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Anabela Mota Ribeiro

Rita Ferro

18.02.14

O que significou esta vinda para o campo?

Evasão. Estava a endoidecer na cidade, já não separava o detalhe do todo. Estava tão cansada e angustiada que quando tocava o telefone, dizia «‘Tá lá» sem atender. Foi o primeiro sinal de que estava perturbada. Sou matutina, acordo às quatro, cinco, seis da manhã, e trabalhava muito – uma coisa que herdei do meu pai.

 

Também em Lisboa se levantava a essa hora?

Sim, toda a vida trabalhei muito; aqui mais, para reconstruir esta casa onde estou. Faço o que é preciso com a disciplina de um soldado. Mas foi realmente fuga. Estava tão fragilizada que sentia todas as humilhações. Quando se está em Lisboa, as pessoas aguentam o que têm de aguentar, não se apercebem. Quando vêm para cá, passa a ser absolutamente irreversível voltar para a cidade.

 

O que significa humilhação?

A pessoa esquecer-se de meter primeira num sinal verde e ter logo dez buzinas em cima, a negligência dos encontros humanos, todas essas coisas já estafadas. Coincidiu com o meu casamento; encontrei uma pessoa que tem um ofício que tanto faz ser aqui como na China, e pensei «É desta ou nunca mais». O Bernardo gosta muito de restaurar, e tinha uma encomenda de uma casa para estas bandas. Viemos para aqui há três anos. Ficámos numa espécie de refúgio, a 20 km, que o meu pai comprou para escrever. A seguir encontrámos esta casa. Entretanto a minha mãe enviuvou e ficou muito afectivamente ligada a essa casinha.

 

Era uma forma de estar com o seu pai.

Foi uma história de amor de 50 anos. Quando viemos para o campo, pensámos que podíamos ficar perto dela.

 

Era também uma forma de estar com o seu pai?

Era bonito que assim fosse, mas não pensei nisso. Compraram a casa há 13 anos e ele morreu há quatro, cinco anos – é um acto falhado, nunca sei bem quando é que morreu.

 

O que era a sua vida em Lisboa antes de vir para cá?

Vivia em casa a escrever. Só de há dois anos a esta parte me pude dar ao luxo de me livrar da redacção de publicidade, que foi sempre a minha ocupação principal, o pãozinho da boca. Comecei a minha vida no Reader’s Digest; a minha área específica era o direct mail.

 

Que tipo de cartas escrevia? Chamava-se Lúcia de Abreu.

Lúcia de Abreu para discos, Marta Neves para livros, ao seu dispor! Escrevia desde as cartas de produto aos folhetos de produto, a oferecer bicicletas e viagens e automóveis.

 

Tornava a vida apetecível.

Exactamente. Vai querer fazer o paralelo com a técnica da escrita?

 

Não. Não penso que a sua preocupação nos livros seja tornar a vida apetecível, mas sim reconhecê-la apetecível, apesar das frustrações e desencontros.

Saí das Selecções para me casar segunda vez e ter o meu filho; tinha uma filha do primeiro casamento, o meu ex-marido tinha um filho, queríamos ter um terceiro. O meu ex-marido era um quadro superior que viajava e eu, numa multinacional, também viajava. Era preciso uma mãe em casa. Deixei, olimpicamente, uma carreira no apogeu absoluto. Depois, em casa, trabalhei como freelancer para várias empresas, (o direct mail expandiu-se). Isto para dizer que só há muito pouco tempo me pude dar ao luxo de prescindir desse dinheiro; tive sorte e comecei a vender bem. Desde aí, divido-me entre os livros e os artigos, que implicam uma incrível dispersão, mas que vão captando novos leitores. E há ainda o papel patético da promoção, nas revistas, nos jornais, nas escolas.

 

É assim que entende esta entrevista?

Não. A imagem que passo, seja fisicamente seja verbalmente, decepciona-me muito. Abrir a alma a alguém que não se conhece, é difícil. Tenho a esperança de conseguir explicar através de uma entrevista um bocadinho do que sou para além do que pareço. Até porque o meu avô fez isso. Era um grande jornalista, catastroficamente para este país, na opinião de muita gente. Foi ele que abriu aquela ostra chamada Salazar, o apresentou aos portugueses tão bem ou tão mal que toda a gente se apaixonou por ele. Tenho a esperança de encontrar alguém que faça isso comigo.

 

O primeiro passo para aceder à essência de si será desmistificar ideias feitas, anular preconceitos.

Nem é bem isso. Gostava de me explicar, de falar com os meus leitores como falo com uma amiga. É uma certa aspiração romântica de querer ser amada. As pessoas classificaram-me muito rapidamente, e constato, melancolicamente, que não me conhecem. Escondo-me, umas vezes através da exuberância, outras através do laconismo.

 

No pacote de entrevistas que li, dizia que os livros têm uma componente autobiográfica forte, mas cifrada.

Há duas coisas em que estou centrada: ser uma pessoa equilibrada e ser uma pessoa natural. Esta exposição a que me sujeito, este sucesso que as pessoas invejam e que pode ser muito esquizofrenizante, tem-me retirado muita dessa naturalidade. Roubou-me a espontaneidade. Quando se tem medo oferece-se uma coisa diferente do que se é.

 

De que é que tem medo?

Que me confundam. Tenho fama de snob, e sou snob nalgumas coisas, mas se calhar não sou o que pensam. Tenho fama de ser uma senhora do jet set; nunca fui, nem nunca serei. Apanham-me nas revistas no foyer do Dona Maria, em lançamentos de livros; não me apanham em festas. E faz-me confusão que me achem uma beta!

 

É a tonteria ligada às betas que a incomoda?

Ligo os betos aos maçadores, obcecados em vender uma imagem de valores certinhos. A minha vida é a negação disso, é uma transgressão em relação ao meu meio. Vou sempre embora dos sítios onde estou, tenho uma necessidade absoluta de mudar os cenários, as pessoas. É o risco de viver comigo... Faz-me impressão que não percebam o que sou naquilo que lhes pareço.

 

E que não consigam desligá-la da sua família.

Por exemplo. Tenho uma inveja enorme do Miguel Sousa Tavares. É filho de duas pessoas com uma notoriedade enorme, mas nunca vão ter com ele falando-lhe primeiro da família. Comigo é esta saga: o seu pai, a sua avó, a terceira geração de escritores. Cansa-me imenso. Antes de entrar, já entrou toda essa conotação; é quase persecutório.

 

O aspecto que me suscita curiosidade na sua família, por ser extemporâneo, é o do interesse pelo ocultismo. Aos dez anos, já ouvia histórias do sobrenatural.

A minha avó era altamente mediúnica. Assinava uma revista séria que pesquisava casos de espíritos e essas coisas, que a mim me aterrorizam. Porque até me provarem o contrário, tudo é possível. A minha avó acredita em fantasmas, viu alguns, segundo ela. O meu pai fez espiritismo, muitas vezes em nossa casa, com amigos. Tem um livro chamado «Anjo branco, anjo negro» porque convocou o Fernando Pessoa, pediu-lhe um título e, segundo ele, foi o Fernando Pessoa que lhe deu a dica.

 

Que reacção teve isto em si?

Tinha muito medo, e continuo a ter.

 

E a sua mãe, participava desse universo?

Não, a minha mãe representava um mundo absolutamente à parte.

 

A sua mãe é uma ausência no seu discurso. É interessante que, sendo a mulher o seu tema recorrente, a sua mãe seja obnubilada neste processo.

Pensei que a minha mãe estava dentro dos meus livros. É o meu exemplo de força, mais até que a minha avó, que era inquebrantável. Estou fisicamente tão próximo dela que talvez nos confundamos. Não há a descrição da minha mãe nos livros, porque talvez ela esteja na narradora. É tão parecida comigo em alguns aspectos, e noutros é o oposto.

 

Onde é que se afastam?

Ela não é da geração da especulação psicológica. Nunca vi a minha mãe falar de estados de alma. Eu vivo centrada nas minhas fases e nas minhas crises. As melancolias da minha mãe decorrem de coisas concretas, «Estou assim porque», e localiza cirurgicamente. Eu vivo perdida a saber porquê. Quando me comparam à minha avó e ao meu avô, (o dinamismo da minha avó Fernanda, o exibicionismo do meu avô), comparo-me à minha avó materna, Maria, que era maníaco-depressiva – o que só soube este ano – exactamente como eu.

 

Quando soube, sentiu-se reencontrada?

Um bocado. Até agora falava-se de mapas astrais, agora fala-se de mapas genéticos. Há famílias inteiras que se acreditam malditas, e no mapa genético têm escrito «Tendência para doenças mentais». Na minha família materna há essa carga, que salta na minha mãe, que é uma pessoa solar, pragmática.

 

Que outras coisas tinha a sua avó Maria?

Agora estou apaixonada por essa figura. Temos muitas coisas em comum. Como esta dualidade, muito cansativa, de ser bonita e medonha, ser espampanante e geba, ser inteligente e burra, ser solar e sombria, e nunca saber a personalidade que vai sair de serviço. Não sabia como ia recebê-la, se eufórica, se pesada.

 

Como se fosse uma massa moldável que reage desta ou daquela maneira em função do que encontra?

Acredito muito nas empatias. Sou o que as pessoas convocam em mim. Uma das coisas que descobri no meu vasto currículo amoroso, foi que era preciso dar mais atenção à escolha do outro. No outro dia um padre dizia na televisão que as mulheres levam dias a escolher uns sapatos, meses a escolher um vestido, e o homem, aquele que vai ser o companheiro e o pai dos filhos, escolhem-no em três meses!

 

O outro é uma circunstância do nosso amor por ele. O amor que temos pelo outro centra-se muito mais em nós do que no outro.

Sei do que está a falar. O amor é anterior ao objecto, é quase um órgão em exercício permanente. Depois há o objecto que aparece e debela essa energia benfazeja. É nesse sentido que digo que não sou uma romântica, que não tenho o homem da minha vida.

 

Vai transpondo o seu amor para os vários objectos?

Tenho esta capacidade de amar que não é facultativa. Por isso é que digo «Mata ou capim, arde tudo o que estiver ao lado». Se não for um homem é uma casa, se não for uma casa é um vestido, se não for um vestido é um trabalho.

 

O que quer dizer com vasto currículo amoroso?

Não são 50 homens. Podem ser três histórias complicadas.

 

Porque me parece que se culpabiliza imenso pelo falhanço amoroso.

Quando se investe numa pessoa deve-se ir até ao fim, e muitas vezes vou-me embora a meio. É evidente que é quando não aguento mais. Mas fico sempre na dúvida, tenho sempre a sensação que mato uma parte das pessoas; e a mim não me matam, acrescentam sempre.

 

Isso já é uma elaboração para aliviar a culpa.

Sim, sou doentiamente escrupulosa.

 

Como é que se construiu assim?

Não faço ideia. Penso que na religião. Passo a vida a pedir desculpa. Tenho sempre medo de estar a magoar. Porque sou colérica, porque tenho muito boa pontaria e acerto entre os olhos. Tenho pavor de ter feito mal, ter feito mal aos meus filhos...

 

Amar excessivamente e dessa forma asfixiar?

Não, não é por amar. É exactamente por ainda não saber amar. Ainda não sei amar bem. Amo destemperadamente. Amo. Cobro. Mato. O amor, quando é verdadeiro, não fere, não mata, não agride, não é?

 

É?

É. Se me falar de paixão, é outra coisa. Amor é muito mais sério. Este livro que estou a escrever e que não sei o que é, que é visceral e está a passar sem censura do útero para o papel, fala muito nisso: na obsessão de não saber amar. Quer dizer, estimo as pessoas, sei o que valem para mim, sei que não viveria sem elas, e no entanto brutalizo esse amor, firo as pessoas que mais amo.

 

Apesar de toda a racionalização.

Percebi o seguinte: há a razão, a religião, há toda a informação que nos chega; e depois há uma coisa que lixa tudo, que é o sistema nervoso. Só assim se percebe que os escritores, que são capazes de escrever a beleza como ninguém, não a integram. Não tenho um grande fascínio pelos escritores; são muitas vezes mesquinhos, invejosos, egóticos, cruéis, amorais. Mas a escrita é o que se sabe, contraem-se doenças de ego gravíssimas.

 

O que é que se passa, a esse nível, consigo?

É uma coisa na qual desinvisto desde que comecei. Porque sabia, nasci nesse meio, vi coisas feias. Não estou aqui para ganhar prémios, nem para ser apreciada, nem para sonhar..., nem com um prémio da APE quanto mais com um Nobel! Mas sei que depois há o sistema nervoso a interferir nesta educação e que trama!

 

Entre ser melhor pessoa e melhor escritora, parece inequívoco que o seu projecto é ser melhor pessoa.

Parece-me inequívoco que é isso que quero. Mas se me perguntar se sou melhor pessoa agora, digo-lhe que não. Sei mais, mas isso não fez de mim uma melhor pessoa.

 

O que significa, então, crescer e ser uma melhor pessoa?

Isso que acabámos de dizer: chegar a um ponto em que se resolvem as coisas sem ferir, chegar a um ponto em que não temos que nos esconder. Vivo a perguntar aos meus amigos notáveis como é que resolvem o problema do sucesso, das solicitações, das mentiras que se dizem a nosso respeito. Desde dizerem que sou lésbica... Eu só disse, «Ai meus ricos filhos!». Vivo a contrariar os meus preconceitos, mas tenho-os. Os preconceitos não são simples atavismos; são contraídos na infância, muitas vezes a partir das palavras das mães, «Não vás por essa rua cheia de pretos», «Aquele é maricas».

 

Mas o que disse foi «Ai os meus filhos», e não «Ai a minha mãe». Bom, é uma especulação absurda...

E divertida. A minha mãe teria um desgosto, porque é muito preconceituosa. Os meus filhos não compreenderiam, achar-me-iam fraudulenta; seria uma mãe que não aquela que lhes apresentei.

 

Teve a sua primeira filha aos vinte e dois anos. Os seus filhos assistiram a várias mulheres, à sua evolução e diversidade.

Ah sim. Quando olho para a minha vida, digo que tive uma infância velha. Não me queixo: carradas de afecto, uma família grande, muitos primos, muitas férias grandes. Mas comecei a sofrer muito cedo. Com o sexo dos anjos!, tudo me fazia espécie. Tem a ver com a casa dos meus avós. Tem a ver com a disparidade entre o mundo da minha mãe, aristocrático e snob, e outro menos estético, de senhores com caspa, feios, a dizerem coisas deslumbrantes, do meu pai.

 

Não é espantoso que a sua mãe se tenha apaixonado pelo seu pai e pelo seu universo?

É, é, e foi muito mal acolhido. Os meus avós maternos meteram travões! Uma família da artistas inferia amoralidade, imoralidade, destemperos.

 

E luxúria.

Luxúria. Mas o meu pai era um príncipe das letras, e foi até morrer. Aliás, a minha mãe casa com o filho da patroa, que é uma coisa que não se sabe. Quando o meu avô morre, a minha avó fica com cinco filhos e começa a fazer pequenos trabalhos, que vende; a minha mãe, então com 15 anos, estava nas Escravas, onde a minha irmã e eu viemos a estudar, e passa a frequentar o Colégio de graça – era a melhor aluna – o que, de certa maneira, foi humilhante. Começou a trabalhar cedo, vai parar aos parques infantis, obra da minha avó paterna, e conhece o meu pai. Depois entrou naquela casa, na Calçada dos Caetanos, onde tudo acontecia e onde havia um verdadeiro pluralismo, a Esquerda e a Direira. Uma casa mítica. Nós assistíamos a grandes excessos, com a minha avó, uma mãe índia, junto de quem ninguém dizia um palavrão...

 

Diz palavrões?

No meu discurso? Nunca. Só sei dizer três, que digo em discussões passionais. A minha mãe diz que digo palavrões nos livros, mas é mentira. Não me vai obrigar a dizer quais são!... São os que vêm nas paredes!

 

As palavras têm pesos diferentes.

As duas palavras que têm mais peso para os dois sexos são «Filho da Puta» para um homem, que é inultrapassável, e «Puta» para uma mulher, que, mais do que um insulto, é uma sentença e uma condenação. É uma palavra que ouvimos muito cedo, quando ainda não merecemos, e que nunca mais de lá sai. Fica lá a obsessão e a dúvida se somos ou não.

 

Foi educada para ser uma senhora com um casamento para a vida, afastada do pecado da luxúria, do prazer de uma existência sensual. Sentiu-se culpada por amar e desejar mais do que uma pessoa?

Vamos lá ver uma coisa: não fui educada nesses valores porque, pura e simplesmente, nunca falei de sexo com os meus pais. Nunca. Andava atrás da minha mãe, quando me iniciei com os namorados, para saber até onde podia ir!, se um beijo na boca já era pecado ou não era.

 

A sério?

Literalmente assim. Tinha 12 anos. A minha mãe recusou-se a dizer o que fosse. Disfarçava. Fui educada com o exemplo dos pais. Um exemplo estético que não era formulado ou esmiuçado. Tudo aquilo que pensava que os meus pais não faziam e eu fazia, causava-me mau estar. Tinha muito a noção de pecado de que fala o Alçada Baptista. Por outro lado, lia coisas, inclusivamente em contos do meu pai, muito ousadas. Os livros proibidos lá em casa, (o Padre Amaro foi o primeiro que li!), estavam escondidos com a lombada ao contrário. Quando aprendemos o esquema, passámos a ler justamente os que tinham a lombada ao contrário.

 

Tinha uma cumplicidade com os seus irmãos?

Essa palavra, que faz imenso sentido agora, não sabíamos o que era. Éramos três irmãos típicos, à batatada, competitivos entre nós, «Quem é o mais esperto, o mais inteligente, quem é que bate mais» – sou a mais nova, fui a que apanhei mais. Discutimos muito; é muito cansativo para os genros e noras sucessivos que se juntam à família (os Ferros casam muito...).Todas as festas e eventos familiares acabam na mais napolitana discussão! Sempre. Em miúdos era com pancada. Agora é com palavras. O meu pai também discutia muito com a minha mãe – Vou levar um raspanete da minha mãe por dizer isto, mas paciência, assumo a minha incontinência.

 

Mas sabem do amor que sentem apesar da discussão contínua?

Sim, sim. Esse amor é adquirido, nem sequer se fala.

 

Isto vinha a propósito das dúvidas que não podia resolver com a sua mãe.

Também não podia resolver com a minha irmã. Outro traço muito típico nesta relação de irmãos é o pudor. Os meus livros desmentem, são despudorados... Cresci com a minha irmã e nunca me despi à frente dela. Coabitação na mesma casa de banho, jamais. Nunca vi a minha mãe em combinação. Havia o culto do pudor. Que, quando não é extremado ou coarcta, é uma coisa bonita.

 

Como foi com os seus filhos?

Tenho com eles uma relação completamente diferente da que tive com os meus pais. Aderi e abusei da geração do diálogo. Quando quero dizer não, já me pedem satisfações, o que me põe doida. E agora travá-los? Não soube dosear e estou a pagar esse preço. Metem-se na minha vida porque lhes dei esse direito. Mas sempre preferi miúdos insolentes a reprimidos.

 

Foram assim os seus namorados, insolentes?

Há uma grande diferença entre namorados e homens, mas isso dava para um livro! Os namorados, os noivos, eram genros que agradariam à minha mãe. Depois, a mesma menina do colégio, deixa-se fascinar pelo cinema francês, das fitas da inteligência e da amoralidade, do sexo e da bandalheira. Como muitas raparigas da minha geração tive fascínio por esses homens, estive lá perto... Mas cortei-me sempre, tenho um grande instinto de sobrevivência.

 

Não sucumbiu ao abismo.

Descontrolo-me imenso no sentimento, sou uma apaixonada pelas pessoas, mas nunca ceguei de paixão. A minha definição de paixão é: «Expectativa inflacionada de alto valor energético»! Parece literatura inclusa num remédio, não é? Mas não cego em relação aos defeitos e menoridades que as pessoas têm. Depois sucede que sou católica, sem vergonha de o assumir. (Não sou praticante, entrei em auto-gestão há muitos anos quando me disseram «Não podes comungar»). A minha fé deu-me uma enorme dificuldade em distinguir o amor cristão do amor homem-mulher. Aproximo-me ou deixo-me atrair, não quero desmontar, por alguém junto de quem vou ser útil, junto de quem essa energia benfazeja possa dar flor.

 

No virar dos vinte anos casou e teve a sua primeira filha. Porquê?

Nesse tempo, era tudo predestinado: casar e ter um filho imediatamente. Evidentemente amei, evidentemente escolhi a pessoa.

 

Separa-se ao cabo de três anos.

Fui sempre eu que larguei as casas. Em termos logísticos, foi mais complicado. Tive muitas fases de bater com a cabeça nas paredes, com dificuldades para conciliar a mãe e a trabalhadora.

 

Foi também isso que a fez tenaz?

Sim, sim. Nunca hesitei se queria ou não viver. A vida é um campo de obstáculos. É divertido, perante o maior obstáculo, saber resolver. Tive sempre essa atitude: a vida não me derrota, o destino não é senão uma proposta facultativa. Eu faço o meu destino, eu escrevo o meu livro, eu escrevo a minha vida.

 

Na sucessão de obstáculos, foi sendo mulheres diferentes.

A primeira mulher é a que quer vencer profissionalmente, que se torna uma winner no seu meio, o que desconforta o marido que tem em casa. Há uma segunda, a quem a avó escreve nas memórias, «A minha neta Rita se quisesse podia ser escritora».

 

O que significou essa frase da sua avó?

Uma ordem! Seria indelicado não fazer um esforço para corresponder àquela aspiração. O meu pai nunca me tinha lançado esse repto.

 

O que é que a sua avó tinha lido seu?

Sempre escrevi. Desde o poeminha publicado no Diário Popular aos 10 anos, tive as palminhas e os estímulos de toda a gente: era a menina que escrevia versos nos anos das tias velhas, as minhas redacções passeavam pelas casas dos meus colegas. A minha avó era muito parca em elogios; se escreve aquilo é porque tem uma intuição, que eu procuro honrar.

 

Ela gostou?

Já via mal, fui obrigada a ler-lhe o livro. Foi uma experiência que não posso esquecer. Ela, inexpressiva e imperturbável, a ouvir. Não havia nem um levantar de sobrancelha, se estava a gostar ou não. Eu suava, emagreci nesses dias. No fim disse-me «Continua, acho que vais lá». O meu pai disse-me «Deita metade fora, reescreve o livro». Não reescrevi e assim saiu, desamparado, o meu primeiro livrinho. Isto era para colar com quê?

 

Com as várias mulheres.

Há um homem que não gosta que eu tenha uma profissão que me obriga a viajar. Era absolutamente português. No princípio achava que era uma vítima, agora constato que são todos assim. Ninguém gosta de ser o marido de, nenhum homem gosta de ganhar menos que a mulher. O primeiro homem diz-me «Não casei com uma executiva», o segundo «Não casei com uma escritora».

 

Não procurou excepções à generalidade portuguesa?

Já, e encontrei.

 

Chegámos à mulher do «Uma mulher não chora», que foi apenas há três anos. Depois mudou tudo outra vez.

A mulher do «Uma mulher não chora» acredita, a páginas tantas, que pode ser feliz sem um homem. A mulher de hoje não acredita. Todo o meu percurso foi isso: não preciso de homens, se eles me querem muito bem, se não vou à minha vida! Estou a subir uma montanha, não me querem acompanhar, paciência! Esta singela metáfora da montanha é da única astróloga que consultei em toda a minha vida.

 

Singela? Parece de uma terrível carreirista.

É uma imagem. A minha astróloga... Fui uma vez por curiosidade, como fui uma vez a um psiquiatra. Como sou boa em síntese, contei a minha vida desde pequenina. Quando acabei tinha a catarse feita, não tive necessidade de voltar mais. Tive vergonha, tinha-lhe contado a minha vida toda... Mas eu não acabo nada! Hoje em dia acho que uma mulher pode ser o que quiser, mas...

 

«A liberdade sem a ternura de um homem não vale um caracol», a frase é sua.

[sorriso] É verdade. No meu quarto de adolescente tive um poster de uma mulher deitada na cama de barriga para cima, o homem está com o antebraço atravessado na garganta dela. Aninhada, protegida, feliz, em paz. Associei sempre o amor a essa imagem, a esse abraço. A mulher do «Uma mulher não chora» ainda tinha pretensões de uma felicidade na independência. Esta melhor não tem a menor ilusão. Não estou a referir-me às mulheres, não estou a entrincheirar num discurso feminista. Eu, sozinha? Muito obrigada, não.

 

Há-de desculpar a bizarria da pergunta, mas é assim tão difícil viver com um homem?

Não. Mas há-de constatar que os homens, normalmente, coarctam o percurso da mulher. Só agora, nesta relação, não sinto coarctação de espécie alguma.

 

O seu marido não se sente ameaçado por si?

Não se sente minimamente ameaçado. Começa por não ter a mínima pachorra para me ler, nem para as minhas temáticas.

 

Não precisa desse eco dele?

Não. Tenho 300 interlocutores intelectuais com que posso conferir e aferir ideias. Em casa preciso é de um interlocutor afectivo. Que me perceba, que me perdoe.

 

A sua temática, para a qual ele não tem pachorra, é o amor, são as relações.

É desconfortável para um homem ver a sua mulher a expor-se de uma determinada maneira. Nem que seja a descrever uma cena de cama. Isto toca teclas arquetípicas muito antigas. Ele defende-se assim, e estamos bem. As pessoas dizem «Mas não tens pena?»; talvez tenha alguma, mas o preço é tão caro quando começam a querer encontrar-se nas entrelinhas, a tirar ilações do que se está a ficcionar... O Bernardo não se aproxima da escritora, aproxima-se da mulher que conheceu na casa de um amigo.

O que mais me desespera e me alimenta o tinteiro, é essa clivagem profunda. Há um caminho interior que se faz da dissolução dos nossos defeitos e pecados. Há outro, que é o chamado vencer na vida, que nos obriga a corrupções diárias. São estes dois caminhos, feitos concomitantemente, que me estão a fazer mal, que me estão a roubar a saúde e a espontaneidade. Escrever é muito catártico, e é, no fundo, chorar essa clivagem central na minha vida. Precisar de uma sessão de autógrafos e, ao mesmo tempo, considerar patético o papel da aspirante a estrela que vai dar autógrafos. É uma coisa com que pactuei, é disto que vivo, estou a pagar o meu preço. Talvez um dia, e estou a caminhar para isso, possa viver sem estes folclores, viver pacatamente.

 

Há uma parte de si que gosta. Gosta da manifestação de interesse/amor que o público revela por si.

Sim. É suportável também por aí. É a carta anónima, é a mulher que chega ao nosso lado a dizer «Você escreveu a minha vida», é saber que já influí directamente em quatro divórcios, é saber que os meus livros são oferecidos como avisos à navegação de homem para mulher e de mulher para homem.

 

No seu livro de crónicas, endereça ao seu pai algumas questões. A primeira das quais é «Eu não sou bonita». Sente-se feia? Como é que lida com a sua feminilidade e com a sua imagem?

Não tenho uma beleza canónica, sou completamente irregular: a minha cara é balofa, desequilibrada. Mas se observasse uma mulher como eu achava-me interessantíssima. Já vivi o suficiente para saber que uma mulher menos bonita tem de se esforçar mais. Agradeço bastante não ser bonita, não me ter sido facilitado o trabalho. Dou avanço a 50 mulheres bonitas; elas podem interessar fulminantemente um homem, mas talvez sejam mais descartáveis que eu. E há aquela canção do Vinícius, da imperfeição que acende o desejo; sou muito assim.

 

A sua mãe era bonita?

A minha mãe era deslumbrante, eu saio ao meu pai.

 

Foi um modelo de feminilidade para si?

Não era propriamente uma fada do lar; não fala de skips nem de receitas de bolos. A minha mãe tem 78 anos e há dias uma criança de seis anos, aqui no campo, perguntou-lhe: «A senhora tem namorados? Então com essa boquinha tão bem pintada não lhe apetece dar beijos na boca?» É uma história deliciosa.

 

As outras coisas de que fala na carta ao pai são a procura do amor e do equilíbrio.

A procura do equilíbrio e da naturalidade. Naturalidade representa ser igual a si próprio estando com um cavador de enxada ou com o Papa. A minha irmã tem essa qualidade, essa graça. Sou daquelas pessoas inseguras, orgulhosamente inseguras, sobre as quais os outros têm uma poderosa influência. Se juntar três pessoas numa sala, e perguntar o que acham da Rita Ferro, há três opiniões radicalmente diferentes. Uns vão dizer «É uma neurótica», outros vão dizer «É a mulher com mais graça que conheci».

 

Quanto ao amor.

O amor? Eu, que achava que era um dos meus temas, que dava lições, descobri que não sei amar, que fui uma péssima aluna do amor, uma cábula convencida. Tenho levado algumas lições, que me comovem às lágrimas. A humildade é também uma coisa que tenho de começar a trabalhar, já vou muito atrasada. Tenho perfeita consciência das minhas limitações, mas não sou uma pessoa humilde.

 

Dá-se com alguém aqui na aldeia?

Dou-me imenso. Mas estaria a mentir se dissesse que me sento com o mesmo à vontade consigo ou com um operário cá de casa. Tenho algumas resistências estéticas. Talvez seja um bocadinho classista. Não me orgulho nada, mas é verdade. Depois há gente simples. E o que é que a gente deseja senão a simplicidade, o despojo, as almas límpidas? Mas para as amarmos, teríamos também de amar o que muitas vezes vem a seguir: o palitar dos dentes, o arroto, o cheiro a suor.

 

Tem afinidades estéticas com todos os seus amigos?

A minha grande rejeição estética é a ordinarice, em qualquer meio. Entram na minha vida todo o tipo de pessoas. Menos as ordinárias. Apesar de eu ser muitas vezes ordinária, sublinho. Tudo isto é relativo. A minha mãe acha que escrevo livros ordinários. Quando escrevi «Os filhos da mãe», disse-me: «É desta que não vou ao teu lançamento, tenho vergonha das minhas amigas».

 

Quem são as pessoas que recebem as suas confissões?

São três. Quer nomes?

 

Sim.

Acha que isso interessa aos leitores?

 

Gostava de saber que tipo de pessoas são.

São pessoas junto das quais aprendo sempre. Uma é jornalista, outra é administradora de uma empresa, outra é poeta. São pessoas inteligentes. Um dia perguntei à Agustina: «Os seus amigos são todos inteligentes?», ela respondeu: «Agora sim». Subscrevo, agora sim.

 

Gosta de escrever pela manhã, directamente dos seus sonhos. Gostava de terminar perguntando-lhe o que sonhou hoje?

Tenho muito pouca consciência dos sonhos. Os sonhos que tenho estão muito ligados a crianças. Nunca tive sonhos sexuais, por exemplo. No último que me impressionou imenso, tinha tido um aborto espontâneo – nunca fiz nenhum aborto, nem o tive espontâneo. Por insanidade, perturbação e desgosto, guardei o feto num estojo acolchoado e, quando um dia abri o estojo, reparei que a criança tinha sobrevivido. Lembro-me de ter tido tanto horror do erro monstruoso, (ter amortalhado uma criança viva), que quase deixei cair o estojo. Depois fechei-o para que ninguém soubesse. São sonhos muito estranhos, ligados à maternidade, com que a minha filha também sonha. É engraçado...

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1999