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Anabela Mota Ribeiro

Rui Moreira

04.03.16

É ainda o “jovem presidente da Associação Comercial do Porto”. É um homem rico que viveu com emoção e aflição não ter tido dinheiro no período revolucionário. É aquele que aprendeu a viver com frugalidade. É aquele que vive numa casa maravilhosa, Alvarez num canto, Julião Sarmento no outro, a piscina e os cães lá fora. É um menino bem a quem a vida correu muito bem.

Licenciou-se em Gestão de Empresas na Universidade de Greenwich. Foi o melhor do curso. Aos vinte e sete anos era um armador que não queria ser como Onassis. Queria que todos se tratassem por tu no escritório. O pai dizia-lhe, às vezes, “O menino está a desapontar-me”. Ele diz que tinha com ele uma relação de intimidade e cumplicidade, que são palavras raras, mais do que parece, numa relação pai/filho. Não desapontar o pai foi, durante anos, o seu propósito.

Depois adoeceu e tudo mudou. Um menino bem a quem a vida correu muito bem? Depende da perspectiva. Safou-se – como ele diz. Usa palavras caras e outras como safar-se com grande à vontade. À vontade social. E com o à vontade de quem lê muito.

Foi campeão de vela. Do seu currículo fazem parte condecorações e confrarias (membro de), clubes de que é sócio. Aparece todas as semanas na televisão a discutir futebol – coisa que, segundo um amigo, o desprestigia. Porque o faz? Ele responde na entrevista. Tem um cargo aqui e outro acolá. É fundador disto e daquilo. Tudo tem a patine do honorífico. Tem o conforto do dinheiro. Uma coisa que muda muito a maneira como se está.

Um menino bem a quem a vida correu. Corre. Uma formação sólida. Uma fortuna sólida há três gerações. Uma tranquilidade de quem está bem na sua pele – que não é fortuna pequena. Um menino que enriqueceu cedo e que decidiu fazer o que se imagina que se faria se saísse a lotaria: viajar, comprar, divertir-se.

Que vida viverá ele a seguir? Rui Moreira, 52 anos, divorciado, dois filhos (que é o que, para começar, consta do CV).   

 

Rui Moreira                                    

fotografia: Miguel Baltazar

 

 

Há na sua casa um lado dandy e gostava de começar por aqui…

Não serei tão dandy quanto o Miguel Veiga, mas se pensar nas pessoas com quem me entendo melhor, e no mundo com que me entendo melhor, é capaz de ser verdade. Há um aspecto vitoriano nisto. É uma forma de coleccionismo: procurar as peças de que se gosta e juntá-las de uma forma um pouco anárquica. Coleccionar coisas, coleccionar afectos. É uma questão estética, que se repercute na maneira como convivemos com outros, como nos ligamos aos outros. 

 

É, como o Miguel Veiga, ainda que pertencendo a diferentes gerações, um protótipo do menino bem do Porto. Como é que foi tendo consciência disto, de ser um homem do Porto?

De facto, sou de uma família tradicional burguesa do Porto – como o Miguel é. Só tive verdadeiramente a noção de ser um homem do Porto depois de ter vivido fora. Na forma como vejo o Porto e como me consigo identificar com um Porto que, se calhar, já não existe. A minha dúvida é se esta cidade de que falamos não é uma cidade imaginária. Fazemos parte de uma geração que acredita que o Porto é liberal, que é uma cidade com protagonismo, contestatária. No final dos anos 70, era mais cosmopolita do que Lisboa; hoje, perdeu cosmopolitismo. Ainda há alguma avant garde no Porto – nota-se nas galerias, na música – mas o traço dominante já não é esse.

 

Conte-me desse Porto vivido pelos seus pais e que passou para si, mais não fosse nas histórias que contavam, nas pessoas com quem se davam.

Havia dois Portos. Um Porto um pouco mais conservador, que a Agustina retrata, o Porto do Paulo Vallada, da Brasileira e da Baixa; e o Porto dos Santos Silva, dos Sá Carneiro. Era um Porto extremamente tolerante, que procurava. Lembro-me de ir ver com a minha avó uma peça de Ionesco no Teatro Experimental com actores nus em palco – o que, nos anos 60, era um pouco surpreendente. Eu na altura não achava surpreendente; hoje, quando revejo o quadro, rebobino o filme, acho extraordinário. Depois houve problemas, a PIDE foi lá, parece que só houve uma sessão.

 

A geração da sua avó é a mesma de Guilhermina Suggia ou da helenista Maria Helena Rocha Pereira – figuras marcantes do Porto.

Ou de uma Helena Sá e Costa, que foi professora de piano do meu pai. O pai do Artur Santos Silva. Eram pessoas muito inovadoras, surpreendentes. É esse Porto que, apesar de escrever sobre ele, não sei se existe.

 

Corre a história que fez fortuna com um negócio que o seu pai lhe passou para as mãos…

Não é verdade. É um mito urbano. O meu pai teve muitos anos um negócio: foi o homem da Molaflex. O meu avô era armador da marinha mercante; tinha uma fortuna sólida, era herdeiro de uma família tradicionalíssima do Porto; tinha estudado nos Estados Unidos e ficou lá. Foi professor na Universidade de Columbia. Veio para Portugal porque o meu bisavô – pai dele – o chamou na altura da Grande Depressão, a seguir a 1929. O meu avô nunca teve grande jeito para o negócio: não gostava, era professor universitário. Mandou o meu pai estudar Gestão para Inglaterra logo a seguir à [Segunda] Guerra, em 44 ou 45.

 

Para o seu avô era claro que o seu pai tinha de estudar lá fora, que essa ponte com o estrangeiro se fazia assim?

Isso foi sempre claro para nós. Quer eu quer os meus irmãos – somos oito – fomos estudar para o estrangeiro, (excepto um). O meu filho mais velho também se licenciou no estrangeiro. No meu caso, fui quase por obrigação, não me apetecia nada ir.

 

Já lá vamos… Estava a contar a história do seu pai e do seu avô.

O meu pai volta em 1948. Era casado com uma senhora alemã que tinha origem judia. Durante a guerra, o meu avô tinha conhecido um senhor, judeu, que ficou em Portugal e que falou com o meu pai: “Eu tenho uma patente, vocês têm meios para a desenvolver”. A patente era de colchões de molas. O negócio do meu pai foi a Molaflex até depois do 25 de Abril; acabou por vendê-lo em meados dos anos 80. Eu, quando vim de Inglaterra, resolvi que não queria trabalhar com o meu pai.

 

Quis fazer o quê?

O meu pai tinha uma pequena empresa de navegação, que tinha sido na origem do meu avô, e que tinha sido praticamente extinta pelo almirante Américo Thomaz, pelo célebre decreto 100. Essa empresa estava adormecida; o meu pai tinha dois sócios, o António Miranda e o João Mexia Alves. Achei que a navegação era uma coisa interessante. Porquê?

 

Era o seu avô.

Porque tinha sido do meu avô. Comprei a posição ao João Mexia Alves. Não herdei nada do meu pai. O meu pai foi meu sócio até morrer. Até eu vender o E.A. Moreira foi sempre meu sócio; tinha 40% da sociedade e manteve 40% até ao fim. Foi sempre um sleepy partner. Continuou com o seu negócio; o grande negócio da Molaflex eram componentes para a indústria automóvel. Eu, ganhei dinheiro na navegação. 

 

Não por acaso, quando regressou de Inglaterra não quis trabalhar com o seu pai e escolheu um negócio que o levava até ao seu avô…

A empresa de navegação tinha o nome do meu avô. Eu tinha seis ou sete anos quando ele morreu. Era uma pessoa muito marcante. Vivíamos todos na mesma casa, como se vivia no Porto: a minha avó, o meu avô, os amigos que por lá passavam, o meu tio, pai, mãe, os irmãos…

 

Onde era a casa?

Onde é o meu escritório, na avenida Montevideu. O meu gabinete é naquele que era o meu quarto de infância. Curioso, não é?

 

Quando é que deu o salto, e deixou de lhe fazer espécie trabalhar num espaço como esse?

Nunca me fez espécie. O meu pai foi preso a seguir ao 11 de Março de 75 – foi daqueles a quem disseram para fugir e que não fugiu, achou que não tinha feito mal nenhum e resolveu ficar. Tínhamos passado para uma casa mais moderna. Vivia lá um tio meu, solteirão. Uma vez fui visitar o pai a Caxias e ele disse: “Têm de montar algum negócio na casa de família senão ela vai ser ocupada”. E como eu estava a montar a navegação nessa altura…, foi uma maneira de a casa não ser ocupada. Durante anos foi estranho: na casa convivia o meu negócio, que eu geria, com uma data de gente nova, cabeluda, com camisas Levis Strauss, e o meu tio e as empregadas que serviam à mesa… O meu tio morreu cedo, num desastre de automóvel. O negócio foi crescendo e acabámos por ocupar a casa toda.

 

Ganhou uma distância emocional em relação à casa? Aquele passou a ser, simplesmente, o espaço onde trabalhava? Ainda hoje, se pensa nela, pensa-a como?

Os meus irmãos, à medida que foram montando os seus negócios, foram invadindo (no bom sentido) a casa. Fizemos um centro de negócios, compartilhamos a casa e mantivemos algumas salas como elas eram. A sala de jantar continua igual. Ainda tem algumas memórias nossas…

 

Parece consanguíneo…

Incestuoso? Talvez. Se mantenho uma relação incestuosa com a casa? É possível. Mas com a casa não é proibido. [risos]

 

É, no fundo, uma relação incestuosa com a memória da família.

Se calhar é uma forma de nos mantermos unidos. Preservar estas memórias obriga-nos a pensar que aquilo é a nossa casa.

 

Que ideia é essa que querem preservar e à volta da qual querem permanecer aglutinados?

Não acho que haja uma ideia, uma intenção.

 

Pode ser, simplesmente, em torno da memória do seu pai.

A minha mãe foi praticamente filha única (teve um irmão que morreu durante a guerra com tuberculose). O meu pai só teve um irmão, que não teve filhos e que morreu cedo. Crescemos numa família grande de famílias pequenas. Eu e os meus irmãos estamos a experimentar sermos muitos. Isto criou em nós um espírito de clã – que passou para os nossos filhos. Eu não tinha um primo mais velho que me protegesse. Se calhar foi isso.

 

Trouxe à conversa o nome Santos Silva. Nessa família, como na sua, tanto quanto sei, o diálogo fazia-se sobretudo com a geração anterior e menos com aqueles que fazem parte da mesma geração.

Sim. Como sou o mais velho, vivi numa casa em que não havia crianças. Vivi numa relação em que todos eram mais velhos. Vivi numa relação em que os adultos se preocupavam muito connosco. O meu tio, talvez por não ter filhos, era uma pessoa muito preocupada. As minhas duas avós ficaram viúvas muito cedo, e, cada uma à sua maneira, uma alemã e uma portuguesa, achavam que aquilo que aprendíamos era muito incompleto.

 

A sua avó alemã falava em alemão consigo? Foi por causa dela que foi para o colégio alemão?

Falava sempre. E o meu pai, quando queria falar em privado comigo, falava também em alemão – quando havia gente à volta, se íamos ao restaurante... Engraçado: tratava-o por tu em alemão e por você em português. Não sei explicar porquê.

 

Por causa da construção da língua?

Não forçosamente. Em alemão, como em português, há tu e há você. A mim, em alemão tratar-me-ia sempre por tu, em português dependia; normalmente tratava-me por tu.

 

Isto vinha a propósito de comprar uma empresa de navegação, que “desaguava” no seu avô…

Com o meu avô: [fazia parte do meu] imaginário, o meu avô ser muito velho e eu ser pequeno, e contar que teve de vender os seus últimos navios. Era um homem vencido, derrotado – por terem-no impedido de fazer uma coisa que ele achava que fazia bem. Tenho memória das grandes cheias do Porto em 1961/62, de ter ido ter com o meu avô ao Infante, e de ter vindo com ele e com o chauffer no Peugeot 403, de pararmos para ver os navios (alguns vinham soltos pela barra abaixo); e de ele ter dito assim: “Isto aos meus navios já não acontece”. Nunca mais me esquece. O meu pai, a partir daí, odiou negócios de navegação e nunca acreditou [neles]. Quando eu decidi que queria ser armador e ter navios, fez-lhe uma confusão enorme. Achava que tinha corrido muito mal à família. Era um negócio um pouco maldito.

 

Porque é que acreditou que não ia ser um vencido?, que podia quebrar essa maldição.

Nesse tempo em que o pai esteve preso, interrompi o curso na universidade. Depois retomei. Expliquei em Inglaterra o que se passava; ficaram muito admirados, não conseguiram perceber que num país europeu houvesse presos políticos. Vim para cá e onde senti que podia ser útil foi nesse escritório; a fábrica, entretanto, tinha sido intervencionada. Achei que aquilo tinha pernas para andar. Algumas pessoas que conheci em Inglaterra tinham negócios de navegação – mais ou menos por coincidência. Fui até à Noruega e Alemanha. Era um tempo extraordinário para a navegação porque foi o tempo dos contentores – em 75, em Portugal, não havia contentores.

 

Houve uma determinação sua. Onde radica?

Houve, sempre acreditei, e trabalhei imenso. No final dos anos 70, Portugal era uma terra de oportunidades. Porquê? Muito tinha sido nacionalizado, muita gente tinha fugido, os grandes grupos económicos ainda não eram tão omnipotentes e conseguia-se respirar.

 

Como é que ficaram as finanças da família com a revolução?

Muito mal. O que tínhamos em África, perdemos de um momento para o outro. Tínhamos uma grande empresa em Angola semelhante à Molaflex. Aqui, a empresa foi intervencionada. Os nossos bens foram congelados. Quando o meu pai regressa à liberdade em Novembro de 75 e volta à Molaflex, a empresa tinha sido estragada pelos senhores sargentos e capitães que lá tinham estado. Foi possível recuperar, mas, como muitas famílias, passámos uma fase de transição complicada.

 

Até onde é que isto mexeu com a sua vida?

É difícil repensar esse tempo. Ao voltar atrás temos a tendência de maquilhar o passado e a razão pela qual as coisas aconteceram. Em primeiro lugar, fui para Londres e logo a seguir o meu pai é preso; vivi com algumas dificuldades para acabar o curso. Habituei-me a uma vida frugal. Quando vim para cá, isso ajudou imenso. Em Londres tinha uma casa giríssima em Kings Road, na melhor zona de Londres, mas vivíamos três portugueses numa casa que tinha um quarto. Lavava pratos, trabalhava em bares, porque, de outra maneira, não dava. O pai deixou de mandar dinheiro, e pronto.

 

Isso foi tremendo para si?

Não. Foi óptimo. Tenho imensas saudades desse tempo de Londres,

 

O que é que se aprende quando não se tem dinheiro?

Para já é uma emoção não ter dinheiro: uma emoção que é uma aflição! Nós ficámos mesmo aflitos. Nunca corri o risco de passar fome, até porque sabia onde bater à porta. Estavam lá o Paulo Pimenta, da Riopele, estavam lá os Espírito Santo que o pai conhecia. As coisas a que estava habituado e que apareciam feitas – desde o pequeno-almoço, logo ao acordar – deixaram de ser assim. Eu só era responsável por mim, e foi uma sensação de enorme liberdade. A partir de agora não mandam caroço? Estava por minha conta. Eu, que nunca tinha fugido de casa, foi como se tivesse fugido de casa.

 

Até então, nunca tinha sido para si um peso ser rico?

Não. O que hoje se caracteriza por rico e o que era ser rico nos anos 60 é muito diferente. Hoje, a necessidade de consumir é quase opressiva; nessa altura não era. Nunca tive uma motorizada, o meu primeiro carro foi um Honda 600, que era o carro mais barato do mercado. A minha bicicleta passou para os meus irmãos todos, como passavam as camisolas. Era assim que se vivia.

 

Tiveram uma nanny, ou isso ficou na geração da sua avó? Uma miss, uma mademoiselle, uma fräulein.

Não tivemos nanny. Tínhamos duas criadas e uma cozinheira. Nas férias, a minha avó mandava vir uma parente da Alemanha para aperfeiçoar o nosso alemão. Fui aconselhado a sair na terceira classe do Colégio Alemão: fui considerado irreverente.

 

Quando pergunto pelo peso de ser rico, pergunto pela gratuitidade das relações. Pela noção de que há coisas que não se compram. Não sei como foi feita essa aprendizagem…

Já me perguntaram isso, mas não sei como se é moldado nessa circunstância. Não sei mesmo. A cidade do Porto era muito interclassista. Tínhamos contacto com pessoas que viviam com muitas dificuldades. Eu andei no liceu Dom Manuel II: andavam muitas pessoas no liceu para quem pagar as propinas era complicado. Vinha para a Foz de eléctrico e havia colegas que saíam uma paragem mais cedo para pagar um escudo e não pagar 12 tostões. Convivíamos com essas pessoas. Também no desporto; comecei a fazer vela na Mocidade Portuguesa, como quase toda a gente. Ensaiei jogar futebol e escondia o meu estatuto: não interessava mesmo!

 

Para jogar futebol, quanto mais rapaz de rua fosse, melhor. Tinha o desejo de ser um igual?

Não sei. Eu tinha um enorme receio de desapontar o meu pai. A minha vida ficou muito marcada por isso em diversos aspectos. Não era muito bom aluno, não era um filho dilecto das famílias alemãs do Porto, como era o meu irmão Tomás, um ano mais novo. Era aquele género de pai terrível porque não ralhava nem batia: mostrava o seu desapontamento. Acho que sou o mesmo com os meus filhos. Olhava para mim com uma cara triste: “O menino está a desapontar-me”. Foi também por isso que quis começar com o meu negócio, da mesma forma que ele tinha começado com o dele. 

 

O seu pai foi a pessoa que mais o marcou?

Talvez não. A pessoa que mais me marcou foi a minha avó materna, a portuguesa. Quando comecei a falhar na escola e a minha mãe ia tendo mais filhos, e ninguém percebeu que eu andava numa escola pública, um pouco à solta, obrigou-me a fazer as boas escolhas e interessou-me por coisas que me estavam a desinteressar: ler, ir a concertos de música clássica, exposições. Tirou-me dessa rua em que podia ter caído numa altura perigosa; muita gente da minha geração, por causa desse desacompanhamento, acabou na toxicodependência, nos excessos do álcool. Eu era bom à porrada, era mau…

 

Porquê essa rebeldia? À partida não havia necessidade disso…

Sei lá por quê. Não sou Freud e Freud também não tem certezas sobre isso [risos]. O meu pai era também irreverente, a família era irreverente. Era um modo irreverente de ser. Os meus pais achavam normal que, se nos dessem uma ordem, questionássemos a razão de ser da ordem. “Hoje os meninos vão para a cama mais cedo”. Eu achava-me no direito de perguntar: “Porquê?”. Se calhar queria estar sozinho com a mãe no sofá. Isto não era muito compatível com o mundo exterior em 1966/67, essas coisas não se discutiam. 

 

Disse que tinha com o seu pai uma relação de intimidade. Quase não se diz em público a palavra intimidade, há quase um pudor à volta dela.

Tínhamos interesses parecidos, conversas longas, silêncios longos. O meu pai sabia partilhar os seus afectos – invulgaríssimo na geração dele e num homem. Houve uma altura em que percebi que ele estava muito doente e que precisava de lhe dizer isto. O meu receio era que o meu pai morresse sem eu lhe poder dizer o que é que sentia. As barreiras sociais que temos e que nos inibem com os nossos pais são coisas que a gente tem que vencer. A intimidade é sentirmos que às vezes quase nem é preciso falar.

 

Quais foras as perdas da sua vida? As que o mudaram, que foram fracturantes.

O meu tio Mário, que morreu muito cedo, fez-me muita falta e fez muita falta ao meu pai. Houve um momento fracturante, que foi quando fiquei muito doente aos 27 anos. O meu filho mais velho tinha um ano, era nessa altura que os meus negócios estavam a correr melhor e estive a morrer. Tive uma insuficiência renal, terminal, aguda. Uma semana antes tinha jogado uma partida de râguebi, e de repente os meus rins deixaram de funcionar. Obrigou-me a fazer três anos de hemodiálise. Fiz depois um transplante e as coisas acabaram por correr bem. Foi um tempo que me causticou muito. Foi isso que me levou a projectar que, se me safasse, o mais depressa possível ia libertar-me de algumas coisas.

 

Quando se safou, o que é que mudou?

Vendi os meus negócios de navegação com 35 anos. “Eu não me vou matar a trabalhar”. Desde logo, isso. Para uma pessoa que faz um transplante a vida é muito mais efémera. Está lá a ameaça, a espada está presa por um fio mais fininho, pode cair a qualquer momento. Percebemos que somos mais frágeis. Eu achava que era um super-homem, que fazia desporto e que tinha jeito para os negócios.

 

Até aí, o que o fazia correr era o desejo de não desapontar o seu pai.

Levava uma vida frugal para poder investir tudo nos negócios. Vivia por cima da [cervejaria] Cufra, num T2, não tinha obras de arte, e tinha um negócio enorme! Só pensava em trabalhar, andava permanentemente a viajar pelo mundo.

 

Zero glamour? Não tinha a fantasia do Onassis e da Jackie O?  

Não. Não gostava desse género de atitude. Queria fazer um negócio com gente nova, um escritório onde toda a gente se tratava por tu e as pessoas andavam de jeans. O nosso escritório era completamente diferente. Quando vendi, já eram umas centenas de pessoas e entraram todos pela minha mão. Na maior parte dos casos, era primeiro emprego – era um dos truques para lhes criar motivação.

 

Nesse quadro de expansão nos negócios, a doença foi uma hecatombe.

Quando estas empresas começam a crescer, temos que fazer alianças e ter sócios. Fui sócio do Stanley Ho; era um sócio interessante, mas aos 32 anos não era fácil. Lembro-me que fiz um acordo com ele, e um dia ele entrou em incumprimento. Disse ao meu advogado em Hong Kong: “Vou processá-lo”. “O Stanley Ho não se processa, homem. Senta-se com ele e chega a um bom acordo. Você não tem estatuto para isso!” [risos] Comecei a perceber que era o momento de ou mergulhar completamente naquilo (ir para a bolsa, ter um CEO, ficar como presidente…) ou vender. Comecei a perder o gás e a vontade. Tive apenas que convencer o meu pai; mas foi fácil, ele não gostava do negócio. E foi rápido.

 

Vendeu sem dor?

Sem dor nenhuma. Nunca me arrependi de o ter vendido. Estava a começar a sentir-me escravo de mim próprio. 

 

Este que vive nesta casa é outro homem. Tudo o que aqui está, é evidente, resulta de escolhas cuidadosas. Na relação com a família também seria outro.

Tinha-me divorciado da minha primeira mulher e o meu filho ficou a viver comigo. Queria imenso construir com ele a relação de intimidade que o meu pai construiu comigo. Acho que consegui. Já nessa fase, digamos, pós-laboral, casei-me e tive outro filho que vive a meias comigo e com a Cristina. Tenho muito mais tempo para estar com a minha mãe, irmãos, amigos, para me dedicar às coisas de que gosto.

 

Quando vai ao Palácio da Bolsa e vê os retratos dos antigos presidentes, que emoção é que isso lhe convoca?

Nenhuma. Quando subo as escadas, lembro-me de ir lá com o meu avô e de ver o avô dele em mármore… Isso sim, subo e olho para os Fonseca Araújo que estão lá em cima (família da mãe do meu avô). Pergunto-me se estarão a achar que estou a fazer alguma coisa de jeitoso! [riso] Os outros, não me intimidam nada.

 

Já não há a pressão de ter de estar à altura…

Não. Não mandei fazer o retrato do meu antecessor, para ter a certeza de que, quem me suceda, não se sinta na obrigação de mandar fazer o meu quadro.

 

É um exercício de modéstia?

Não. Não acho que na Associação Comercial [do Porto] tenha feito nada de transcendente. Reconheço que fiz uma coisa que era difícil: voltar a pôr a Associação Comercial no mapa. Era um poder invisível. Quando aceitei o convite, avisei: o mal desta casa é ter falta de visibilidade, e os poderes invisíveis não funcionam, e os que funcionam não deviam funcionar. Ao abrir as portas do Palácio e ao fazer com que a Associação Comercial do Porto fosse mais influente, confesso que não esperava que o reconhecimento tivesse sido aquele que foi. Assusta-me, porque isso quer sempre dizer que à volta há pouco poder, que há poucas vozes a falar.

 

Acha que tem muito poder?

Não. Mas acho que a Associação Comercial do Porto é hoje um instrumento de poder. Tenho influência. Tinha muito mais poder quando tinha a empresa.

 

Tem 52 anos. Pensa viver uma terceira vida, considerando que a primeira é anterior à doença e a segunda a que tem entretanto?

Tenho pensado nisso. O meu filho mais novo tem 15 anos, daqui a dois anos irá estudar para Inglaterra; a minha função de pai exigirá menos tempo, ficarei sozinho. Por outro lado, posso ser corrido do Palácio da Bolsa todos os anos – as eleições são anuais. Não é muito provável. Mas vai chegar uma altura em que as coisas estão feitas. Se ficar, começo a ficar com os tiques do tempo. E a mensagem que tinha aos 44 anos é diferente da que tenho hoje. Na altura, eu era o jovem presidente da Associação Comercial do Porto.

 

Nos últimos dois anos, o seu nome é também aquele que veicula uma imagem diferente do Porto. Quer através das intervenções na imprensa escrita quer na televisão, falando de futebol. Contraria a imagem do Porto provinciano e fechado. Foi uma escolha consciente?

Foi. Não foi meramente intuitivo. Quando resolvi aceitar o convite para fazer um programa de futebol, era importante saber com quem ia fazê-lo. Saber que ia fazer com o António Pedro Vasconcelos tranquilizava-me imenso. O mais provável era ter dito que não. Ainda hoje há pessoas, como o meu amigo Helder Pacheco, que diz que cometo um enorme erro; acha que me desvalorizo todos os dias ao falar de futebol. Acho que ele não tem razão.

 

Porquê?

O Futebol Clube do Porto, podendo ser uma marca útil para a cidade, não o tem sido. Sendo uma estratégia de poder, guerrilheiro, teve o enorme problema de todos os guerrilheiros que chegam ao poder. Se quiser, é o problema dos Castro; tenho uma enorme admiração por eles, conheço Raul Castro pessoalmente. Mas esse espírito guerrilheiro, quando toma o poder, é muito perigoso nos seus métodos, continua a andar com a pistola a tiracolo. Acho que, de alguma maneira, isto ajudar a estereotipar o Porto-cidade.

 

É o Porto-carago.

Exactamente. E, volto ao princípio: pode ser uma fantasia nostálgica, mas achei que uma coisa não tinha que ver com a outra. Pode haver uma rudeza na cidade que sempre apreciei e ela pode conviver com uma parte urbana, com capacidade de dialogar, de saber estar, de receber bem, que era uma tradição do Porto. Fazer um programa de futebol na companhia certa era a melhor maneira de dar esse exemplo.  

 

Voltando ao princípio e à sua natureza dandy: tem umas belas cadeiras Mies van der Rohe, umas belas cadeiras Saarinen…, tudo é bem escolhido. É porque é um homem do mundo?

A casa da minha mãe também era assim.

 

Há opções estéticas. Tem ali um Ângelo de Sousa e não tem um Júlio Resende, que é também um artista do Porto.

São opções estéticas, são. Isso a gente vai cultivando. O meu avô era muito virado para as artes, a minha avó também. Essa busca sempre existiu. Mas houve uns anos em que não tive nem paciência nem tempo para isso.

 

Objectos destes faziam-lhe falta?

Não. Encontrava-os quando ia a casa da minha mãe, e em minha casa tinha uma serigrafia qualquer. 

 

Celebram, então, uma nova fase da sua vida, em que tem tempo e paciência. Entre os 35 e os 44 anos o que fez?

Diverti-me. Comecei a comprar coisas. Fiz viagens extraordinárias.

 

Sentiu a falta de um propósito?

Houve um tempo em que precisei de o não ter, e não tive. Fiz coisas loucas: tive uma discoteca no Porto. Impensável! Já era presidente da Associação Comercial do Porto e às vezes estava à porta do Pop! Isto foi um prazer infinito!

    

Dá-lhe gosto ser um personagem heterodoxo…

Pois, a tal irreverência do Colégio Alemão… O Colégio Alemão tinha razão!

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Janeiro de 2009