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Anabela Mota Ribeiro

Rodrigo Costa

22.01.15

A conversa tem um tracejado errático, caótico, com digressões permanentes. Estávamos na infância e logo avançámos para a Microsoft. Estávamos em Seattle e logo avançámos para os pescadores da Fonte da Telha. Estivemos no mundo todo. E na vida toda. Num emaranhado sem fim. Com alegria. A viagem tem de ser simpática. Uma cena catita. Vivemos, logo existimos, logo temos de nos mexer – Rodrigo Costa dixit.

E isto, posto assim, parece de uma displicência que na verdade não existe. Rodrigo Costa sabe bem que sobre a vida dele, decide ele. É só pés na terra e mãos na enxada. Ou no remo. Ou no teclado. “A vida é um bocadinho como o barco, o vento e o mar. Não vale a pena andar muito contra o vento e a corrente.”

O vento que lhe corria de feição era o dos sistemas de informação. Hoje, é CEO da ZON. Passaram 30 anos, entre uma coisa e outra. As tais viagens, o mapa todo riscado. Uma aventura. “Há momentos de maior sacrifício. Viajar de país para país, encontrar casa, trocar de casa, vender a casa, tirar a mobília, visitar os amigos, abandonar amigos, arranjar novos amigos, perder amigos…”.

É casado com a Luísa, têm três filhas adolescentes. Percebe-se que é feliz. “Sou um sortudo”.

Um sortudo que fala, fala, fala. Com uma energia que contagia. Às vezes com uma energia feroz. Mas não chega a morder. Nem por isso é menos impiedoso. É o que tem que ser. Não tem corrido mal.

 

 

Quando se despediu da Microsoft, os seus colegas prepararam-lhe um álbum de fotografias, assinalando os momentos da sua vida na empresa. Há “capítulos” subordinados a temas como “Vision”, “Ambition”, “Dream”, “Power”.

Sonhar e Visão têm mais que ver comigo do que Poder e Ambição. O Poder não me move. Não faz parte das coisas que me fazem mexer. Gosto de [ter] influência. Sou teimoso, sou uma pessoa de projectos. Gosto de criar coisas novas e gosto de agarrar projectos já existentes, mas onde acho que posso…

 

Deixar a sua assinatura?

Não é tanto isso. É fazer parte do grupo que muda. Não sou de rasgos solitários, sou uma pessoa de equipa. Aquele golpe de asa de, do zero, fazer um milhão, não sou desse tipo. Não tenho fortuna, nem nada que me faça dizer: sou fantástico. Sou regular, gosto de trabalhar, tento fazer as coisas bem feitas. Gosto de desafios complicados. Quanto menos chances tenho de vencer, mais motivado estou. Gosto de competir. Motiva-me muito andar à frente dos outros, apanhar os outros, ultrapassar os outros.

 

Como se isto fosse uma corrida permanente?

É. Mas a vida tem de ser uma corrida simpática. Não gosto de confronto com sangue.

 

O que é que gosta que esteja em jogo nessa competição?

Talvez que seja reconhecido o trabalho que essa equipa faz. A notoriedade da equipa: a diferença, o vencer quando vencer é difícil, o ganhar quando as apostas em nós são mais pequenas.

 

O que é que o faz ir a jogo? Como é que se envolve num projecto? No fundo, pergunto pelos critérios e mecanismos da escolha.

Dou um exemplo: estive 11 anos em Portugal na Microsoft. Tive o prazer de fazer o lançamento e vivi a dificuldade de criar motivação, contratar pessoas, despedir pessoas. Vivi o ciclo completo da vida de uma empresa. Fartei-me. Eu repetia ciclos, e a empresa precisava que viesse uma pessoa diferente. Precisamos de ruptura. E decidi sair antes de saber para onde é que ia.

 

Para um português, o quadro da estabilidade é um sonho que os nossos pais nos incutem.

Não vamos ser hipócritas: quando temos uma vida profissional que corre bem, quando sentimos que já temos algum conforto financeiro, o risco é reduzido. Podia estar um ano, cinco anos sem trabalhar. Podiam correr mal um ou dois projectos. Não sou um aventureiro.

 

O primeiro milhão já lá estava. Não me refiro ao quantitativo, mas a uma base a partir da qual é sempre possível multiplicar.

Sempre vivi com o que tenho. Não gasto o que não tenho. Nunca mais me esquece que comprei a minha primeira casa, com a minha mulher, no início da minha vida profissional. Era um apartamento em Carcavelos. Houve qualquer coisa que correu mal no timing da concessão do empréstimo; eu tinha de fazer a escritura e não tinha o empréstimo garantido. O meu pai acabou por me ajudar a resolver o problema. Em 1986, ganhava 38 contos por mês e isto foi um momento decisivo.

 

Porquê?

Porque vivi atrapalhado três ou quatro semanas com a ansiedade de saber se ia conseguir o empréstimo para comprar a casa. Serviu-me de lição: não posso, não faço.

 

Voltemos à necessidade de mudança e aos mecanismos da escolha. O dinheiro determina a escolha?

Fui para a Microsoft em 1990 ganhar bastante menos do que ganhava. Fui porque acreditei que me ia dar bem. Gostei das pessoas que conheci. Deram-me (quase) carta branca.

 

Era a primeira vez que lhe davam carta branca?

Era. Era um salto no escuro. Eu estava à procura de uma coisa diferente

 

Como é que percebe a sua necessidade de mudança?

O maior risco é ficarmos cansados. Cansados de fazer uma coisa, cansados de um relacionamento, cansados de olharmos uns para os outros todos os dias. É um detalhe, e é muito, muito importante: saber qual é o momento certo para sair – antes que seja tarde demais.

 

É um processo intuitivo? Disse que é um racional.

Confio na minha intuição. Não me engano muito na avaliação das pessoas. Ao longo da vida, já contratei centenas e centenas de pessoas, também já despedi centenas de pessoas, de todas as raças, de todos os feitios, de muitas culturas diferentes. E a avaliação das pessoas é uma coisa que acho que faço bem.

 

Se são mais Power e Ambition ou mais Vision e Dream?

Pois. Não acredito que as empresas possam ser feitas só de Rolls-Royce. O ambiente tem de ser muito eclético. A mecânica das relações é uma coisa fascinante.

 

Gosta de teatro?

Gosto.

 

Gosta de pôr em cena, fazer contracenar personagens.

Mas a vida é um teatro. É cenários, produção…, nós actuamos todos os dias.

 

Olhando para o seu passado, deixe-me entender porque é que esta é a sua peça de teatro. Porque é que este é o enredo.

A nossa família é bastante tradicional. Vivíamos no Porto – ainda me lembro da casa onde vivíamos. Nasci em Viatodos, porque a minha mãe decidiu que eu ia nascer a casa da minha avó, numa quinta entre Barcelos e Famalicão. O meu pai trabalhava na agência Abreu e veio abrir a agência de Lisboa. Portanto, com quatro anos vim para Lisboa. O meu irmão já nasceu em Lisboa, a minha irmã nasceu no Porto. Somos todos diferentes, com percursos profissionais diferentes. O meu pai e a minha mãe estão vivos, têm 80 anos. O meu pai trabalhou sempre muito. Olho para a minha história e vejo os mesmos defeitos: uma pessoa envolve-se na parte profissional de tal maneira que acaba por encontrar nisto…

 

Uma razão de existir?

De maneira nenhuma. A razão de existir? A gente está viva, logo existe, logo tem que se mexer. Não vivo para trabalhar. Se tiver que trabalhar 16 horas por dia, trabalho. Mas se pudesse não trabalhar 16 horas por dia, não trabalhava. Se tiver que viajar metade do ano – como já aconteceu – viajo. Mas se puder não viajar metade do ano, não viajo. Faço o que tenho a fazer para cumprir com as minhas obrigações.

 

O seu pai foi um trabalhador incansável, dizia.

O meu pai, enquanto estudava, foi aprendiz de um tio nosso na fábrica de cerâmica. Aprendeu a arte da pintura à moda antiga – trabalhando com o mestre. Mais tarde decidiu ir para o seminário, depois decidiu sair, depois foi para a tropa. O seu percurso fez-se na área das viagens. Reformou-se aos 60 e tal anos e voltou a pintar. Uma coisa que me marcou muito foi a sua obsessão pela honestidade. Honestidade é a palavra certa; porque não se trata, apenas, de não roubar ou de falta de transparência. É uma obsessão em ser sério, e que toda a gente entenda que somos sérios.

 

Deduzo que seria ignominiosa qualquer mancha que pudesse cair sobre a sua reputação…

A coisa que mais me satisfaz é pensar que vou fazer 50 anos e que nunca fiz uma vigarice. Conseguir ser bem sucedido empresarialmente sem cometer desonestidades é uma das minhas maiores satisfações. Nunca tive de ferir os meus valores. Os meus pilares, as raízes, são muito fortes.

 

O seu pai sente mais orgulho em si por ser um cumpridor e continuador desse princípio de honestidade do que pelo seu sucesso profissional?

Nunca falo por ninguém. O orgulho que eu tenho nele é o orgulho que ele terá em mim. Somos pessoas simples e não há essa preocupação de saber o que é que o outro sente nessas matérias.

 

É um dado adquirido?

É. Mas não tenho dúvida que ele sente prazer em saber que o filho é sério. Como eu tenho um grande prazer em olhar para os quadros que ele pinta, ou para o seu percurso profissional.

 

Talvez a transparência que reclama às suas equipas radique aí, nesse princípio de lisura.

Tenho uma necessidade obsessiva de transparência em relação àquilo que se faz, obrigo as pessoas que trabalham comigo a criar uma cultura de comunicação aberta. Não me coíbo de dizer nada, e às vezes sou rude. Vivi muitos anos numa empresa onde o estatuto não é um impedimento da comunicação aberta. Desde que haja respeito, uma pessoa pode dizer o que quiser. Ponho muita energia naquilo que faço. E com os anos percebi que isso quase amedronta… Muitas vezes, acabo a conversa a dizer: “Ouça, não se assuste. Isto não é nada contra si. Não mordo”.

 

É feroz, mas não morde.

É uma boa definição. É óbvio que isto é mais fácil de dizer do que de acontecer. As pessoas inibem-se.

 

Em Portugal, onde há a cultura da subserviência, mais do que na América?

Não. Em todo o mundo somos todos iguais, respondemos da mesma maneira aos mesmos estímulos. Toda a gente aprecia seriedade, todas as pessoas gostam de falar, todas as pessoas gostam de ser ouvidas. Nada como uma experiência de vários países para cimentar isso que é tão importante – saber ouvir.

 

Somos todos iguais? E os mitos sobre as especificidades de um povo?

Um suíço é mais reservado, um alemão é mais mecânico, um latino é mais gestual, um chinês é mais desconfiado, um japonês é mais rigoroso, um coreano é mais ambicioso. Há muitas coisas diferentes, de país para país, mas a realidade é que competência é competência. Um bom engenheiro de tele-comunicações é um bom engenheiro de tele-comunicações em qualquer uma destas regiões – ponto final. Um vigarista é um vigarista em todo o lado. Roubar é roubar, enganar é enganar, passar a perna é passar a perna. Independentemente da cor, da raça, do credo, somos mais parecidos uns com os outros do que se imagina. Somos mais iguais do que pensei que éramos.

 

Lembrei-me novamente das fotografias que me mostrou antes de começarmos a gravar. Aquelas pessoas integram um grupo de elite.

Há pessoas que têm jeito para correr, há pessoas que têm jeito para Física ou Medicina. A palavra elite não é a mais adequada. Umas estão bem preparadas, outras não. Eu, em termos académicos, não tenho o percurso convencional.

 

Não ser licenciado pesa-lhe?

De que é que me posso queixar? Francamente não vou estar aqui a queixar-me. Trabalhei muito? Trabalhei. Se tivesse feito a minha licenciatura podia fazer as mesmas coisas e trabalhar as mesmas horas. Não vou dizer que foi um drama não ter feito a licenciatura. Há pessoas que têm consciência de qual é o seu talento e aos 16 já sabem o que vão ser aos 80. O curso que gostaria de ter feito quando acabei o liceu era Geologia.

 

Que inesperado.

Os movimentos tectónicos, os tremores de terra, as mudanças no clima: sempre me fascinaram. Mas apanhei os anos do propedêutico. Ia ter um ano de hiato que não era compatível com a minha maneira de ser. Não tinha a consciência disto assim, mas sou inquieto, não sei o que é estar parado. O meu liceu foi ocupado, as passagens foram administrativas, estava mal preparado na Física e na Matemática. Por coincidência, uma amiga ia fazer um curso de programação de computadores. Decidi que ia fazer também. Para ter uma ocupação.

 

Uma coincidência que mudou o curso da sua vida.

Nessa formação, em 1978, descobri que havia ali uma coisa de que gostava muito – computadores.

 

O que mais o fascinava era a programação. Ou seja, a ideia de construção de uma rede.

Era uma ciência nova. Ser programador de computadores em 78/79 era fazer parte de uma classe à parte. Programar um computador, há 30 anos como hoje, trata-se de passar uma ideia concreta que se tem na cabeça para imagens, números, cálculos, análise, estatística. Saber explicar, saber programar é um desafio intelectual fabuloso. A nossa inteligência não é senão um software muito sofisticado e com vida própria – é a única diferença que tem das máquinas. O meu trabalho é ter a certeza de que temos o grupo de pessoas certo, que no conjunto das suas competências consegue desenhar um caminho e construí-lo. Como, no fundo, é programar.

 

Há nisto uma dinâmica teatral… Personagens, enredos, comunicação, interacção.

Hum… A nossa vida é previsível. É fácil, se estamos num determinado lugar, se dispomos de certas ferramentas, levá-la para determinado caminho.

 

Está a dizer que é o autor do seu enredo… Voltemos a 78 e ao início de uma vida fulgurante para si.

Uma vida normal – a sério.

 

Em 77, todo o seu percurso era imprevisível.

Fulgurante? Vamos lá ver: vidas especiais são as das pessoas que mudaram o mundo.

 

Esses são quem? O Churchill?

Tantos. Cientistas. Os grandes pintores. Os grandes escritores. Um ou outro muito grande empresário – é menos sobre o dinheiro e mais sobre mudar paradigmas.

 

O Bill Gates é uma pessoa especial por mudar o paradigma e não pelo seu dinheiro?

Sem qualquer dúvida. O dinheiro é uma consequência de uma pessoa ter mudado o mundo numa área que produz dinheiro. Outros mudaram o mundo numa área cultural. O Leonardo Da Vinci: ninguém pensa se era rico ou não era rico. Daqui a 1000 anos ainda se falará de Rafael ou de Beethoven; não sei se daqui a 1000 anos se falará do Bill Gates. Pode-se falar que enriqueceu por ter mudado o paradigma, mas o paradigma é que é importante.

 

Ser o homem mais rico do mundo parece o cognome do Bill Gates.  

Nesta matéria sou suspeito. Quando o conheci, ele não era o homem mais rico do mundo. Ser o mais rico do mundo não o fez vibrar em nenhum minuto. O que o faz vibrar é a influência na mudança de um paradigma. Esse é o grande drive do Bill. Como agora é estabelecer-se como paradigma em matéria de filantropia. Fulgurante? Uns ganham mais dinheiro, outros ganham menos, uns têm mais visibilidade, outros têm menos.  

 

É uma noção que tem agora?

Sempre a tive.

 

Era bastante normal existir um certo deslumbramento. Por estar num grupo de elite (ainda que não goste da expressão), viajar pelo mundo.

Convivo com gente que tem experiências de vida tão diversas e abrangentes como a minha.

 

É one of them.

Sim. Mas não é uma elite. São muitos milhões de gestores a quem a vida profissional correu bem. Não meço o sucesso pelo sucesso financeiro. É preciso manter os pés na terra.

 

Como é que era em criança?

Devia ser uma criança normal. Não tenho memórias de eventos muito antigos. Sou um ser normal, sem grandes histórias para contar. De que é que me lembro? Que sempre fui irrequieto, que gostava de estar fora de casa, que gostava de estar em grupo. Há um episódio que me deu uma grande lição: tinha 16 anos quando deixámos a casa de Campo de Ourique (que foi emprestada a um tio) e fomos viver dois anos para a Costa [da Caparica]. Ia para a praia e como estou sempre a dar à língua acabei por meter conversa com os pescadores de Fonte da Telha. Fizemos uma grande amizade e ao fim de uma semana ou duas convidaram-me a pescar com eles no Verão. Disse ao meu pai que ia ser pescador. E nos meus 16, 17 e 18 anos pesquei.

 

Porque é que um rapaz de classe média, de quem se espera uma carreira académica, decide passar os Verões a pescar?

Foi um desejo de querer ser diferente, de não percorrer os mesmos caminhos que todos percorriam. Os meus amigos, o que queriam era sair à noite, com as namoradas, ir para as festas; mas eu queria ser pescador. Se calhar, era uma forma de rebeldia. No primeiro ano, era um ajudante de pescador; depois achei que puxar as redes era monótono, e um trabalho de segunda categoria. No ano seguinte, pedi para remar…

 

Porque é que essa aprendizagem foi tão marcante?

Sempre fui pesado, tinha um corpo que se ajustava às necessidades de um remador. A minha actividade de tempos livres acabou por tornar-se, quase, profissional. A lição é a seguinte: a partir do momento em que o barco passa o início da rebentação das águas, não se pode desistir. Não se pode dizer: “Quero desistir”. Um remador não pode dizer: “Dói-me o braço”. Quando o mar está bravo, se o barco vira, as pessoas ficam enroladas nas redes e morrem. Ou seja, há coisas que quando a pessoa se mete a fazê-las não pode desistir, tem de levá-las até ao fim. [Aprendi ali] o esforço, a coordenação, o trabalho de equipa, a coragem, o não desistir, o ver beleza em qualquer tipo de pessoa…

 

Sobre que é que falava com esses homens do mar?

Não faço ideia. Imagino que estas pessoas falassem da sua vida. Imagino que eu tenha também aprendido a não falar de nada.

 

Referiu o facto de os seus amigos saírem e estarem com namoradas enquanto ia para o mar. Ser pesado, ter este físico, teve que ver com isso?

Não!! Sempre tive namoradas, e casei-me e divorciei-me, e casei-me outra vez. Gostava se ser mais magro, mas vivo feliz como sou.

 

Nem inconscientemente isso interveio?

Não, sempre consegui conciliar tudo bem.

 

Para se decidir, na adolescência, seguir um caminho alternativo e não fazer o caminho do carneiro, é preciso estar seguro de si, ter auto-estima.

Vai-se construindo, a auto-estima. A confiança nunca é total. Mas, ou nos resignamos ao pão com manteiga, e fazemos tudo igual, sem riscos ou mudanças; ou então somos inquietos e estamos atentos aos sinais exteriores de monotonia. Quando fomos para o Brasil, não foi porque quisesse ganhar mais e ser um ás da gestão. Foi, pura e simplesmente, porque queria fazer qualquer coisa diferente.

 

Queria pão com queijo.

Ou fruta. Mudar de ares enriqueceu muito a nossa vida. Nos primeiros seis meses de Brasil, estive sozinho. Porque as miúdas tinham escola e não podiam mudar naquela altura. Nunca fiquei um fim de semana lá! Apanhava um avião à sexta, às seis e meia da tarde, e vinha a Lisboa. Fazia a vida com os meus amigos, jogava o meu golf, estava em casa com a família. Segunda de manhã apanhava o avião para S. Paulo. Chegava às quatro da tarde e depois trabalhava dia e noite; às vezes apanhava o helicóptero de uma ponta da cidade a outra para poder trabalhar mais umas horas. As pessoas perguntam-me como é possível… O contrário, não poder vir a casa e fazer aquilo que o instinto me mandava fazer, isso é que me ia custar muito.

 

Como é que foi de S. Paulo para Seattle?

Fui fazer um projecto de transição em S. Paulo, de dois ou três anos. E viajava muito. Decidi a sucessão, e estava preparado para voltar a Portugal. Foi então que me convidaram a ir para os Estados Unidos.

 

Imagino que na América se tenha sentido em casa.

Particularmente em Seattle. É uma terra bonita, organizada, com gente com quem tive muita amizade. Saímos há três anos e vamos lá visitar os nossos amigos. Fiquei com uma filha a estudar na Califórnia. Em termos profissionais, foi muito gratificante.

 

No seu mapa entram sobretudo três cidades: Lisboa, S. Paulo, Seattle. E viagens constantes pelo mundo todo. A sua vida é uma viagem permanente?

Não. Tudo tem timings ideais para acontecer. Tenho pena de não ter ido para fora mais cedo. Passei demasiados anos a fazer a mesma coisa. Sou um emigrante tardio. Fui para o Brasil com 42 anos. Em 2001 tinha a estabilidade que me permitia assumir alguns riscos, as miúdas estavam com a idade certa para viajar. A minha filha que tem 10 anos já viveu em três países diferentes. É uma sorte. Eu, aos 10 anos, ainda não tinha saído do país.

 

O seu discurso é muito positivo, efusivo até. Nunca teve uma depressão?

Não. Às vezes tenho raiva, às vezes estou chateado.

 

O que é que o enraivece?

A injustiça. A desigualdade social aflige-me, a incompetência exaspera-me, a falta de profissionalismo irrita-me. Gostava, no futuro, de dar um contributo maior em relação ao que nos envolve.

 

O que é que o pode deitar abaixo?

A coisa que mais me deitou abaixo foi perder pessoas. Mas tenho um grande auto-controlo. Tenho um amigo que diz: “Só me chateio se quero”. Eu sou um bocado assim. Quase sempre consigo desligar-me. Umas férias boas podem ser de um dia.

 

A sucessão de Henrique Granadeiro: deixou-o enraivecido ou infeliz?

A mim? De maneira nenhuma.

 

Falava-se muito da disputa fratricida entre si e o Zeinal Bava.

Somos pessoas muito diferentes. Não o conheço muito bem nem ele me conhece bem a mim. Tenho imenso respeito por ele – e não há nisto qualquer cinismo ou hipocrisia. No dia em que foi eleito dei-lhe os parabéns pela nomeação. Como lhe disse, a minha vida não é feita de lugares ou de promoções ou de querer ser isto ou aquilo. A vida ensinou-me que, se fizermos as coisas bem feitas, o reconhecimento acontece. Não é só o cargo, não é só o dinheiro.

 

O que persegue, então?

O que importa é a satisfação. Eu estou aqui por opção. Não estou aqui por despromoção, ou porque era o que havia, ou porque precisava. Houve um convite, mas eu mando na minha vida. Eu decido o que faço. É óbvio que decidi porque a oportunidade existiu, e tenho muito reconhecimento por quem me convidou para estar aqui. Mas, com toda a franqueza, nunca me propus para um lugar numa empresa. Começámos a conversa por Ambição, Poder, Sonho e…

 

Visão.

Sonho, sim. Visão, sim. Alegria, sim. O querer ser? Não vou atrás de coisa nenhuma. Vivo bem com o que tenho. Possivelmente é o meu mecanismo de auto-defesa a funcionar… E por isso não tenho depressões. Acho que devemos ser boas pessoas, que devemos ajudar. Temos de aceitar que não controlamos tudo na vida. Temos de aceitar que somos muito mais comuns do que imaginaríamos. Há colegas meus que vivem os sucessos da carreira de outra maneira… Eu não.

 

É um normal one e não um special one.

Completamente normal one! Sou um fraco conjugador do “eu”, sou um melhor conjugador do “nós”. A vida é mais divertida quando temos com quem partilhar e celebrar. É mais divertido do que o pedestal. Isso também deve ter que ver com o tamanho do ego. Eu tenho algum, mas não é tão grande quanto isso.

  

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008