Ryuichi Sakamoto
Dois camiões estão estacionados junto ao hotel. Não se pode ver a pequena mancha de verde que ali há, o jardim que contrasta com o amontoado de prédios e carros que correm nas ruas de trás. O hotel rompe em direcção às nuvens. Dali se vêem os aviões a cruzar o céu, o tráfego apertado da hora de ponta. E incólume a esta agitação, o senhor Sakamoto chega, acompanhado de um promotor local da editora. Pesava sobre si, literalmente, um problema lombar. As dores repetiam-se desde há dias, um concentrado de tensão e de tristeza – a perda de alguém próximo fê-lo inclusive questionar uma substituição temporária na digressão «Casa», com o casal Morelenbaum. Mas acabou por sentir que a música o salvaria. E ficou.
Durante um pedaço, ficara entregue às mãos do melhor massagista de Lisboa. O corpo respirava agora uma certa tranquilidade. Quando o vi à noite, na Aula Magna, não pude perceber na movimentação, na entrega ao piano, vestígios desta tensão. Ryuichi Sakamoto oferecia-se à música e encontrava nisso uma redenção. Uma espécie de catarse, dizia-me depois do concerto, onde lhe é possível chorar e rir e viver toda a gama de sentimentos contraditórios. Uma bênção.
O piano é o seu. Um dos camiões da entrada é a casa ambulante do seu piano, que segue para onde quer que ele vá. O piano e o afinador do piano. E nisto se vê o grau de exigência e o profissionalismo do japonês. Da sua equipa permanente consta ainda o assistente pessoal, e, nesta digressão, o engenheiro de som era também o que habitualmente trabalha com ele.
«Casa» é o nome da digressão e do disco que celebra a paixão pelo mestre brasileiro António Carlos Jobim. Uma paixão antiquíssima. Estranhamente sabemos que antecede a sua fase electrónica, quando vendia milhares e milhares de discos e começava a ser uma estrela à escala planetária. Mas depois não é tão estranho se soubermos que se formou numa escola dedicada às artes e tirou um mestrado em música electrónica e étnica. A música do mundo esteve sempre lá.
Sakamoto conheceu Jaques Morelenbaum em 1990. Um e outro participavam no disco «Circuladô» de Caetano Veloso, e o encontro deu-se em Nova Iorque. Era a primeira vez que Morelenbaum escrevia um arranjo para Caetano, era apenas o início de uma prodigiosa colaboração. Ainda no Brasil, enfurecia-se com Paula, a mulher, que ouvia repetidamente a banda sonora de «Merry Christmas, Mr. Lawrence», o que perturbava a sua concentração. Nenhum deles podia imaginar como ficariam ligados os seus caminhos.
Logo depois Sakamoto convida Jaques e a melancolia do seu cello para uma digressão japonesa. E depois um disco, e depois outra coisa. Ficaram amigos, muito ligados, descrevia Jaques. E Jobim de permeio. Davam-se conta que Jobim existira sempre de permeio, ainda que Jaques só o tenha “descoberto” depois do rock da adolescência, quando foi estudar para os Estados Unidos. No mesmo período, do outro lado do mundo, Sakamoto crescia a ouvir bossa nova.
Infelizmente, Sakamoto não chegou a conhecer o seu ídolo. Uns meses depois da morte de Jobim, estava por acaso no Brasil e foi convidado a conhecer a sua casa. O casal Morelenbaum, muito próximo do clã Jobim, promoveu este encontro. E entrou ali como quem entra num templo.
A ideia do disco não é imediata. Surge algum tempo depois, mais uma vez em ambiente familiar. Paula elabora uma primeira lista de canções, Ryuichi sugere que sejam todas gravadas.
«Casa» é gravado em Janeiro de 2001, em pleno Verão brasileiro
Na casa de Jobim, no piano de Jobim, com o espírito e os pássaros de Jobim por perto. É uma celebração do génio de Jobim. Durante quatro dias, Sakamoto, Paula e Jaques Morelenbaum fecharam-se na casa do mestre e gravaram o disco. Sem cortes, sem montagens. Gravaram tal qual sentiram, e é isso que se pode ouvir no disco, editado em Portugal no início de Outubro.
Quando os encontrei, a digressão estava já na parte final. Desde Agosto que andavam em bolandas, percorrendo o mundo. O outro camião é a casa ambulante, com 16 camas no andar de cima – como se vê nos filmes, sim... –, usado para distâncias mais curtas.
Optei por não falar de música com Ryuichi Sakamoto. Surpreendidos? Bom, eu quis perceber porque é que o seu site está cheio de referências humanistas, apela à não-violência, mostra imagens das torres de Nova Iorque a serem destruídas. Perceber que homem é este que não conhecemos senão pela música que nos dá. É isso que vão poder ler.
Porque é que gosta tanto dos filmes do Godard?
Não necessito de uma razão: ele é soberbo, é o maior génio do século XX. Se tivesse de escolher apenas um realizador, seria Godard. É único no cinema como Tom Jobim na música.
Qual é o filme que prefere?
Todos! Mas aquele a que sou mais ligado é «Pierrot, Le Fou». Quando o vi tinha apenas 17 anos e foi perfeito para mim. No fim dos anos 60 a situações era muito caótica, os estudantes estavam sempre a fazer manifestações. Ainda amo o filme.
Naquele tempo havia uma identificação com o Pierre do filme de Godard?
Bom, eu não era assim tão passado...
Vê filmes desde sempre?
Sim, sempre adorei.
É muito comum o consumo de filmes europeus no Japão?
Os filmes americanos são muito populares. Sobretudo os dos anos 50 e 60 são espectaculares. Os filmes europeus eram vistos pelos mais intelectuais. Quando eu era rapaz, ia ver os filmes de Hollywood. Comecei a ver estes filmes depois de ter entrado no liceu. A minha escola era no centro de Tóquio, no lugar mais barulhento e atribulado da cidade. Apanhava os transportes para ir até lá, demorava cerca de trinta minutos. Nas proximidades havia cinematecas e clubes de jazz e de dança. Era um lugar não muito recomendável!, um pouco como o Pigalle! [Bairro de Paris onde prolifera o comércio do sexo]. Então, com 15 anos, fui a todos os clubes de jazz, havia para aí 32 clubes de jazz e fui a todos! Na altura do liceu, foi quando vi o maior número de filmes da minha vida. Provavelmente cinco filmes por semana. Tudo o que estava disponível, ia ver.
Sonhava com o cinema ou a música sempre fez parte do seu imaginário?
A música sempre me ocupou. Tive aulas de piano desde os três anos de idade, e desde os onze aulas de composição. Mas realmente gostava de ver filmes.
O cinema chegou a ser pensado como projecto? Trabalha imenso para cinema: faz bandas sonoras, aparece esporadicamente como actor.
Na verdade, não sonhava trabalhar em cinema, trabalhar com Bertolucci ou Godard. Eles estavam muito lá em cima, estavam nas nuvens!
Como é que imaginava a sua vida? Imaginava que poderia ser o que é hoje?
Aí é que está, na minha vida nunca estabeleço uma meta. Não é da minha natureza. Mesmo agora, não tenho um objectivo.
Em Deus, acredita?
Desculpe?
Deus.
Não. Não sou religioso. Tenho um interesse por religiões, mas não tenho nenhuma em particular.
A sua educação foi religiosa?
Não. Isso é normal no Japão. As escolas não são religiosas de um modo geral. Mas desde que conheci o Dalai Lama, há alguns anos...
Convidou-o para a sua ópera.
Pois. Conheci o Dalai Lama na parte norte da Índia, fui ao seu encontro para o convidar a participar na ópera. Desde então fiquei muito interessado no Tibete e no budismo. Mas ainda não sou um budista! Ainda.
Como é que foi o encontro com o Dalai Lama? Foi emocionante?
Senti-me como um «bambino», como uma criança. A aura do Dalai Lama e as suas vibrações são soberbas. Qualquer coisa que senti, por exemplo, no momento em que entrou na sala. É considerado um deus vivo entre os tibetanos e é também um líder político. A despeito disso, mantém um charme e uma curiosidade imensas, uma personalidade muito viva. Como se fosse uma criança. Fiquei muito impressionado com ele.
Ainda tem essa inocência que tanto o maravilhou no Dalai Lama?
Sim, acho que sim. Não posso perder isso. Morreria. É a essência da vida.
Tem filhos?
Tenho quatro. De 28, 25, 21 e 11 anos.
Quando está com os seus filhos sente-se também uma criança?
Sim. Mas como pai, tenho de educá-los. Dar exemplos. Dizer-lhes o que fazer e o que não fazer.
Está entusiasmado com este novo projecto, um livro-dvd, no qual se estuda o comportamento dos elefantes. A sua imagem mais impressionante é aquela em que aparece deitado sobre a terra, abraçado, como um filho poderia estar. Quando faz projectos como este pensa nos seus filhos?
Desde que tive o meu filho mais novo, tenho considerado o futuro de uma outra maneira. Eu estou a desaparecer deste mundo... Já gozei a minha vida, já usufruí dela. Não quero, não queremos, entregar um mundo com problemas de destruição. Como adultos e pessoas responsáveis, queremos entregar um mundo com paz, bom ambiente, água saudável, comida suficiente.
Pode falar-se deste projecto?
Fui a África pela primeira vez apenas há dois anos. No meu subconsciente, África era muito longe... Apaixonei-me pelo país, pela savana, pelas pessoas e animais. Desde então fui quatro vezes. Simplesmente amo aquilo. Fui com o meu filho mais novo, foi ele que insistiu para que fôssemos. Tenho um amigo que é director de uma revista centrada na questão do ambiente. É dele a ideia de fazer um livro-dvd sobre África. Investimos neste projecto, fomos ao Quénia, entrevistámos antropólogos. Fizemos uma pesquisa acerca dos elefantes.
O que é perguntou aos antropólogos?
Porque é que somos tão violentos. E porque é que somos tão diferentes das outras espécies. O homo sapiens mata outro da mesma espécie com armas, é o único a fazê-lo. Porquê? Esse é o maior mistério. Alguns animais podem matar-se uns aos outros; os elefantes, por exemplo; acontece umas três vezes por ano, quando o macho luta com outro por causa da fêmea. Mas isso é simplesmente a lei da natureza. E nós, por outro lado, gozamos da liberdade de escolher. Em vez de nos ajudarmos uns aos outros, matamo-nos a nós próprios. Está no dna, será algo genético? Eu tenho muitas perguntas e por isso entrevistei cientistas.
O projecto foi ligeiramente adiado porque entretanto aconteceu o 11 de Setembro. Consegue descrever a memória desse dia?
Estava muito triste e confuso, como tantas outras pessoas. Quem fez isto, quem está por detrás disto? Mas sobretudo preparei-me para proteger a minha família. A primeira reacção foi puramente pragmática. Comprei máscaras de gás e remédios contra o antrax, comprei muita água. Comprei tudo o que pude para nos protegermos no caso de acontecerem outros ataques. Nessa altura, como agora, penso nas questões políticas e económicas que estão associadas ao atentado, na globalização, na pobreza; mas parece-me que a questão é essencialmente religiosa.
A sua ópera chama-se «Life», o que não será por acaso.
De repente, eu queria fazer uma ópera. Queria fazer uma ópera de qualquer maneira! Não sei bem porquê... Até porque não gosto muito de óperas.
Não?
Não gosto de óperas grandiosas, prefiro as minimalistas. De qualquer modo, queria um dia fazer uma ópera. Não consegui encontrar uma história de que gostasse e pedi ajuda a um amigo, um escritor muito famoso no Japão e mesmo fora do Japão. Trabalhámos no projecto durante dois anos, mais ou menos; lemos alguns livros sobre mitologia grega, vimos algumas óperas juntos, como a minha favorita, «Parsifal» - muito negra!
É curioso que seja a sua preferida, porque parece ser uma pessoa muito suave. Mas há sempre este contraste na vida de cada um, entre o lado mais negro e o mais luminoso.
De qualquer modo, decidimos não ter uma história. Desenvolvi uma estrutura, subdividida em quatro partes. A primeira olha para o século XX, marcado pelas guerras e destruição. As guerras do século XX são muito diferentes das do passado por causa da tecnologia. A segunda parte incide sobre o século XXI, a ciência e a tecnologia, e concentrámo-nos na criação da bomba atómica. Subjacente a esta sequência mais cronológica, olha-se para a música do século: Stravinsky, Stockhausen, Bartok, Pierre Boulez. A terceira parte é sobre a vida, sobre a evolução da vida, e parte de uma só célula. A última parte é sobre salvação. Foi nessa que interveio o Dalai Lama.
Diz que o nosso futuro é ambíguo. Mas termina a ópera falando de esperança.
Talvez a nossa esperança esteja aqui, agora. Mas temos de estar atentos, temos de criar paz para o futuro. A Terra é a nossa casa, a nossa única casa. Não há alternativa. Se destruirmos esta casa, vamos matar-nos.
Como é a sua casa?
É pacífica, é uma casa muito calma. Vivo em Nova Iorque desde 1990.
Sente falta do Japão?
Não. Não sou muito apegado às coisas, nem sou um nacionalista. Vou lá umas três vezes por ano, é suficiente.
Que tipo de vida tem em Manhattan?
Ultimamente estava a gostar de viver em Nova Iorque. O meu filho mais novo vai à escola lá, tem muitos amigos. Mas o 11 de Setembro fez-me repensar certas coisas. Nova Iorque tornou-se muito perigosa. Tenho parado para pensar onde é que posso viver, para onde posso mudar-me. Se calhar para o Rio, Rio de Janeiro. O Rio é mais seguro que Nova Iorque. [risos]
O que é que sentiu quando entrou na casa do seu ídolo Tom Jobim?
É como um templo, uma catedral, um lugar sagrado. Senti a aura da casa assim que entrei: senti um espírito presente. E o piano, as suas impressões digitais nas teclas do piano... Não deve ser tocado. Foi mágico.
Quando é que se deu o encontro com a música do Tom?
Muito cedo, aos 12 anos.
Os seus pais gostavam de música?
A minha mãe adorava música, em especial Mozart. Lembro-me dela a tocar piano. Ela desenha chapéus. O meu pai é editor de livros.
Na sua fase Yellow Magic Orchestra havia um lado robótico muito forte. Agora está nos antípodas disso, a sua postura é a de um humanista. Como é que lembra esses anos?
Foi uma época boa, feliz, com muitas actividades... Nada muito sério, era tudo uma brincadeira.
Na altura era um jovem e hoje é um homem?
Ah, ainda sou criança. Mas a situação agora é mais séria. No início dos anos 80 não era sério, de todo. Eu tocava, fingia que era robot. Ainda tínhamos alguma esperança em relação ao futuro, que o futuro seria melhor, e agora não podemos dizer isso.
Tem uma palavra e um som que prefira?
[pausa] É difícil essa pergunta... Vida. A palavra é vida. E um som, não pode ser só um som. É tudo uma combinação de sons.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002