Teresa Caeiro
Uma destas tardes, conversei com a Teggy. A Teggy é uma daquelas mulheres de quem ficamos amigas instantaneamente. Podia ser uma amiga que andou connosco no liceu, que fumou connosco os primeiros cigarros, que chegou nervosa ao último exame da temporada. A Teggy é sorridente e bem disposta. A Teggy diz a uma enjoadinha que passa: “Olhe lá, e se eu lhe pagar dez contos, consegue sorrir?”. A Teggy comenta, com uma excitação que só as mulheres podem experimentar, que estão umas peças a sorrir para ela no eBay... A Teggy fuma muitos cigarros porque está nervosa. E confessa que a educação dela foi tão espartana que não chega a fumar ou a beber uma gota de álcool à frente dos pais.
Os pais. Mas tudo tem de estar sempre tão ligado aos pais? Parece que sim. Ou os reproduzimos ou os boicotamos. Em todo o caso, giramos sempre em torno deles. Os pais da Teggy são, por isso, essenciais para perceber quem ela é. É capaz de ser menos à medida que o filho vai crescendo – tem agora um ano. Vamos deixando de ser filhos à medida que somos pais, dizem.
A Teggy chega com o cabelo arranjado, um “brushingzito”. Pinta os lábios antes da sessão de fotografias. Diz que essa é a pior parte, mas presta-se bem ao papel. Fica uma brasa, dito em bom português. A Teggy sabe que devia ter sido mais a Teresa. Que devia ter tido “a lucidez e o profissionalismo” de cuidar mais da sua imagem. Proteger-se. Não se prestar ao papel de “marioneta do Paulo Portas”. Não se prestar às fotografias desta maneira, porque ser uma mulher “com determinadas características” – leia-se, feminina, cuidada, coquette – abala a reputação. Triste mundo, este, em que uma mulher não pode ir ao cabeleireiro e fazer madeixas que logo passa a loura burra... Ela sabe bem isso. Mas que fazer? Deixar de ser quem é porque alguém decide que o credível é usar um horrível cabelo à escovinha? A Teggy já percebeu que vão sempre falar, faça ela o que fizer.
Uma destas tardes, num último andar do Chiado, conversei com a Teggy. Foi pouco a Teresa Caeiro. Foi pouco a ex-governadora civil de Lisboa. Foi pouco a ex-secretária de Estado. Foi pouco a deputada do PP. Por uma vez, ela sentiu-se à vontade para revelar a Teggy. Apesar de todas as inseguranças.
Porque é que está tão nervosa?
Sou uma tímida e uma insegura domesticada...
Irmã do meio? Onde radica essa insegurança?
Sou a mais velha. Senti-me ameaçada quando nasceu a minha irmã, que ficou com toda a confiança que não tenho em mim. A educação, rígida, junta-se à genética. Foi-me exigido o máximo, nunca houve complacências, nunca fui a Teresinha... Tive de mudar várias vezes de vida. Fui despejada na escola alemã na Bélgica. Simultaneamente mudei de país e de escola e de língua.
Arrumemos isto em compartimentos. O primeiro, estruturante, foi qual?
Não arrumaria em termos cronológicos... O fio condutor é o da responsabilidade. Sempre me foi imputada muita responsabilidade e eu sempre a assumi. Se me perguntasse o que é que gostaria agora de receber... O que é que gostaria que se abatesse sobre mim? A irresponsabilidade. Receber cada dia como ele é. Não pensar nem no dia de ontem, nem no de amanhã, mas, por uma vez, no de hoje. Seria uma dádiva.
Revê-se no típico quadro da menina de família, a quem é esperado um determinado destino?
Era esperado um determinado comportamento, era suposto ser boa aluna. Ter maneiras.
É muito táctil, muito afectuosa, o que surpreende em pessoas da sua classe social, que são normalmente mais contidas na expressão dos afectos. Esta atitude é uma reacção a isso que foi esculpido na infância?
Ah, se tenho muito que foi arquitectado na infância, também tenho muito de reacção a isso, de crescer contra. Há em mim um lado muito contestatário. A minha família não era exactamente de direita, mas era o tipo de família que fica prejudicada com o 25 de Abril, que fica despojada dos seus haveres, que tem de fugir para o Brasil.
Fugiram realmente para o Brasil?
Acabaram por não ir, mas durante muito tempo as malas estiveram feitas, à porta de casa. Intuitivamente reagi contra isso. Ainda tenho imensas disputas ideológicas. Com todas as falhas e vulnerabilidades que a democracia possa ter, estamos melhor nela do que num regime opaco e sufocante.
Cresceu com a sensação de que podia ser preciso partir? Que havia uma certa precariedade.
E foi preciso partir, embora não por esses motivos. Quando se deu o 25 de Abril, (tinha cinco ou seis anos), estava em Cabo Verde. O meu pai era oficial de marinha e sempre tivemos uma vida itinerante. Com nove anos fomos viver para Bruxelas, onde fiquei até aos 19. Passei toda a adolescência na Bélgica, portanto. Já eu estava na faculdade, o meu pai foi para comandante naval nos Açores.
E a sua mãe, que fazia?
A minha mãe penaliza-se muito por não ter tido uma carreira. Tem o curso de biologia, que nunca exerceu. As mulheres de militares são muitas vezes esquecidas, e por exemplo na guerra colonial foram uma retaguarda emocional e familiar importante. Foi a nossa educadora, e foi uma função que assumiu inteiramente. Decidiu em que colégio andaríamos (primeiro o inglês, depois o alemão), decidiu tudo.
Quando se mudou para a Bélgica, estudava na escola inglesa, em Portugal. Aos nove anos, recebeu duas línguas madrastas: o francês e o alemão. Foi assim que o sentiu? Como viveu essa transição?
Para qualquer criança, ser arrancada do seu país, do seu contexto social e linguístico é duro. Mas era o que tinha de ser. “Agora vais aprender alemão”. E em seis meses aprendi alemão. Voltando às inseguranças: deve deixar sequelas uma pessoa estar numa situação na qual não se sente confortável, que não domina...
Na rua falavam francês?
Sim, e em casa português. Bruxelas era muito cosmopolita, e tenho saudades de estar a uma mesa e de falar para a esquerda em francês, para a direita em inglês, para a frente em alemão.
Falar várias línguas e estar com pessoas diferentes foi essencial na sua vida futura? Ensinou-lhe a versatilidade?
Ah, sim. Se há coisa boa na educação que a minha mãe nos deu, a mim e à minha irmã, é que ambas nos tornámos desembaraçadas e destemidas. Do contacto com outras culturas, a ideia mais importante que retirei foi a de não ter ideias preconcebidas. É um exercício que continuo a fazer: não ter nada como garantido ou preconcebido. Ter uma mente aberta.
O que é que Portugal era nesses anos para si?
As férias. Um país onde a juventude era politicamente empenhada – o que para mim era estranho. Estávamos a instalar a democracia, era o pós-25 de Abril e lembro-me de vir no Verão e assistir com espanto às movimentações, aos comícios. Era também um país de uma certa balbúrdia. Na escola alemã tínhamos seis semanas de férias e eram seis semanas mesmo. Aqui eram quatro ou cinco meses, e a somar a isso havia greves. Não me ficou a ideia de rejeição do mundo alemão, que é considerado demasiado rígido. Ficou-me a rejeição pela balbúrdia, a falta de cumprimento dos deveres enquanto cidadãos, enquanto parte de um todo que tem que respeitar os demais.
E a criança anterior a esse mundo de deveres e obrigações, como era?
Não chegou a desabrochar. A memória mais antiga que tenho de mim é numa aula de pintura em Cabo Verde. Teria uns três, quatro anos e estava a pintar um vulcão!
Ficou-lhe a relação com a natureza que sempre aparece nos relatos sobre África?
Não. Tenho uma relação mais contemplativa com a natureza. Sou mais do espaço doméstico. Se pudesse, não saía de casa, fazia a minha vida toda em casa. Sinto uma grande necessidade de estar sozinha. Ou seja, de estar comigo. A casa é mais um ambiente e menos o que está lá dentro; embora estejam lá as minhas memórias, os livros e a música.
Mas é um abrigo? Cria distância e protecção em relação aos outros?
Tudo isso. É um casulo de que preciso e ao qual regresso.
A casa que tem parece-se, na decoração, com a casa dos seus pais? Como é que era o seu quarto nas várias casas por onde passou, o espaço que construiu como sendo seu?
Não consegui, para o bem e para o mal, libertar-me dos espartilhos sociais e culturais nos quais nasci; e em parte igual tenho a diferença relativamente a isso. Para ser honesta, vivo numa grande ambiguidade.
Há uma que cumpre o seu destino e outra que o contraria e se rebela. Há uma que é a menina bem comportada, e outra que é a sobrinha neta do Cesariny.
Com tudo o que isso implica. E por isso, muitas vezes, não me sinto encaixada em lado nenhum. O que também contribui para a insegurança. Gostava de saber catalogar-me, de saber onde pertenço. Também se vê nos grupos de amigos que tenho. São pessoas do espectáculo, são pessoas da política, são pessoas da advocacia, os chamados betos [risos]... É um mosaico.
O que é que a Teggy, amiga da Maria Rueff, tem a ver com a Teresa, amiga do Paulo Portas? Parecem mundos inconciliáveis.
E às vezes são. Não consigo prescindir de nenhum deles. Tudo ponderado, é muito melhor contactar com vários mundos. Mas traz-nos uma grande instabilidade.
Voltemos à casa. O que é que se parece com a casa dos pais?
Os objectos, as pratas..., algumas pratitas, os sofás. Como investi tudo na própria casa, o que tenho é reciclado. Umas coisas da casa da tia, outras em segunda mão. Umas dadas, outras herdadas.
No que é escolhido por si, qual é o traço mais marcante?
A modernidade. Tento contrapor ao acervo herdado um lado mais moderno.
Do quadro da menina de boas famílias, fazem parte o ballet (que praticou 12 anos) e uma disciplina musical. Quando é que começou a contrariar esta previsibilidade? Como é que tomou consciência de que era outra, para além dessa que lhe estavam a ensinar a ser?
Vendo mundo. Tudo mudou quando aos 16 anos decidi que queria conhecer os Estados Unidos. Os meus pais sempre me pagaram os estudos e tudo o que era estritamente necessário. Se queria dinheiro para os alfinetes, tinha de ganhar para eles. Fosse a tomar conta de criança ou a distribuir jornais na caixa do correio.
Fazia isso porque vivia na Bélgica. Não era muito provável que o fizesse em Portugal...
Seria impossível. E se me custava muito passar os fins de semana a dar explicações ou a passear cães, confesso que isso me deu um grande desembaraço. Hoje em dia posso fazer tudo sem sentir que estou a ser apoucada ou que me caem os parentes na lama. Portanto, trabalhei e fui sozinha para os Estados Unidos. Fiquei em casa de pessoas amigas, mas nos percursos entre cidades estava por minha conta. Talvez tenha sido audaz, mas na altura parecia-me muito natural. Como era mais barato, fui nas companhias aéreas islandesas! Fui de comboio até ao Luxemburgo e aí apanhei o avião. Estive na costa leste, em Nova Iorque, em Washington.
Teve a vertigem da liberdade?
Ai, tive! Mas havia também a responsabilidade a sugar-me... Sempre que tenho mais liberdade, tenho todos os deveres que lhe estão associados. Ter poder é sempre ter mais responsabilidade.
Não lhe passava pela cabeça aldrabar? Pensar que estava sozinha do outro lado do mundo e que não iam saber o que estava a fazer?
Nem isso! Mesmo quando estou sozinha, não consigo prevaricar. O pior castigo é o sentimento de culpa. Por não ter estado à altura da liberdade, do poder, da responsabilidade que me foi atribuída. Para mim, o inferno é o eterno remorso. Mas nos Estados unidos aprendi a grandeza do mundo. É mesmo um sítio onde tudo pode acontecer. Estar numa avenida em Nova Iorque, passar uma pessoa com rolos na cabeça ou vestida de super-homem, e tudo ser encarado com naturalidade. Ainda hoje me fascina: como a humanidade é multifacetada. E a liberdade: o valor que mais prezo. Hoje está muito na moda dizer mal dos Estados Unidos. Mas é, por acaso, o país mais livre do mundo. De expressão, de contestação, de informação, de as pessoas poderem sair daquilo que seria o seu trajecto natural e serem o que quiserem.
Por falar em liberdade: o Cesariny era tio por parte do pai ou da mãe? Como é que ele era olhado na família?
Era o tio excêntrico. Era do lado do pai. Não fui educada nessa liberdade tão iconoclasta quanto a do Cesariny. Pelo contrário, a minha educação foi muito burguesa.
De qualquer modo, passava a ideia de que a excentricidade era possível.
Mas isso não era valorizado na família. O que era valorizado era a excelência.
Ele era um excelente poeta.
Tem razão. Mas devia ser uma excelência mais reconhecida socialmente.
Que predestinação era a sua? Ser mulher de um diplomata? Ser, como a sua mãe, dona de casa e exemplar educadora?
Não cresci a querer ser médica ou advogada. A única coisa que me lembro de ter querido ser foi florista! Tinha cinco anos quando o disse, e a resposta foi: “Muito bem, mas primeiro tiras um curso”. Sobretudo da parte da minha mãe, era isto. A família dela tinha tido uma vida abastada e de repente viu-se destituída das propriedades, muito abalada naquilo que entendia que eram os seus alicerces.
Os preconceitos são difíceis de abalar. Não era crível que fosse florista, ou que casasse com um florista!
[gargalhada] Exactamente. E não havia os floristas que hoje aparecem na Wallpaper. Mas também havia uma estranha aceitação da vida que escolhíamos... A minha irmã passou um ano a viajar pelo Cambodja, pelo Vietname... Surreal.
Premeia-se a experiência de mundo e o esforço – ganhar para os alfinetes ajuda a formar carácter, como diz o pai do Calvin. Mas depois, realmente, não há permeabilidade social.
É verdade. Sempre tive maior inclinação para as artes, em especial para a Arquitectura. Mas subtilmente o curso de Direito foi indicado... Havia maior entusiasmo pela ideia de estudar Direito do que Música ou Belas Artes. Mas não se pode pedir mais às pessoas do que elas podem dar: os meus pais foram educados num determinado contexto, há uma natural tendência para perpetuar esses moldes. Em todo o caso, saí bastante deles.
Sai deles e está neles. E isso é notório até na sua vida amorosa. Pelas revistas soube-se de uma relação que manteve com um produtor de televisão [Piet Hein Bakker]; e que o pai do seu filho é o Vasco Rato, um homem de direita, mais consentâneo com esse quadro burguês.
Não queria falar da minha vida pessoal. Só posso dizer que não gosto de posturas dogmáticas. A vida não é como vem nos livros. É como a conseguimos tecer. Há um enorme desfasamento entre o nosso imaginário e a realidade. É verdade que há pessoas que moldam as suas vidas a uma aparência que vem nos livros, mas acho que pagam um preço demasiado elevado. Eu prefiro pagar este preço.
“Preço elevado” quer dizer: nada justifica castrar o que também somos em nome de uma organização social?
Para mim, seria. A liberdade também tem um preço. Mas cada um é que pode determinar o preço que está disposto a pagar, até onde quer ir.
Considera que já existe uma heterodoxia no seu percurso e nas suas escolhas...
Obviamente. Como há-de imaginar, ser mãe solteira num partido de direita não corresponde ao protótipo...
Aí, o privado cruza-se com o público.
É, é. Há preconceitos difíceis de ultrapassar. Sou mulher, sou loura, de direita, advogada, política... Faço um pleno.
Porque é que decidiu ser mãe aos 37 anos, e solteira? Achava que a sua realização passava por aí?
Dizer isso talvez fosse excessivo, mas não gostava de passar pela vida sem ser mãe. Sempre idealizei ter uma família enorme...
Mas esse é ainda o sonho da princesa e do seu conto de fadas.
Não sei... Houve um momento em que podia ter tido isso e não quis. É mais no sentido de ter uma casa cheia, com gente a entrar e a sair, com grandes fluxos. A nossa casa era hermética. Depois, por força das circunstâncias, isso não aconteceu. Acabei sendo mãe solteira.
O chavão da mãe solteira...
Soa mal...
Parece um chavão de certa esquerda, orgulhosa por ser mãe solteira.
Não queria, também, falar muito disso, porque é entrar na minha vida privada. Mas, outro chavão: um filho muda tudo, faz reequacionar tudo, as prioridades. Sabe a sensação de estar apaixonada, de ter o coração aos pulos? Mas, ao contrário das relações amorosas, com a criança isso vai crescendo, e queremos estar mais e mais com essa pessoa.
Dá consigo a imaginar que tipo de mãe vai ser? É como se agora pudesse pegar na sua vida em mãos e perpetuar ou não uma tradição...
Isso é verdade. E é um risco que corre qualquer mãe: ser sabotada por uma tendência de perpetuar os modelos que conheceu. Ah, já vivo apavorada com a possibilidade de, aos 15 anos, querer ter uma mota! Depois há os valores que lhes queremos passar. A escola: gostava que fosse a alemã.
Quando decide que vai ter uma criança e ser mãe solteira, telefona ao líder do seu partido a dar conta da opção?
Foi exactamente assim que aconteceu.
O líder era Ribeiro e Castro. O partido é uma espécie de segunda família, um prolongamento da família biológica? Sentiu necessidade de justificar que, apesar de não ser a mais católica das opções, ia levá-la avante?
Foi uma situação assumida por mim com tudo o que isso pudesse comportar. É humano e é natural sermos maniqueístas: gostar de umas coisas e não gostar de outras, ser de esquerda ou de direita. Mas a realidade é muito mais contraditória. Seria mais confortável encaixar num nicho e defendê-lo até às últimas consequências... É mais difícil lidar com esta complexidade.
Dê-me um exemplo.
Uma questão que causou algum choque: aquela que assumi em relação à penalização do aborto. O rumo que isto tomou excedeu o que eu esperava, e quase se está a criar uma via verde para o aborto. Mas assumi, já no referendo de 1998, que a criminalização do aborto não era uma medida adequada. Nem no sentido da prevenção nem no da punição. As mulheres, ou faziam abortos em situações de enorme precariedade, ou confrontavam-se com um processo judicial que, em termos sociais, sobretudo em meios pequenos, era altamente penalizador.
Como é que essa posição foi moldada?
Durante a faculdade, dava umas explicações num bairro de lata e um miúdo de oito anos levou-me à barraca dele, onde a irmã estava “muito doente”. Estava com uma hemorragia enorme. Era uma adolescente, teria uns 14 anos, a quem uma vizinha tinha feito um aborto. Perguntei: «Mas porque não foi ao hospital?», – isto era lado do Santa Maria; «Ah, disseram-nos que isto é um crime e ela ainda vai presa». A possibilidade de uma jovem ter podido morrer, na sequência de um aborto clandestino, acrescido do medo de sanções penais, mostrou-me que a realidade não é tão simples.
Presumo que isso tenha custos na relação com o PP...
Esta posição criou-me imensos problemas dentro do partido. Nunca fiz, nem nunca farei aquele exercício de pôr o nome no Google e ver o que lá vem. Seria incapaz de ver as discussões nos “sites” de direita sobre esta posição. Temo o pior!
Que opinião lhe interessa ouvir?
Não é a de pessoas com quem concordo sempre ou que têm a mesma mundividência. Importam-me opiniões lúcidas e sinceras. Ouço muitas, até de estranhos. Mas a decisão, para toda a gente, é um acto solitário. O que me faz em última análise decidir? Mais um chavão: um misto de razão e intuição. Tendemos a negligenciar a intuição, e tenho vindo a aprender que ela não é negligenciável. Quando tomamos decisões que violentam muito a nossa sensibilidade, normalmente não correm bem.
Colam-lhe vários estereótipos: é mulher, loura, comenta-se que é um pouco tola, diz-se que faz o que o Paulo Portas quer. Como se fosse o objecto decorativo que anda ali pelo PP.
Essa imagem que me colam, e que é absolutamente errada, resulta de nunca ter feito um esforço para me descolar dela. Eu poderia ter vincado a minha autonomia em relação ao Paulo Portas ou ao que quer que fosse. Agora, corro o risco de parecer, com estas minhas posições, que estou a dar o Grito do Ipiranga. Para mostrar que afinal existo. Mas são questões relativamente às quais não posso ficar silenciosa. Seria uma violência grande se abdicasse de conviver com quem quero ou de fazer a vida como quero. Outra coisa é o dever institucional de respeito por determinadas matrizes. Acho que sou penalizada por ser mulher e por ser uma mulher com determinadas características.
Ou seja, feminina? Acha que o facto de exaltar a sua feminilidade, maquilhar-se, pintar o cabelo, andar de salto alto, penaliza-a?
Acho, acho. Se tivéssemos tido esta conversa há uns meses, responderia: “Não, nem pensar”. Mas agora, sim. Esta sociedade vive muito da forma, tanto quanto do conteúdo. Se pusesse uma carantonha, cortasse o cabelo à escovinha, tivesse uns óculos rectangulares e fizesse mais o género Bairro Alto, não seria assim. Tudo isto se presta muito ao comentário: “É loura burra, é o adereço do Paulo Portas”. Não tive a lucidez ou vontade ou paciência para contrariar isso.
Na semana a seguir à nomeação para a Secretaria de Estado esteve sob fogo. O que parecia, realmente, é que era a marioneta do Paulo Portas e ia para onde ele mandasse... Como é que foram esses dias?
Um pesadelo. Mas criamos um mecanismo de auto-defesa, que é não ler. Não faço ideia de um centésimo das coisas que se escreveram e disseram sobre mim nessa semana e em geral. Foi uma decisão muito difícil. Estava a subir os degraus do Palácio da Ajuda para ir tomar posse como Secretária de Estado da Defesa. Recebo um telefonema, não do Paulo Portas, mas do primeiro-ministro a dizer: “Aconteceu aqui uma coisa, que depois explicarei, mas não vai tomar posse como Secretária de Estado da Defesa; vai para as Artes do Espectáculo”. Naqueles segundos... E tinha, dois metros à minha frente, o chefe do protocolo a mandar-me entrar... Se hoje tomaria a mesma opção, depois do que sei? Não sei. Não é coisa que se peça a uma pessoa. Mas pronto. Não tive o profissionalismo de zelar mais pela minha imagem.
Insisto na ideia de que o PP é uma segunda família. Há momentos em que se individualiza, e tem uma criança, solteira, e noutros não se destaca do grupo.
Mas tem de ser um grupo.
Que se reconhece, protege, ampara, não se deixa cair.
É assim que deve ser. Até me confrange e preocupa este enaltecimento de dissidentes, que adquirem personalidade pública pelo facto de serem dissidentes, e que depois funcionam como flores na lapela de quem os aproveita.
Sente-se confortável no grupo, e por isso está nele. Mas, e se o grupo ameaçasse a sua liberdade? Se o líder do grupo dissesse: não queremos cá no nosso partido mães solteiras...
Não posso dizer qual é a escala, mas há situações em que não posso deixar de me destacar. Outro exemplo: sob a liderança de Ribeiro e Castro foi discutida e votada na Assembleia a lei sobre a procriação medicamente assistida; tínhamos uma orientação de voto, no sentido de votarmos contra. Custou-me muito acatar essa disciplina e fiz uma declaração de voto na qual dizia que, no essencial, concordava com a legislação que tinha sido viabilizada. Mesmo dentro de uma família há discordâncias. O que é preciso é perceber a partir de que altura estamos mais em desacordo e há mais aspectos que nos diferenciam do que nos unem. E aí, não é um problema do grupo, é nosso. Somos nós que temos que sair, e sem grande estardalhaço.
A sua família tem especial orgulho no seu percurso político?
Nenhum, nenhum. No dia em que tomei posse como Secretária de Estado da Segurança Social, telefonei à minha mãe: “Olhe, mãe, logo à tarde vou tomar posse...”; e a minha mãe: «Ah. Mas olha, não te esqueças de mesmo assim passar no correio e pôr aquela carta que te pedi...».
Sentiu ao longo da vida que reconheciam os seus sucessos, as suas conquistas?
Nunca há grandes manifestações... Estou a tentar lembrar-me... Não, é mais: “Ah, muito bem, muito bem, mas não te esqueças de deixar o lixo quando saíres”. De toda a gente.
Nunca sentiu que fez uma coisa mesmo bem e que isso contentou aqueles que para si são importantes? Isso não resolveria uma parte da insegurança?
O que tento é manter equilíbrio... Tento não ser má filha, má irmã, má amiga. Mas com estas bolandas todas, estes horários da política, às vezes é um bocado desregrado.
Porque é que está a responder completamente ao lado?
Porque não me ocorre nada que tenha feito [mesmo bem e que tenha merecido essa gratificação].
Ainda lá atrás: regressou da Bélgica aos 19 anos, estudou Direito na Clássica, e pensou ser advogada. E contudo, é desde há anos profissional da política.
Pus-me o seguinte limite: se chumbar nalguma cadeira, mudo de curso. Mas lá fui fazendo as cadeiras todas. Não foi com grandes notas, mas lá fui fazendo. De repente, tinha o curso nas mãos. Nunca tive o rasgo de dizer: agora vou tirar arquitectura e fazer o que gosto. Acomodei-me àquele rame-rame, do estágio, do escritório de advocacia. O ponto de viragem foi quando me convidaram para ser assessora jurídica no grupo parlamentar no CDS.
Já conhecia o Paulo Portas, claro.
Conhecia porque tratava dos processos dele no Independente, no escritório onde fiz o estágio (do Pedro Rebelo de Sousa e do Luís Nobre Guedes). Foi assim. Nunca tinha tido nada a ver com política. Conheci-o como arguido! [risos]
Qual foi a primeira impressão que lhe causou?
Eu conhecia-o do que lia. Era notável que um miúdo de 26 anos fosse director de um jornal. Tem características de liderança como não encontro noutro em Portugal. Fui como técnica, mas sem ligação ao partido.
Há alguma heroína romântica que a tenha acompanhado?
Não propriamente. Admiro as mulheres que se afirmaram contra todas as expectativas. As sufragistas, por exemplo. Françoise Giroud, Simone Weil. Admiro mais pessoas concretas, que conseguem levar avante o seu dia a dia, apesar das adversidades. Admiro mais estas do que a Sissi! Personagem romântica, quem? A Madame Bovary? Não! Nunca consegui despir-me de um excesso de lucidez e responsabilidade, no meio do romantismo e da aventura. Há sempre qualquer coisa que me chama a assuntos tão prosaicos quanto pagar a renda de casa ou a conta da electricidade.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007