tive a grande sorte de crescer depois da revolução, quando o acesso à escola pública e aos cuidados de saúde se tornaram um bem comum, a mais importante conquista da democracia. Mas não posso deixar de lembrar a minha avó, analfabeta, ou a minha mãe, com a escolaridade básica, que foram menos livres do que eu. Sou a primeira licenciada da minha família materna.

Eu pude compreender que o lugar que me estava destinado era o da obediência. Eu pude revoltar-me, dizer com orgulho que o meu nome profissional era Anabela Mota Ribeiro. Dentro deste nome já vai muita coisa, como percebem. Mas não esqueço o que ficou para trás, as colunas sobre as quais a sociedade patriarcal se organizou. Por isso sinto que tenho o dever histórico de afirmar o que afirmo, no meu nome ou de outro modo, e, assim, prestar um tributo. Tenho o dever de não desperdiçar as oportunidades que tive. A minha mãe e a minha avó não tiveram estas oportunidades. E tenho o dever de lutar para que outras mulheres, nas mesmas circunstâncias ou em diferentes circunstâncias, e em particular as que não têm os mesmos recursos, tenham voz, possam ser ouvidas, não sejam discriminadas. Luto para combater a injustiça, para, com o meu modesto contributo, me juntar a uma causa que envolve tantas pessoas e tem de envolver mais e mais.

Muito já foi feito. Trás os Montes da minha infância não é hoje o mesmo território. A geração a seguir à minha, a da minha sobrinha Vitória, movimenta-se num contexto significativamente diverso. (Sim, para falar do elo seguinte da cadeia tenho de falar da Vitória, porque por acaso e por escolha cumpri o desígnio da adolescência e não tive filhos.) As mudanças são expressivas. Mas é um erro enorme pensar que o essencial está adquirido e que, como ouço dizer tantas vezes, agora é uma questão de tempo. Não é. Basta enunciar os dados da violência de género para perceber o tamanho da ferida, para ver como são fundas as raízes deste machismo que desconsidera as mulheres. Os dados da desigualdade salarial também são eloquentes. Apesar de ser logicamente insustentável que uma mulher, em funções idênticas, ganhe, em média, menos 20% do que um homem, sabemos que essa é uma prática corrente. E não é de 1971. É de 2019. É, portanto, urgente corrigir desigualdades. Levamos pelo menos décadas de atraso. E é importante não esquecer que nem todos partem do mesmo lugar nem têm as mesmas ferramentas de afirmação social e de progressão numa sociedade iníqua.

Caros todos, estou a partilhar convosco um pouco da minha história. Não falei especificamente do meu quadro familiar, mas de uma memória muito viva da sociedade em que cresci. Tento explicar porque é que sou feminista. E ao dizê-lo com estas palavras, usando este título, evoco o belíssimo ensaio de Chimamanda Ngozi Adichie "Todos devemos ser feministas". Tento explicar porque é que os temas discutidos neste congresso me mobilizam enquanto cidadã. Apesar de o debate acontecer numa universidade e de larga parte dos participantes provir da academia, apesar de estes assuntos não serem os meus temas enquanto investigadora, confesso que não me sinto deslocada neste lugar. Obrigada, de novo, por me terem convidado e pela abertura a outros diálogos.

No meu doutoramento na Universidade Nova de Lisboa, estudo o romancista brasileiro Machado de Assis. Machado viveu entre 1839 e 1908. Sobre ele, Susan Sontag escreveu: “The greatest writer ever produced in Latin America”.

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Teria muito prazer em fazer toda a conferência falando do meu fascínio por Machado de Assis. Todavia, a minha opção é fazer uma breve descrição das personagens femininas e das suas circunstâncias. Também nelas podemos identificar de forma gritante uma sociedade patriarcal, injusta com as mulheres.  

Nos romances mais importantes, o narrador é sempre do género masculino. Os homens são protagonistas e poderosos: são eles que falam, que nos contam a sua versão da história. Logo, o lugar da fala, para usar esta maravilhosa expressão brasileira, é deles. Eles são herdeiros, proprietários, ociosos. As mulheres são, quase sempre, fortes, espirituosas, sedutoras, misteriosas, complexas. Não se pense que a mulher de Machado é uma coitadinha. Há viúvas possessivas e poderosas, há jovens ambiciosas, há mulheres que têm um poder erótico. Mesmo quando estão numa situação inferior na escala social, elas são magnéticas, mais do que eles. Mesmo quando são infiáveis ou manipuladoras, são mais estimulantes do que eles. Não se anulam. É o caso de Capitu, talvez a mais famosa personagem de Machado, protagonista de um romance que é uma obra prima: Dom Casmurro.

Capitu é segura de si, sensível, inteligente, sobretudo inteligente. O seu par amoroso chama-se Bento, é o narrador de uma história de ciúme, um Otelo brasileiro, como já chamaram a Dom Casmurro. Bento é um homem inseguro, como o Otelo de Shakespeare, mas é rico. Faço aqui um sublinhado: em toda a galeria de personagens machadianas há apenas uma mulher que é mais rica do que o seu futuro marido, uma jovem viúva. Não é um elemento despiciendo. Como eu dizia acima, o dinheiro e a instrução são instrumentos preciosos para a afirmação da individualidade, para combater a desigualdade. Todos sabemos que a pobreza torna mais estreitas as perspectivas de futuro, e que a falta de instrução aprofunda o problema; quando as duas estão ligadas, e frequentemente estão, o caminho a percorrer é mais longo e pesado. É mais fácil ser livre quando o essencial está assegurado, quando se tem tempo para pensar, estudar, quando se tem um quarto que seja seu, para citar a obra fundamental de Virginia Woolf.

O estudioso de Machado de Assis Roberto Schwarz faz uma leitura da obra com uma grelha marxista e põe em evidência as relações de classe que se desenham nos romances. O ângulo é interessante e suscita-me esta reflexão: se Capitu fosse mais rica do que Bento, o comportamento deste seria o mesmo? Capitu parece-me, sem dúvida, mais inteligente, mais sofisticada do que Bento; mas a impressão que fica dela, talvez porque a história seja contada na óptica dele, é que é uma mulher interessada em fazer um bom casamento e uma traidora que engana o marido com o melhor amigo do casal. O leitor não sabe se esta versão da história tem correspondência no real. Nada assegura que a convicção do narrador seja válida. Parece que sim, porque a história é contada por ele, mas não sabemos. Já agora, acrescento que foram precisos 60 anos para que uma estudiosa americana fizesse uma interpretação diferente do romance e dissesse: “um momento, o narrador não é confiável, o seu testemunho não é neutro, ele é parte na história”. Essa estudiosa, Helen Caldwell, foi mais longe e afirmou que Capitu é inocente.

A verdade, como referi há pouco, é que não podemos ter a certeza nem de uma versão nem de outra. A interpretação fica a cargo do leitor. Trago apenas o nome de Helen Caldwell porque considero sintomático de uma cultura machista ter prevalecido uma interpretação única do romance durante 60 anos. E nessa interpretação, a mulher é adúltera e materialista. O retrato não é simpático.

Pessoalmente, nas sucessivas leituras do romance, nunca duvidei da inocência de Capitu. Considero que ela é uma vítima do delírio ciumento do marido. Há pequenos e grandes delírios domésticos. Saibamos vê-los!

A minha interpretação de Dom Casmurro, a minha defesa de Capitu, é marcada por uma solidariedade feminina que vive em mim desde sempre. Claro que reconheço toda a ambiguidade que há no texto de Machado de Assis, a matéria que sustenta a hipótese do adultério. Mas recuso aderir a uma visão estereotipada da mulher em que ela é... uma serpente.

De onde vem esta desconfiança em relação às mulheres? A desconfiança talvez comece por existir, no romance, porque Capitu é mais pobre do que Bento. Dito por outras palavras: ela tem interesse na fortuna e na posição de classe dele, o seu amor não é verdadeiro; se o amasse, não seria infiel.

Ou seja, estamos a falar de poder, de que lado está o poder. Ou seja, esta pessoa que eu sou, feminista, interfere na interpretação que faço dos romances de Machado de Assis.

E isto faz-me voltar a Paula Rego, aos temas da sua pintura. “Mandar nas pessoas. Obediência. Subversão. Fazer bem às pessoas más, fazer mal às pessoas boas. Poder. Desigualdade entre os sexos. Os homens mandam nas mulheres em geral. As mulheres às vezes mandam, mas é de outra maneira. A relação entre os sexos. É isso. Não é preciso mais. São tudo coisas caseiras. Tudo se passa no espaço doméstico.”

Falei convosco a partir do espaço doméstico. O reconhecimento do mundo exterior, da esfera social só o fiz muito mais tarde. O espaço doméstico é onde sei quem sou. É o único território que conheço verdadeiramente bem. É a língua em que sou mais proficiente.

 

Texto lido no International Seminar Female Public Intellectuals: critical thinking and social activism; Universidade dos Açores, 26 e 27 Setembro 2019.