Vasco Graça Moura
Diz de si que não é um político, que nunca esteve interessado em carreira política. Em todo o caso, é próximo dos círculos de poder há pelo menos 30 anos. Diz que se interroga sobre o que propicia o acontecer das coisas, que se enreda num «ir derivando», que é próprio das letras, da especulação, da filosofia. Mas não perde de vista um sentido pragmático, uma preocupação com o rigor. Nasceu no Porto, numa família burguesa com tradição no Direito. Notabilizou-se, mais que tudo, a escrever poesia e a traduzir poesia. O mercado recebe por estes dias dois novos títulos com a sua assinatura: um bestiário “encontrado” na poesia de Rilke, que traduz; e um livro de poemas que escreveu para as esculturas de José Aurélio, com fotografias de Ana Gaiaz. É um homem erudito. O estilo virulento, a crer no seu auto-retrato, disfarça uma timidez: «Sou um tímido. Nas coisas que me tocam mais fundo, sou ainda muito mais».
Tenho dois pontos de partida e proponho-lhe que escolha um. Apontou a tradução da «Divina Comédia» como um dos momentos mais felizes da sua vida; quer falar da sua relação com Dante? Ou prefere falar de uma coisa tão prosaica como o assunto do jantar de domingo com as suas filhas?
Nos jantares vêm à baila várias coisas: desde as leituras que estão a fazer, àquilo que eu estou a fazer, a conferência em que vou participar amanhã. Quer esteja em Estrasburgo ou em Bruxelas ou num sítio qualquer telefono-lhes todos os dias, falamos sobre as várias coisas que se passam. Ainda hoje disseram que tinham ido ver um filme de vampiros de que eu não ia gostar com certeza! Hoje também falámos da utilização que estão a fazer de um livro de cozinha...
Portanto está preso à vida de todos os dias, às coisas mais comezinhas...
Sim. O quotidiano, nas suas implicações imediatas, merece-me toda a atenção. O que não quer dizer que não haja uma corrente subliminar em que outras coisas estão a ser digeridas simultaneamente.
Está sempre num registo de palimpsesto... Porque é que escolheu começar pelo jantar e preteriu o Dante?
O Dante acabou em 95, não é?, e isto acabou há três quartos de hora. O Dante era uma aposta interpretativa extremamente complexa e correspondeu a um período de concentração intensíssima. Trabalhava durante o dia na Comissão dos Descobrimentos e fazia o Dante à noite e nos fins-de-semana. Lembro-me que acabei num domingo e fiquei com uma sensação muito exaltante. Foi um momento epifânico.
O que é que fez para comemorar?
Não fiz nada. Tinha uns cunhados para almoçar e disse: “Acabei o Dante”. Os autores que traduzi por iniciativa própria acompanham-me desde os 17, 18 anos. Lorca, Rilke, Villon, Ronsard, Dante, Petrarca.
Numa entrevista, a propósito da velocidade com que trabalha, fala da percepção da rede: “De repente, encontrei a forma e atirei-me à tradução como se tudo se tivesse tornado inteligível”. Como se fosse um tapete, cuja trama consegue deslindar?
Há coisas que têm um desenho regular que você sabe que se vão repetir ou ecoar de alguma maneira. Acontece no Dante, acontece no Petrarca. Trabalhar depressa significa não perder a capacidade de surpreender simetrias, prolongamentos, ecos, que depois convergem para dar à tradução um tipo de unidade tão correspondente quanto possível àquela que ela tem no original.
Se olhássemos para a sua vida, se a víssemos como um tapete, quais seriam os nós centrais?
Ui, está cheia de nós, centrais e periféricos. Há nós que não sei identificar em termos de calendário, nem de topografia, mas que correspondem a recorrências, a focos de irradiação doutras zonas da tapeçaria. Fui sempre muito fascinado, quer pelas artes plásticas – hesitei entre o Direito e as artes plásticas – quer pela música, e encontro muitas vezes naquilo que estou a escrever vestígios disso. Marcas a que podia chamar as minhas hipálages interiores, que me dão a sensação de que estou a trabalhar uma coisa com a palavra, mas que estou de facto a trabalhar noutra área da criação como sucedâneo ou possível equivalente.
Faz muito esse exercício introspectivo, no sentido de identificar os seus pontos regulares?
Não tenho autofagias introspectivas nem especulativas.
As suas recorrências aparentes são a melancolia, a ironia, a vontade de ordem, a erudição, a tentativa de harmonia...
Não podia conviver com isso tudo, não é?
Pois não. Mais atrás, há uma infância e uma adolescência que define como extremamente felizes. Parece que não há pontos dissonantes. A melancolia radica justamente nisto?
A melancolia tem muito a ver com um certo sentido de uma ordem perdida do mundo. E com um certo sentido de incapacidade fonciére da plenitude do mundo. Nos melancólicos isso gera um lado mais saturniano, mas humoral, mais irónico e mais reflexivo.
Tem uma preocupação obsessiva com a oficina, com o trabalho, com o rigor. Todavia, dispõe-se a empresas arriscadas, hercúleas. Porquê?
Tenho muito a tentação de experimentar. É uma espécie de acicate permanente. Nunca parto para as coisas com a certeza de que as faço. Parto com a certeza de que farei tudo para as fazer. E parto com a certeza de que se correr bem, faço depressa. Sei que estou disponível para me atirar; a questão prática acaba por passar para segundo plano, a questão é a disponibilidade mental.
Um dos problemas da Pátria tem que ver com uma atitude laxista? Concorda que o seu posicionamento é em, muitos aspectos, o contrário do que é comum em Portugal?
Provavelmente. As pessoas estão desorientadas, ou por empanturramento construtivo, ideológico, teórico, ou por excesso de negligência, de improviso. A minha atitude parte, em relação a estes dois aspectos, de um ângulo mais pragmático. Procuro ter as minhas opiniões mais ou menos bem formuladas, mas não me sinto nada empertigado com noções filosóficas. E também não sou um improvisador, no sentido português do desenrascar. Sou alguém que desenvolveu capacidades que têm a ver com uma certa agilidade perante uma situação.
Que ferramentas são essas?
Passa tudo pela escola, pela noção de disciplina e esforço. Sou um bocado contra os subsídios de criação. A criação cultural tem que se debater com as dificuldades.
No pain, no glory?
Exactamente. Tem que haver um tipo de esforço e disciplina que deve começar na escola. A escola é fundamental, não apenas em questões de língua, mas em questões de aprendizagem, de esforço e de prémio desse esforço. Penso que esse é o ponto mais complicado da vida portuguesa hoje. E depois há um segundo aspecto: sobretudo no sector masculino da população começa a haver um grave efeito da falta do serviço militar obrigatório, nos termos em que fiz o meu.
Como sim?
Fiz 39 meses de serviço militar obrigatório. Tinha vinte e cinco anos, o curso feito, casado e pai de dois filhos, a ganhar 17 ou 18 escudos por mês como recruta. De maneira que foi muito mau, em termos de vida doméstica e de vida profissional. Mas em termos de perceber uma série de coisas ligadas ao esforço, à necessidade de concertação de esforços para determinados objectivos, à necessidade de disciplina, foi importantíssimo. O meu filho Vasco, que tem 39 anos, fez o serviço militar em Lisboa, sentado a uma secretária, durante seis meses.
Não há outras maneiras, e já agora também às mulheres, de incutir a importância do esforço e a meritocracia?
As mulheres têm agora essa carreira aberta... Não sei, falo por mim: achei importante ter feito o serviço militar. Para perceber aspectos da realidade e para ganhar competências de controlo da realidade. Não é andar à pancada, como é evidente... São formas de disciplina, formas de saber que depois de correr 14 somos capazes de correr mais cinco se for preciso.
Portugal vive uma crise de auto-estima? Os escândalos na Justiça e os problemas económicos corroboram uma visão desesperada que temos de nós mesmos?
O meu diagnóstico é suspeito, dadas as minhas posições políticas, mas uma parte fundamental está corrigida. Temos o azar disso que aconteceu, uma crise que ainda não acabou, e provavelmente uma outra crise que está em vias de se abrir, que tem a ver com o choque petrolífero. Mas, nesse aspecto, penso que estamos hoje muito melhor do que estávamos há dois anos.
Há a premência da sobrevivência, em muitos casos da vida portuguesa.
As pessoas vivem a vida dominada por três ou quatro preocupações. Uma é: desde que tenham o ordenado garantido, não se preocupam minimamente em que o seu trabalho corresponda. Depois há o caso das pessoas que estão desesperadas, evidentemente. Há um outro lado que tem a ver com a superficialização da dimensão interior das pessoas, para o que contribui a televisão, a sociedade do espectáculo, a facilidade com que certas coisas são acessíveis, tipo internet. E não há uma reelaboração crítica. Isto, com níveis culturais tão baixos como os que nós temos, conjuga-se num cocktail implosivo: acaba por destruir toda a gente por dentro. Mas não temos solução que não seja a de rapidamente sair daqui, senão estamos lixados. Com a Europa, o alargamento e com o abrir das competitividades, estamos completamente lixados.
Somos sempre um país de segunda...
Só fomos um país que deu cartas no mundo na altura dos Descobrimentos.
Gosta de ser político? Ou vê isso como uma contingência, por precisar de ganhar a vida e não poder tê-la tão folgada quanto gostaria através da escrita?
O problema não se põe talvez assim. Eu não gostaria de ser político com responsabilidades executivas.
Esse apego ao poder, não o tem realmente?
Fiz a experiência em 75, chegou-me. Não governava nada, mas enfim...
Disse que gostaria de ter sido um intelectual do Renascimento, que acompanha e aconselha os príncipes nos domínios da estética. Ora, este é um lugar de enorme influência. Tento perceber o seu apego ao poder...
Há dois tipos de relação com o poder. Na Imprensa Nacional [Casa da Moeda], onde estive dez anos, na Comissão dos Descobrimentos, onde estive oito, tinha o prazer de poder promover coisas que achava importantes. Estava convencido da utilidade e da necessidade do que fazia. Agora participo de formas de expressão do poder em que o mais que posso fazer é conjugar-me com outros colegas que representam os mesmos interesses ou o interesse nacional. Mas agrada-me aexistência da possibilidade. Sei que se precisar de algum assunto que tenha a ver com tubos de escape ou com a produção de coelhos bravos, tenho informação. A partir do meu gabinete, do meu computador e da biblioteca do Parlamento [Europeu], tenho acesso a tudo.
O que era suposto que fosse a sua vida aos 16 anos, ainda antes de ter ido para a faculdade?
Depois das hesitações em relação às Belas-Artes e às Letras, decidi ir para Direito.
Sucumbiu às pressões familiares, ou à tradição, pelo menos...
Há uma tradição de cem anos. O meu avô paterno era advogado, o meu tio era advogado, eu e dois primos fomos advogados e filhos de vários de nós já o são também. Isto tem um peso enorme num miúdo de 16 anos. Esperavam que fosse para Direito e que fosse advogado e que fosse bem sucedido.
Mas o seu pai tinha uma ligação à poesia. Citava-lhe Baudelaire, não era?
Desde a minha infância mais recuada preocupava-se muito com a minha educação cultural, digamos assim. Uma vez ele chegou a casa e eu mostrei-lhe uns versos que tinha feito; explicou-me todo o jogo de tónicas, a métrica... Eu tinha para aí seis anos ou sete.
Eram aqueles poeminhas que escreveu para a sua mãe, para o Dia da Mãe?
Desse género. O meu pai não exprimia expectativas. O meu pai, como todos os pais, estava convencido da qualidade dos filhos. Era de uma tolerância total, nunca nos impôs rigorosamente nada. Mas falava-me da importância do irmão, que era um grande advogado e tal, da importância do pai que era um senhor muito respeitado e tal... Os paradigmas que me apresentou traziam todos a mensagem: “Tens que ficar a esse nível” ou “É de esperar que fiques a esse nível”.
E a sua mãe?
A minha mãe era um pouco o contraponto disso. Tinha, como todas as meninas prendadas da época, estudado piano e francês, dava-nos muitas vezes algumas ideias de apreciação musical, discordava do meu pai em relação às leituras que ele nos punha nas mãos, menos próprias para a nossa idade. Mas tinha outro tipo de ocupação diária, tratar de cinco filhos...
É o mais velho desses cinco filhos, que vem estudar para Lisboa. A sua família é burguesa, do Porto.
O meu pai tinha umrigor enorme e procurava incuti-lo, em conversas à mesa com os filhos. Nos princípio dos anos 20, quando o meu pai tinha 16 ou 17 anos, o meu avô morreu arruinado, a tentar salvar os filhos. Aquelas tragédias da tuberculose, eram nove irmãos, morreram cinco... Estavam atrapalhados. Nessa altura, o meu pai fez umas traduções para um tio que vivia no Brasil e tinha uma editora.
Tinha uma relação confessional com ele? Teve-a com alguém? Ou só com a escrita?
Só com a escrita. Era um adolescente muito fechado.
Mas ainda hoje parece, sabe?
Sou meditativo, se quiser, ou muito reflexivo. Mas isso não impede alguma acção.
Ou seja, onde podemos encontrá-lo mais intimamente é na sua escrita?
Provavelmente.
É na verdade da escrita que gostaria de ser lido e recortado daqui a 30 anos? Como acha que as suas filhas o vão recortar daqui a 30 anos?
Tenho uma relação com elas muito especial, muito terna e completa. Penso que hão-de ter uma boa recordação minha. Mas o mais interessante neste momento é começar a descortinar as apetências que têm, caminhar com elas, ajudar à problematização...
Quase nunca fala de amor.
Eu?
Evidentemente há a sua poesia, os romances; mas na vida real, escuda-se.
É uma zona mais pudica, que não implica exteriorizações excessivas. É uma questão, a meu ver, de bom gosto.
Não acha que a apreciação da sua poesia fica muito tingida e inquinada pela sua acção política?
Penso que não. De um modo geral, mesmo os meus mais evidentes adversários políticos têm uma certa apreciação pelo que faço enquanto poeta.
Nem sempre foi assim. Talvez tenha que ver com os prémios que lhe foram atribuídos, com uma consolidação do seu percurso intelectual.
Talvez. Começo a tomar posições políticas regulares desde 74. Antes disso, as minhas colaborações eram literárias. Nos últimos quinze anos é que, não fazendo política no sentido executivo, fiz política no sentido da militância. Exponho-me muito. Apesar de não ser o único a expor-me...
Reage com extrema violência. O seu estilo, que apelidam de trauliteiro, tosco, excessivo, entre outros epítetos, é muito falado.
É uma reacção.
Por se tratar de uma reacção, ia perguntar-lhe se é muito susceptível?
Não sou nada susceptível. Agora, se me põem em questão em termos que me desagradam, respondo com a maior eficácia de que sou capaz. E às vezes, sou capaz.
Retornemos a Dante para encerrar o ciclo. Jorge Luís Borges tinha uma predilecção por um verso da «Divina Comédia», do primeiro canto do Purgatório: “Dolce color d’oriental zaffiro”
A Sophia de Mello Breyner também. A Sophia cita sempre esse verso da Divina Comédia.
Será a música deste verso? Como escolher um verso entre 14 mil? Qual é o seu verso?
Há um, no episódio de Francesca, que me arrepia: “Na boca mi baciou tutto tremente”. A própria orquestração do verso dá até um frémito, não é?
O que queria saber é se isto o comove para além da apreciação estética?
Comove-me a dimensão cósmica do amor.
E a “selva oscura”, que é uma expressão de Dante a que recorre num poema do seu último livro, «Variações Metálicas»?
É uma expressão que uso muito, por influência dantesca e porque dá a ideia do labirinto, de uma coisa inexplicável.
Dê-me um momento da sua vida que possa corresponder a esta “selva oscura” e que seja confessável?
Senti uma grande depressão aí por 1982. Uma depressão sentimental, com efeitos noutras áreas da minha vida, durante três ou quatro meses. Há um poema chamado “A Viagem de Outono”, é uma descida do Reno de barco, que termina a falar da selva escura e um pouco com o mesmo sentido.
Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2004