Quest. Natal - Nuno Júdice
Qual o presente que mais gostou de receber? A Pipi das Meias Altas, uma gravata Hermès, Dinky Toys? João Talone indicou um lanche com o Avô quando aprendeu a ler…
Foi «O ceptro de Otokar», pelo exotismo daquela ditadura caricatural. Quando recebi o livro em criança, fez-me viajar para uma Sildávia que continua a ter cópias mais ou menos trágicas por esse mundo fora. Ou por causa da Bianca Castafiore – a mulher que me afastou da ópera até a Mara Zampieri me ter reconvertido, ao ponto de já ir no segundo libreto (o primeiro à volta de Orfeu, o segundo sobre um D. João que faz empalidecer Mefistófeles). Hoje até há um suplemento de prazer no título por causa do p do ceptro, que em breve irá cair das mãos do Otokar com o novo acordo ortográfico.
Alexandre, o Grande, disse a Diógenes Laércio que este lhe podia pedir o que quisesse… Mas o filósofo respondeu apenas: “Quero que saias da frente porque me tapas o sol…”. Se lhe fosse dado a escolher o que quisesse, o que seria? (Paz, Amor e Saúde não contam!!)
Tirem-me da frente a televisão, não me tapem o mundo.
Um Natal celebrado fora da família: compras para a ceia no mercado de Rialto, um passeio de gôndola ao cair da noite, o labirinto de ruas e canais por uma vez deserto. Poderia permitir-se esta ousadia?
Não, nunca fui grande apreciador de Veneza desde que, num 25 de Dezembro nos anos 80, desembarquei de um vaporetto à chuva na praça de S. Marcos. E andar de gôndola, só se for com os ouvidos tapados para não ter de ouvir a cantoria dos gondoleiros. Prefiro a memória dos passeios de barco no lago do saudoso jardim do Campo Grande, aí nos anos 60, com uma ou outra associativa mais romântica, com a diferença de que nos canais o enjoo dura mais tempo e vamos ficar nas câmaras digitais dos milhares de japoneses que se penduram nas pontes para fixar cenas típicas.
Um Natal celebrado em Família: os ciúmes entre irmãos que confirmam Abel e Caim, a cobiça sexual da cunhada como num filme de Woody Allen, os familiares que cobram os divórcios e os fracassos com impiedade. O Natal pode ser uma interminável lista de horrores. Que horrores pode contar?
Nunca contei horrores! Não sou Dostoievsky nem um gótico inglês do século XIX.
Outro Natal celebrado em família: a cozinha cheia de aromas, a caminhada até à missa do Galo, a excitação das crianças e dos presentes. «A vulgaridade é um lar», dizia Pessoa… O que é que no Natal é para si um lar?
Hoje, uma árvore de Natal (até pode ser de plástico, comprada numa loja chinesa) com presentes; dantes, a lembrança dos natais na minha aldeia do Algarve com alguidares cheios de filhós e de pastéis de batata doce, figos cheios e estrelas de figo e amêndoa, e o peru a ser degolado lentamente, depois de embebedado com aguardente de medronho (ainda não havia Asae nem Bruxelas para higienizar as festas).
Maria de Lourdes Modesto gosta de fazer um bolo inglês para uma pessoa querida. Júlio Machado Vaz ofereceu uma página do seu diário a Eugénio de Andrade. Que presente gostaria de fazer com as suas mãos? Para oferecer a quem?
Não tenho muito jeito de mãos para fazer presentes, mas vou fazendo livros manuscritos – cada um faz aquilo que pode –para encher a minha arca; e um dia serão o presente dos investigadores que vão ficar desempregados quando a arca do Pessoa se esgotar. Mas como cada vez saem mais coisas dessa bendita arca, ainda temos para muitas décadas de inéditos – o que significa que esses meus presentes ficarão para o século XXII.
“Do céu caiu uma estrela”, de Capra, ou “Fanny e Alexander”, de Bergman? A Menina dos Fósforos ou os personagens de Dickens? Pai Natal ou Menino Jesus? Abrir os presentes depois da Ceia ou na manhã de 25?
Se os presentes fossem esses, o ideal seria mantê-los fechados, por muito respeito que tenha pelo Capra e pelo Bergman. Quanto à abertura, prefiro que seja depois da Ceia. Abrir presentes de manhã põe questões demasiado difíceis do ponto de vista intelectual: antes ou depois do banho? Em jejum ou a seguir ao pequeno almoço? E se há quem se levante tarde, teremos de esperar pelo fim da manhã? Por falar em fim, a menina dos fósforos acabou, substituída pela menina do isqueiro, que tem de ir para a rua fumar porque no pub é proibido – e se o Dickens vivesse hoje, era sobre essas pobres jovens decotadas que têm de ir fumar para o frio da noite que escreveria o seu «Christmas Carol».
No Natal, as crianças escrevem intermináveis listas de presentes que gostariam de receber. O que constava da última lista que escreveu?
Que me lembre, nunca fiz listas de presentes. Mas se fizesse, podia ter dito:
«Dá-me o que não é para ser dado porque,
quando se descobre o que é dado
no que é dado sem ser esperado,
fica-se com o dado sem ser obrigado.»
“Entre por essa porta agora, e diga que me adora, você tem meia hora para mudar a minha vida”, canta Adriana Calcanhotto. Já esteve a pontos de mudar a sua vida em meia hora? E por acaso isso coincidiu com as Festas?
Mudar a vida, transformar o mundo, lembra-me qualquer coisa. Mas se me derem meia hora para isso, é o tempo suficiente para me cansar da coisa. Ou se muda logo, ou não se muda. Mas a questão põe outros problemas: será que a porta da Adriana está aberta ou tenho de tocar à campainha? E se lhe disser, com o meu sotaque português, «ador’te», em vez do sonoro brasileiro «têadóró!» será que ela entende ou vai gritar: «O quê, minino, que está dizendo?» E não dá mesmo para repetir. Como não quero voltar a sair por onde entrei a detestar a Adriana por causa dessa situação, não é ela que fará com que eu mude a minha vida.
O pior de começar o ano é: perceber que nada mudou? Ter de fazer uma dieta drástica para combater os estragos da saison? Perceber que a sogra, o rival e o medíocre continuam por perto?
Sendo camoniano, estou sempre a ver a mudança, mesmo naquilo que permanece. E não vejo que a saison me vá estragar seja o que for, a não ser a carteira por causa dos presentes. Não deixa de ser interessante associar as sogras a rivais e medíocres! Terei de ir ao Freud para encontrar uma justificação; mas, pondo a sogra de lado, rivais e medíocres é uma parte integrante da fauna portuguesa, pelo que talvez se possa abrir uma época especial de caça a tão refinados animais.
Ficar mais magro, deixar de fumar, inventar mais tempo para os filhos… As resoluções de Ano Novo entraram no anedotário universal! Já alguma vez cumpriu alguma? Quais são as fazíveis para 2008?
Tal como me lembro pouco do que fiz, também não me lembro de nada do que irei fazer. Uma coisa é certa: não vou fazer dieta, não vou deixar de fumar, e quanto aos filhos (trabalho oblige) eles é que terão de inventar mais tempo para mim. Também não vou cumprir resoluções, mas tenho planos para 2008 para me poder dar ao luxo de não os cumprir, e de fazer aquilo que não estava programado, que é sempre o mais agradável.
Para o ano novo vinha mesmo a calhar: um carro novo, um emprego novo, umas coxas novas, o Chico Buarque a morar no bairro, uma secretária parecida com a Laetitia Casta? Uma vida nova?
Tenho um carro que nunca mais acaba, o que tem o inconveniente de não me obrigar a trocá-lo; gosto do emprego que tenho, o que significa que não estou candidato a ministro da Cultura; sou conservador em matéria de coxas, e também de manetas; se o Chico Buarque viesse para a minha rua era mais um automóvel a tirar um lugar de estacionamento; quanto à Laetitia, se é casta não lhe toco, dado pertencer a uma casta em vias de extinção – e ainda teria os ecologistas à perna por causa da perna leticial.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007