Saramago: 20 anos depois do Nobel
Aquela tshirt que diz assim: “Há esperanças que é loucura ter. Pois eu digo-te que se não fossem essas eu já teria desistido da vida”. Que há nesta frase, com fumos quixotescos, além da óbvia exortação à vida? Eu sublinhei a palavra “esperanças”, talvez porque escrevo no domingo, 7 de Outubro, dia de eleições, e a cabeça vai da Azinhaga ao Brasil num instante. Acompanha esse movimento um cheirinho de alecrim, lá estão carentes, guardámos algumas sementes. Não sei que palavras diria Saramago na antecâmara de um eventual desastre, as palavras exactas. Tenho a presunção de adivinhar que seriam palavras de luta, de resistência. Nem sei, à hora a que escrevo, encerradas as urnas, contagem a decorrer, da espessura do problema. Pode ser que este sonho negro se desvaneça sem danos irremediáveis. Porque há esperanças que é loucura não ter, são essas que não podemos dispensar. São o supremo privilégio e o oxigénio que nos sustenta. Uma exorbitação e o concreto. Que outra hipótese temos, afinal? Recupero uma frase de Saramago que dá consistência às suas esperanças, aos seus sonhos, que não nos permite virar a cara: “A ética, quando exercida, como é desejável, sobre o concreto social, é talvez a menos abstracta de todas as coisas: presença calada e rigorosa, ainda que variável no tempo e no espaço, aí está, com o seu olhar fixo, a pedir-nos contas”.
É domingo de manhã e estamos na Azinhaga, terra de onde esta árvore, que Saramago foi, é, sempre disse que havia brotado. Neste “estamos” inclui-se António Costa, Pilar del Río, Violante e Ana Saramago Matos, presidentes de câmara e presidentes de junta de freguesia do Ribatejo, individualidades (como se diz nos discursos para arrumar a questão), povo amado (entenda-se aqui: gente da terra, senhoras antigas que nunca sonharam dar um beijinho ao primeiro-ministro, no encontro da rua das Forças Armadas com a rua Catarina Eufémia, velhos amigos que abraçam efusivamente a filha do escritor), leitoras, leitores, a Ana da tshirt com a frase supra-citada e outras pessoas da terra que leram e cantaram, os muitos que foram à festa. Celebram-se os 20 anos da atribuição do prémio Nobel da Literatura a José Saramago. O prémio que nos fez levantar a todos em alegria, de orgulho. Estamos aqui porque “nós somos muito mais da terra onde nascemos, e onde fomos criados, do que imaginamos”, e José Saramago, Zezito, é daqui. Sabemos da Azinhaga por causa dele, sabemos dos seus avós por causa dele, sabemos da margem do rio, de um certo lagarto verde que no seu imaginário se associa à perda da inocência. Efabulamos percorrendo os seus passos de criança pequena, como havíamos feito na leitura d’ As Pequenas Memórias, mas agora vemos uma nespereira, um marmeleiro, limoeiros, figueiras, oliveiras, o rio poluído e invadido por jacintos, algumas pessoas na margem oposta à do campo de trigo na sua vida de todos os dias, destroços, o rio parado como metáfora da infância dentro de cada um de nós, o chilreio dos pássaros, cavalos, um cheiro a bosta, o perfume intenso da hortelã.
Outra tshirt: “A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver”. Nesta vida breve, Saramago passou do rapaz que andou descalço e comprou os primeiros livros já adulto, com dinheiro emprestado, a escritor consagrado que recebe das mãos do rei da Suécia o mais importante prémio literário do mundo. Dir-se-ia que viveu muito mais do que seria conjecturável, que distância assombrosa percorreu... E, no entanto, há sempre pelo menos outro tanto que não somos capazes de abarcar. Que outras vidas poderia viver ainda? Além das vidas que viveu e das vidas-personagens que criou (nutro carinho particular por Blimunda).
Na véspera, sábado, foi quando esta viagem começou. Começou pelo fim, em Lanzarote, que não é a sua terra, pero es terra sua. Foi na casa da ilha canária que o escritor faleceu, em 2010. Foi aí que António Costa e Pedro Sánchez se encontraram pela primeira vez desde que são responsáveis máximos pela governação de Portugal e Espanha. Os discursos foram na biblioteca do escritor, antes houve visita à casa conduzida por Pilar, o grupo era numeroso, o que fez a casa parecer pequena, antes de tudo foi a visita à casa do artista lanzarotenho César Manrique, um deslumbre. Na casa de Saramago, uma jangada ibérica onde proliferaram os sonhos e as possibilidades e onde compôs as obras posteriores a 1993, o escritor foi feliz. Vemos o seu escritório mantido tal qual. O lugar do copo de água. A almofada aos pés onde se aninhava o cão. As fotografias de todos os lugares. O desenho do avô a despedir-se das árvores de que falou Pedro Sánchez no seu discurso. Memorabilia. O computador obsoleto que guardava um caderno-diário, justamente do ano da atribuição do Nobel, esquecido numa intermitência do tempo. Pilar descobriu-o há meses, por acidente, e temo-lo para celebrar esta data redonda. O Último Caderno de Lanzarote é posto à venda amanhã, 8 de Outubro.
Quando me lerem, o dia terá passado, o livro já estará disponível nas livrarias, Marcelo Rebelo de Sousa terá feito a abertura oficial do congresso internacional dedicado ao escritor, em Coimbra (mais de 60 académicos de todos o mundo, três dias de discussão, coordenação de Carlos Reis).
Escrevo em Coimbra, penso novamente no Brasil. Quando me lerem, já se saberá o que resulta desta noite ameaçada. É entre essa sombra e a reverberação da felicidade de há 20 anos que vou andar. Para me acompanhar, e porque preciso de esperanças, escolhi estas palavras de felicitação de Susan Sontag, coligidas no livro de Ricardo Viel, entre tantas outras: “Meu queridíssimo José! Finalmente os suecos fizeram o que deveriam – precisamente quando pensávamos o pior deles, depois de demasiados prémios irrisórios. Tu és o meu candidato há anos (e eles sabem isso)... Sendo assim, a notícia deu-me muita felicidade – por ti, pela literatura. Abraço-vos com força, a ti e a Pilar”.
Texto publicado originalmente no Jornal de Letras em 2018