Roberto Mangabeira Unger
Cientista social, um dos mais jovens professores da história de Harvard, um filósofo que sustenta um discurso a partir da palavra “alternativa”. Um homem a quem chamamos naturalmente “professor”. Ministro dos Assuntos Estratégicos do Brasil entre 2007 e 2009. Este é Roberto Mangabeira Unger. Outra maneira de o apresentar é perguntar de onde é que vem. O apelido Mangabeira é de uma mãe brasileira, Unger é de um pai alemão. Teve um avô que passou o tempo a fazer resumos de todas as obras de Machado de Assis quando foi preso político. (Essa é a têmpera da sua gente.) Foi criado entre os Estados Unidos e o Brasil. Fala português do Brasil com sotaque americano. Esteve em Lisboa para participar nos encontros da Fundação Francisco Manuel dos Santos, há uma semana. Tem um tom amável, sólido, e por vezes exalta-se, dominado pela força – e pela urgência – do que está a dizer.
Foi do seu olhar sobre o mundo e das propostas concretas para Portugal que falámos nesta entrevista. Não esperem que isto seja uma aula, ainda que a exposição o sugira, por vezes. A atitude de Roberto Mangabeira Unger é sempre contundente. E que se danem os que não gostam.
O paradigma inaugurado depois da Segunda Guerra entrou em ruptura. Vivemos um fim de ciclo. A partir de que vocábulo começamos a inventar uma nova narrativa?
A última grande renovação institucional e ideológica que ocorreu no ocidente rico foi construída nas décadas imediatamente após a Segunda Guerra. Mas as sementes disso foram plantadas entre as duas guerras. Permitiu-se ao Estado o poder de regulamentar o mercado mais fortemente, de contrabalançar as desigualdades geradas por políticas de redistribuição compensatória, por tributação progressiva, e de manejar a economia por políticas contra-ciclo que são as políticas keynesianas. Portanto, compromisso com a protecção social, atenuação das desigualdades, mas aceitação do arcabouço institucional, tanto na economia como no Estado. Esse foi, e continua a ser o sistema.
Continua a ser?, apesar da erosão.
Hoje há um projecto hegemónico no Atlântico norte, entre as elites que se têm por esclarecidas. É o projecto de reconciliar a protecção social no estilo dos europeus com a flexibilidade económica no estilo dos americanos. A social-democracia tradicional que dava direitos adquiridos a uma série de minorias organizadas, de trabalhadores e de pequenas empresas, foi progressivamente esvaziada.
O esvaziamento ocorreu sob o rótulo da flexibilização, como no mercado de trabalho. E o social-democrata e os social-liberais retrocederam para a defesa do que consideram o baluarte. Sacrificaram os anéis para ficar com o dedo.
Qual é o dedo, no caso?
Esse baluarte, esse resíduo na retaguarda, é um alto nível de protecção social, paradoxalmente financiado pela tributação do consumo, como ocorre com o IVA.
Mas nenhum dos grandes problemas destas sociedades contemporâneas do Atlântico Norte pode ser resolvido dentro dos limites deste compromisso institucional.
Quais são esses grandes problemas?
O primeiro é como qualificar os serviços públicos. É um tema central da política eleitoral europeia em cada país. O que existe na Europa e no mundo é aquilo que poderíamos chamar de “fordismo” (a produção massificada, mecanizada de Henry Ford). A qualificação dos serviços públicos exigiria um engajamento da sociedade civil sem o objectivo do lucro como parceira do Estado na provisão dos serviços. Não existe. Nem sequer é proposto, na realidade.
Segundo problema.
A relação do sistema financeiro com a economia real. Actualmente o sistema financeiro vive desentrosado da economia real. O sistema produtivo, em larga medida, autofinancia-se com base nos lucros retidos e reinvestidos das empresas.
Quando há lucros para ser retidos e reinvestidos...
É. O que resulta disto é que em tempo de bonança e de liquidez, tudo bem. As finanças cuidam de si próprias e são indiferentes à economia real. Em tempos ruins, quando desaparece a liquidez, as finanças viram um elemento de desestabilização destruidora. Não tem que ser assim. Poderia haver, não uma regulamentação do sistema financeiro, mas uma reorganização das relações em que o sistema financeiro, em vez de ser o mau senhor, passasse a ser um bom servo.
Mau senhor, bom servo? Não foi essa opção de reorganização que foi tomada na sequência da crise recente.
O que as elites europeias propuseram foi o keynesianismo vulgar. Os estímulos de um lado e a regulamentação das finanças de outro. Propuseram os chamados progressistas. Os outros, os conservadores, pior!, propuseram só a radicalização da austeridade e um jogo de confiança. Ninguém tratou de reorganizar a relação.
Terceiro problema.
A segmentação hierárquica da economia. Agora surge um novo paradigma de produção, baseado na produção flexível e descentralizada, e densa em conhecimento. Muitas vezes, na Europa, encarnada em redes de pequenas e médias empresas. O problema é que a prosperidade, a ascensão dessas vanguardas produtivas pós-fordistas, depende de condições muito especiais. Depende da existência de um legado pré-fordista. Essas condições estão ausentes na maior parte dos países europeu. As minorias altamente educadas têm porta aberta a estas vanguardas produtivas, mas a grande maioria da força de trabalho está excluída.
Como resolver a desigualdade que resulta disso?
Há dois remédios tradicionais. Um é a redistribuição compensatória pela tributação progressiva e pelo gasto social. O outro é a defesa política dos pequenos empreendimentos. Nenhum dos dois é suficiente para atenuar as macro-desigualdades que resultam dessa nova forma de segmentação hierárquica da economia. Seria necessário inovar nos regimes institucionais e jurídicos que relacionam o Estado com os empreendimentos e os empreendimentos entre si. Com que objectivo? Com o objectivo de disseminar na economia o vanguardismo. Para que o vanguardismo não fosse uma ilha.
Pode elaborar a ideia de a vanguarda ser uma ilha?
A vanguarda é sempre o sector mais próximo da imaginação. Na época da Revolução Industrial a vanguarda era a manufactura mecanizada. Agora, a vanguarda, que depende de requisitos muito especiais, por exemplo, de conhecimento, é uma ilha, é um gueto, e a sua cultura e as suas práticas não são disseminadas.
Quarto problema.
Os cheques que o Estado manda para o correio não são suficientes como cimento social, como base de coesão social, especialmente quando a homogeneidade étnica e cultural deixa de existir, como está ocorrendo em muitas sociedades europeias. Os países europeus estão deixando de ser tribos. Seria necessário engajar os cidadãos em cuidar dos outros fora dos limites de suas famílias.
Quinto grande tema.
A capacidade “mudancista” (para mudar) da política. As democracias contemporâneas são democracias de baixa energia conduzidas por sindicatos eleitorais e políticos, que só se mobilizam na hora da crise. Sem trauma não há transformação. Essa é a regra básica da História europeia do século XX. Com guerra e ruína económica, há mudança. Com paz e prosperidade, todo o mundo, vai dormir. Seria necessário um aprofundamento da democracia para criar democracias de alta energia, com alta mobilização popular.
A minha tese é a de que os problemas estruturais destas sociedades não cabem dentro dos limites daquele compromisso que foi construído em meados do século passado. E as elites governantes vivem no aftermath, no crepúsculo desta solução já gasta. Quando ocorre uma crise de dimensão média, como a crise financeira de 2007, 2009…
Considera que foi média?
Média comparada com as mega-crises do século passado. Uma crise como essa revela os limites da situação actual.
Agora, há uma crise subjacente na Europa, que é o “desempoderamento” das maiorias, e sobretudo dos jovens.
Radica onde, esse “desempoderamento”?
Na falta de horizonte existencial. Vivemos na ameaça de um imenso desperdício de energia humana. Não têm o que fazer! Ou não têm empregos, ou têm empregos que não são empregos, que são empregos de fantasia. E só uma pequena minoria tem a oportunidade de produzir, construir ou criar. Isso é uma calamidade que condena centenas, milhões de pessoas a uma vida pequena. Aí é que vem o problema.
Por isso falávamos no início da entrevista da necessidade de um novo paradigma. Do que pode rasgar e construir uma nova narrativa para estes milhões de pessoas.
Teria de haver uma visão estrutural. Toda a herança de ideias na Europa desautoriza um esforço desse tipo. Segundo essa visão, só há dois tipos de política: uma política revolucionária que substitui um sistema por outro, e uma política reformista que maneja um sistema enquanto não vem outro. Como a política revolucionária é uma opção inexistente, e se fosse existente seria perigosa demais…
Não é mesmo existente?
Não está no horizonte, é uma ideia fictícia, só.
Desperdício, desigualdade, podem servir de semente de mudança? Como disse, a revolução não é uma ideia que se vislumbre no horizonte. O que é que vamos fazer a estes milhões de pessoas?
Eu não concordo com essa ideia binária da política. Para mim, a forma exemplar de uma política transformadora é estrutural, mas não é revolucionária no sentido antigo. As estruturas podem ser mudadas. Historicamente são mudadas por iniciativas fragmentadas, que, se repetidas num determinado rumo, ganham alcance transformador. É um projecto estratégico consequente de transformação, estrutural nas suas ambições, porém fragmentário e gradualista no seu método.
Não existe uma estratégia, uma visão, um ideário. Parece que a política é a grande ausente das últimas décadas. Concorda?
Exactamente. É útil comparar os propósitos dos liberais e socialistas do século XIX com o horizonte imaginativo dos social-liberais e dos social-democratas contemporâneos. Para liberais como o John Stuart Mill, para socialistas como Karl Marx, o objectivo principal nunca foi a igualdade. O objectivo é uma vida maior para a Humanidade comum. Elevar a Humanidade.
Maior no sentido de melhor?
Uma vida com mais dimensão, com mais alcance, mais poder, mais intensidade. Não apenas humanizar a sociedade: divinizar a Humanidade. Elevar a vida humana a um plano mais alto. Esse sempre foi o objectivo. E a luta contra as desigualdades sempre foi acessória a esse objectivo.
Como fazer, como operar a mudança e concretizar esse desígnio?
Cada um tem a sua fórmula dogmática. Os liberais têm uma, os socialistas outra. Agora, com um liberalismo tardio e a social-democracia convencional, o propósito mudou. O propósito não é mais uma vida maior para as pessoas comuns. O propósito é simplesmente tornar o mercado menos selvagem. Os objectivos são perseguidos dentro do cenário institucional existente. O debate ideológico constrói-se hoje da seguinte forma: é a liberdade superficial contra a igualdade superficial.
Superficial em que sentido?
Quando digo superficial, quero dizer: aceitando a estrutura existente. E a direita seria a facção que prioriza a liberdade, e a esquerda a facção que prioriza a igualdade.
A minha posição é muito mais próxima à posição dos filósofos do século XIX. O objectivo é uma vida maior para as pessoas comuns. E o instrumento é a transformação institucional.
Com igualdade radical ou com liberdade radical?
Liberdade radical. Com a luta contra a desigualdade como acessória a essa liberdade radical. Essa é a posição da esquerda, é a posição real dos progressistas, e é uma posição que não é ocupada na política contemporânea.
Nem pela esquerda, que a clama como sua?
Não. Vamos tomar o caso português. Há uma só ideia dominante na política portuguesa, que tem uma face crua e uma face suave. A face crua é a radicalização da austeridade e [a diminuição] dos salários como requisito do aumento de competitividade.
Foi a opção seguida pelo nosso centro-direita.
A face suave é tentar manter na retaguarda o essencial dos direitos sociais enquanto se procura dar estímulos ao grande capital, às grandes empresas. Na esperança de que esses estímulos atraiam os investidores estrangeiros e nacionais, lancem um novo ciclo de crescimento, que produz um excedente, que por sua vez financia o gasto social.
Essa é a posição da esquerda.
Mas não é possível relançar o crescimento dessa forma, inclusive porque numa economia como a portuguesa essas grandes empresas estão deixando de existir. E muitas das que existem foram compradas por estrangeiros.
Se enfrentassem a realidade, ficariam conscientes da [falência] desse sistema institucional para enfrentar os problemas reais do país. Precisamos de construir instituições económicas e políticas que tenham, além de todos os seus outros atributos, o de serem susceptíveis de correcção no meio do caminho.
A possibilidade de corrigir a rota?
É. Para que o caminho se possa desenhar no meio do caminho.
Ouvi-o falar de liberdade radical e igualdade radical. E fraternidade? Liberté, Egalité, Fraternité, divisa ainda central na história europeia.
Como eu dizia, o dinheiro não é suficiente. A coesão social passa por uma responsabilidade pelos outros. Por exemplo, se não há um serviço militar obrigatório, pode haver um serviço social obrigatório. Não podem os abastados mandar cheques pelo correio como se a transferência do dinheiro produzisse solidariedade social. A única maneira de produzir solidariedade social é sacrificar o nosso principal recurso, que é o tempo de nossas vidas. Só posso ganhar solidariedade pelo engajamento e pela responsabilização.
Gostava de o ouvir falar sobre a Europa. A leitura do que acontece em Portugal desde 2008 não pode ser desfasada da crise que a Europa vive e dos contornos do projecto europeu.
Os grandes projectos da história contemporânea têm dois pressupostos: o primeiro foi pôr fim ao século de guerras europeias e assegurar na Europa a paz perpétua. O segundo pressuposto foi construir um espaço geopolítico, para um modelo de organização social e económica diferente do modelo dos Estados Unidos, menos selvagem, menos inseguro.
O que resta disso?
O primeiro pressuposto deixou de ter força pela distância histórica. O segundo pressuposto vem sendo esvaziado do seu conteúdo à medida que a social-democracia europeia se flexibiliza ou se americaniza. Enquanto isso, a União Europeia embarcou numa arquitectura institucional orientada pelo seguinte princípio: as regras que governam as formas de organização social e económica são cada vez mais centralizadas na União, e o poder de definir os direitos sociais dos cidadãos é devolvido às autoridades locais. A União Europeia vira uma camisa-de-forças! Uma camisa-de-forças que impede o experimentalismo institucional necessário. E quem mais precisa de divergir são os periféricos, são os países europeus do Sul e do Leste.
Porquê?
Porque estão numa situação de atraso relativo e precisam ganhar valor. Quando Portugal aderiu aos tratados europeus, aceitou uma camisa-de-forças, fascinado, seduzido pelo prato de lentilhas dos subsídios europeus. E sem nenhuma visão estratégica. Por exemplo, não preparou a sua agricultura para a integração na Europa. Hoje, com 350 mil empreendimentos agrícolas em Portugal, talvez só cinco mil tenham realmente condições de sobreviver. Os outros são empreendimentos retrógrados, sem futuro dentro do paradigma actual.
A União Europeia é olhada como uma locomotiva potente, fundamental para o nosso desenvolvimento.
Sim, a adesão à União Europeia pareceu ser uma tábua de salvamento. Pode ser um complemento de um projecto nacional forte, mas como substituto de uma estratégia nacional é uma calamidade. Virou narcótico em que o país, de joelhos, fica esperando ser salvo pelos tios mais ricos, recebendo esmolas e ordens. É inconcebível que a elite governante portuguesa, de todos os partidos, tenha colaborado nesse resultado! Vamos dizer a verdade: [isto é] Vichy. Quem é que governa Portugal? É o Marechal Pétain.
Ficámos reféns do prato de lentilhas?
É. Não porque os subsídios sejam intrinsecamente ruins, é porque eles só são úteis quando usados por uma sociedade e um governo que tenham um projecto estratégico. O desastre sobrevém quando são usados para preencher o vácuo do projecto estratégico inexistente.
Estratégia parece coisa que Portugal nunca teve. Problema central. A somar à crónica falta de capital. Vivemos séculos à conta do que vinha das colónias. Nas últimas décadas, vivemos do que vinha da Europa. Que caminhos, agora?
Eu, como admirador, amigo estrangeiro de Portugal, vejo grandes linhas de um caminho. É claro que se as descrevo de uma vez, de um ponto de vista remoto, pode parecer uma utopia. Mas em qualquer proposta programática os dois atributos mais importantes são, primeiro que marquem um caminho. E segundo, que seleccionem, que indiquem os primeiros passos para dar naquela direcção. Vejo oito grandes vertentes de um projecto nacional forte.
A primeira.
A construção de um novo paradigma produtivo que tenha por destinatário principal as pequenas e médias empresas. Elas são o mais importante protagonista da economia portuguesa. Objectivamente respondem pela maior parte do produto e pela grande maioria dos empregos. E também porque sobrevive em Portugal um empreendedorismo pequeno-burguês tenaz.
É da nossa natureza?
Sim. Não pode transformar Portugal se não aceita Portugal. Portugal é um país essencialmente pequeno-burguês.
Seria necessário construir uma nova forma de coordenação estratégica entre os governos e essas empresas. Descentralizada, pluralista, participativa, experimental. Tenho por objectivo, não os subsídios às pequenas empresas, mas a disseminação das práticas avançadas e do acesso ao conhecimento, ao crédito, à tecnologia, aos mercados. E é necessário fomentar entre as pequenas e médias empresas regimes de concorrência cooperativa. Este é um projecto que não tem nada de tradicionalista ou romântico. É a invenção do pós-fordismo nas condições reais de Portugal.
Quando fala de pequenas empresas, está a pensar também no pequeno restaurante de esquina, naquilo que serve a população no seu dia-a-dia, numa base mais imediata? Foi um sector muito penalizado nestes anos de austeridade.
Não. Isso está mais próximo da economia de serviços. Estou pensando sobretudo na produção industrial e agrícola.
Tem que enfrentar esta realidade: a principal energia do país está em algo que não tem futuro. É o português que tem o seu pequeno empreendimento agrícola, quis abrir a sua mercearia, a sua quitanda, e está como se estivesse no século XIX. É aí que está a nação. Se der estímulos a três ou quatro grandes empresas, onde vão ficar os outros portugueses?, vão ficar nessa fantasia de há 200 anos atrás?
A solução passa por...
... dar escala e avanço ao que é a parte preponderante do sistema produtivo. A agricultura exige não só a assistência comercial e financeira mas sobretudo uma revolução tecnológica e científica. A agricultura brasileira foi revolucionada pela Embrapa. Hoje o centro-oeste brasileiro é uma das maiores fronteiras agrícolas do mundo. Há 40 anos não produzia nada. A ciência mudou tudo.
Segunda vertente do caminho para Portugal.
Transformar as relações entre o trabalho e o capital. Em Portugal, como na maior parte das sociedades contemporâneas, uma parte crescente da força de trabalho está em situação precária, de trabalho temporário. O regime jurídico tradicional dos sindicatos e da negociação colectiva não alcança essa realidade. Seria necessário construir um segundo regime para proteger, representar e organizar essa maioria. É a única maneira de fortalecer o trabalho na relação com o capital.
Normalmente a esquerda surge a defender esses interesses.
Os partidos de esquerda em geral preferem ficar como agentes políticos da minoria organizada em vez de defender a maioria precarizada.
Junto com isso viriam iniciativas para trazer a economia informal, cinzenta, para a formalidade. Porque há um contínuo entre trabalho precarizado e pequeno produtor informal.
Terceira vertente.
Organizar, sobretudo na juventude portuguesa, uma elite europeia e atlântica de serviços. Muitos dos jovens mais inquietos, mais ambiciosos, mais talentosos de Portugal abandonam o país. Isso é uma sangria destruidora para a nação. O Estado teria um grande projecto estratégico se se apresentasse como uma espécie de venture capitalist e financiasse milhares de jovens portugueses a andar o mundo em actividades, não só académicas mas também empresariais, sociais e filantrópicas. Andar o mundo, transformar-se andando o mundo, voltar transformado e sacudir o país.
Está a falar de uma mudança social que se traduziria numa dimensão económica.
É. É um projecto de transformação da consciência colectiva, que não exige muito dinheiro do Estado. Exige audácia e visão estratégica. É o melhor antídoto a essa sangria. E responde a algo muito profundo na consciência histórica do país, que é esta dialéctica entre o caseiro e o universal.
Quarta vertente.
Assegurar uma base de financiamento interno forte reorganizando a relação das finanças privadas e públicas com a economia real. Isto passa pela renegociação da dívida pública portuguesa.
É inevitável?
Se é inevitável ou não, eu não sei. O que é imprescindível é enfrentar o problema. Se a renegociação vai ser consentida ou não, não se pode saber a priori. Tem de haver um braço de ferro com tratamento diferenciado para cada uma das categorias de credores. Com a troika, jogar forte. Com a banca privada, transformar os bancos quebrados para começar a partir deles a construir o que o país não tem: um sistema bancário descentralizado ao serviço da produção.
E as finanças públicas? E Portugal face ao colete de forças da Europa?
Como é que o Estado vai fazer estratégia com o dinheiro daqueles contra quem se está rebelando, que são as autoridades europeias? Tem que ter lastro. E eu imagino três fontes desse lastro. O primeiro é o que vem por conta da renegociação da dívida. O segundo é o que vem pela mobilização de parte do capital que está no sistema previdenciário [pensões], para investir em empreendimentos emergentes. E o terceiro é o uso de parte da receita pública, gerada pelos tributos regressivos, sobretudo o IVA, para financiar o investimento estratégico de longo prazo.
Quinta vertente.
A reorganização radical do ensino público. Um ensino que abandonasse de vez o enciclopedismo ornamental, a memorização enciclopédica. O ensino geral deve ser analítico, focar o básico: análise verbal e análise numérica. Deve ser dialéctico, deve apresentar toda a matéria sob pontos de vista contrastantes. O objectivo é equipar a mente, é formar uma nação de inovadores e experimentalistas.
Sexta vertente.
Inovar na provisão dos serviços públicos. Os serviços públicos constroem gente.
Sétima
A sétima vertente é a construção do Estado. O Estado capaz de executar uma alternativa como esta não existe hoje em Portugal. E só vai ser construído no meio do caminho!
Como assim?
Há três agendas distintas associadas a três séculos diferentes, que teriam que ser executadas simultaneamente. Há uma agenda do século XIX, de formação de um serviço público, uma burocracia profissional e meritocrática. Há uma agenda do século XX, de eficiência administrativa que tem que ter um significado diferente quando a forma de produção é pós-fordista. E há uma agenda do século XXI, de experimentalismo na Administração Pública, como no exemplo que eu dei, do engajamento da sociedade civil independente na provisão dos serviços públicos.
Oitavo aspecto.
Repensar a relação com a Europa. Portugal tem de aliar-se a outros países da periferia europeia do sul e do leste europeu para forçar a uma mudança no sistema, que só vai ocorrer se houver um projecto nacional forte que pressione.
Portugal pode também desenvolver grandes iniciativas geopolíticas com a África e com o Brasil, no Atlântico, que complementem as suas iniciativas europeias.
Depois de ouvir as suas linhas de orientação, fico a pensar num tema já abordado: a da ausência de um ideário que cosa todos estes elementos, e, sobretudo, que convoque as pessoas, as mobilize.
É verdade, não há uma tradução dessa base em ideário programático e em caminho político. E há grandes inibições. A primeira é a falta das ideias. A intelectualidade portuguesa está vergada sob o jugo do colonialismo mental e a grande maioria representa escolas de pensamento dos países metropolitanos. Ou é a ciência social num estilo americano de um lado, ou é o neo-marxismo do outro lado. As duas são iguais na falta de imaginação estrutural.
A outra inibição é intangível, é no plano moral. Um projecto como esse contém uma pretensão de grandeza. Grandeza colectiva, grandeza para o indivíduo. E a ideia da grandeza é perturbadora.
Tem argumentado que Portugal precisa de reconciliar-se com a ideia da grandeza. Como traduzir isso?
Que Portugal, que está de joelhos, se levante, que se rebele. A grandeza nasce do casamento da rebeldia com a imaginação.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014