Rui Cardoso Martins (2015)
Rui Cardoso Martins, 48 anos, nasceu em Portalegre. É escritor. O seu último livro chama-se “Levante-se o Réu”, edições Tinta-da-China, 2015. São crónicas de casos verdadeiros de tribunal, mas às vezes parecem inventados. Acredita, repetidamente, que o mais importante são as pessoas.
Assistimos à erupção de casos de violência no país. Vizinhos desavindos, maridos a matar mulheres, pessoas a perder a paciência. Muita gente pobre. No fio - como se dizia de um tecido puído. Vai rebentar? Que rebentamento?
Vai ser interessante conhecer, nas estatísticas, os resultados sociais e criminais de quatro anos de ideologia (podia dizer política, se fosse ingénuo) tão focada no corte de serviços e de despesas públicas, na perseguição aos desempregados e pensionistas, e na destruição da classe média, dos pequenos negócios familiares que equilibravam a sociedade portuguesa. Este equilíbrio era relativo e escasso, claro, mas era algum.
A minha experiência pessoal e profissional nesse terreno da violência (por assim dizer) é alguma, uma vez que durante 17 anos acompanhei os tribunais e escrevi semanalmente sobre o assunto.
As crónicas desse tempo estão reunidas no seu último livro, “Levante-se o Réu”.
Vizinhos desavindos, maridos a matar e a espancar mulheres, a destruir a vida de filhas e filhos, pessoas a perder a paciência sempre houve. Muitos desses casos só deixaram de ser silenciados quando a violência doméstica passou a ser crime público. Isto é, a mulher, a filha, deixaram de poder desistir da queixa no próprio julgamento, o que acontecia com frequência.
A pobreza sempre fez parte de Portugal e foi absurdo deixar crescer as desigualdades a este ponto e alterar os tecidos sociais em tão pouco tempo. Um amigo que trabalha numa comissão de protecção de menores em risco diz-me que por cada técnico especializado que é afastado de uma família com problemas, aumenta exponencialmente o número de casos, como as violações e assassínios de crianças. É só esperar para ver.
A factura vai aparecer adiante?
O barato sairá muito caro a Portugal e aos portugueses mais frágeis. O desemprego puxa o alcoolismo e a fome, por exemplo.
Creio que esta questão se liga, lateralmente, a uma célebre frase de Pedro Passos Coelho, o mesmo que agora promete “colocar as desigualdades sociais e económicas no topo da agenda política nos próximos anos”. A seguinte ideia ficará para sempre com ele: os Estados devem fazer tudo para salvar vidas “mas não custe o que custar”. Cada vida que rebenta é uma grande explosão. Atinge os que estão à volta, como as granadas na guerra. Rebenta o futuro de muitas pessoas. Na minha modesta opinião, que nada tenho contra pagar contas e baixar consumos inviáveis (e no entanto a dívida pública aí está, cada vez maior), o mais importante são as pessoas.
O colapso do BES e da PT: já integrámos o que aquilo foi? Com esta distância, acha que Carlos Costa fez bem em rachar o problema ao meio?
Não sei se o governador Carlos Costa fez bem em rachar o problema ao meio, mais sei o que fez muito mal. Não devia, nem de resto o Presidente da República Cavaco Silva, ter enganado as pessoas que investiram na recapitalização do BES, ao garantir que era um valor seguro, e depois deixar cair quem perdeu as poupanças todas da vida, como se a culpa fosse só delas e de Ricardo Salgado. O caso do BES e da PT veio mostrar a que ponto as grandes instituições financeiras portuguesas estavam minadas pela corrupção e incompetência.
Recentemente, o banco bom anunciou um prejuízo de 252 milhões. Quem pagará, por fim?
O Governo mente quando diz que os contribuintes não vão pagar estes desastres. Vamos pagá-los, cêntimo a cêntimo, com maior dívida (o défice gigante aí está outra vez) e mais impostos, quando se perceber que ninguém no mundo quererá o Novo Banco a não ser dado, no ano que vem.
Quais são os grandes desafios da próxima legislatura? Pagar a dívida, resolver o problema da justiça, dar alento ao quotidiano das pessoas? Outras prioridades?
Os grandes desafios da próxima legislatura dependem evidentemente de quem ganhar. Não sei quem vai ganhar. Espero que não ganhe a coligação PàF porque, pessoalmente, enervam-me os mentirosos compulsivos. Pagar a dívida sim, mas sabendo negociar os evidentes abusos dos juros e prazos da troika e de quem jurou “ir além da troika”. Resolver o problema da Justiça, acelerando os insuportáveis prazos e sedes de recurso e diminuindo os truques jurídicos. Derrotar a ideia de que uma injustiça como a dos lesados do BES se possa combater na Justiça com uma ridícula subscrição pública de cidadãos, coisa que o primeiro-ministro lançou, para logo se desdizer.
Uma esmagadora maioria dos portugueses perdeu parte dos salários, reformas, rendimento, conforto. Qual é a sua definição de pobre na conjuntura actual?
O país, como as estatísticas mostram, empobreceu muito nestes quatro anos. Antes, o governo de José Sócrates (deixo de fora os problemas criminais e narcísicos dessa curiosa personagem) nunca se precaveu, económica e politicamente, para a hipótese de haver uma grande crise mundial nascida da especulação financeira nos Estados Unidos. Mas a cura de empobrecimento da coligação PSD-CDS foi histérica, ideológica, e totalmente de acordo com o pensamento mesquinho e esotérico dos famosos mercados, agências financeiras e da União Europeia.
Havia como escapar, como ser de outra maneira?
Por mais que nos digam que tinha tudo de ser assim, foi vingança e punição. E os resultados uma miséria, se fizermos as contas no fim. Dito isto, a definição de pobre está sempre a mudar e a descer pela ribanceira do seu próprio significado. Uma criança síria em fuga, sem tecto, nem liberdade, nem comida quente, nem duche, nem país, morta no mar ou presa no arame farpado: isto é ser o mais pobre dos pobres. Mas atenção, casos extremos não devem servir para justificar a pobreza geral.
O afastamento da população em relação à política não é novidade. Como fazer a renovação e reaproximar o cidadão da res publica?
Dava jeito, por exemplo, um primeiro-ministro que ao menos tentasse cumprir as promessas que fez na campanha eleitoral. Com isso comprometia aqueles que concorreram a seu lado e aqueles que saíram — num dia cheio de jogos de futebol — para ir votar e escolher os futuros deputados da nação.
O mundo não é o que era. Veja-se o que aconteceu na China, com a bolsa a provocar tremores de terra. Nos EUA há o aparente entretém Trump enquanto Obama faz grandes mexidas. Mais grave que tudo, a Europa a desmoronar-se? A crise de refugiados é um sintoma disso?
Se a China é o que agora parece (uma bolha de sabão inflacionada nas bolsas), estamos em grave perigo. Se Donald Trump ganhasse as eleições nos EUA, nem os programas de humor sobre o perigoso e ridículo e candidato me deixariam melhor. Quanto aos refugiados, a Europa tem de acolher as famílias que fogem à guerra e à morte, ou nada disto por que lutámos depois da II Guerra faz qualquer sentido.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Outubro de 2015