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Anabela Mota Ribeiro

Vítor Bento

02.02.14

Primeiro, fala a uma velocidade estonteante. Segundo, viveu uma vida regrada. Uma coisa parece não bater com a outra. Há uma aceleração, uma urgência, que não combinam com o homem que Vítor Bento é. O tipo bem comportado. O que faz um percurso de excepção.

E ao mesmo tempo, sem essa aceleração e essa urgência, ele não teria sido a pessoa que publicamente conhecemos. Presidente da SIBS e da SEDES.

Pertence à categoria dos homens que partiram do nada e que construíram uma carreira a pulso. E nisso, contou apenas com ele, com o seu talento, com a sua capacidade de trabalho. É um homem suficientemente equilibrado para dizer, quando o convidaram para Secretário de Estado e Ministro das Finanças, não. Suficientemente orgulhoso para saber, quando o escolhem, que merecia. É um homem suficientemente reconhecido para não usar fato e gravata e ter a certeza de que não vem mal ao mundo por isso. Lá está a calça bege, no tom clássico das calças beges, o sapato que, se não tem berloques, podia ter. O acerto está lá, os códigos estão lá. E o conforto de há anos ser one of them.

É discreto, amável, straight to the point. Mas gosta de argumentar, discorrer, articular, de verbos nos quais se afirmou. Diz que é um estóico. Não é um emocional, mas é capaz de demonstrar comoção em público.

Editou recentemente um livro, “Perceber a crise”.

 

Começamos pela alopécia? As pessoas não sabem se rapou a cabeça ou se está com um cancro. Que impacto tem esta doença na sua vida?

Ao princípio, dizia às pessoas: “Não é nenhuma doença grave nem é a crise da meia-idade!”. Aconteceu de repente, no espaço de um mês e meio.

 

Que é que aconteceu?

Não tinha sinais de calvície. O que me surpreendeu. O meu pai ficou calvo cedo. Comecei a dar-me conta, sobretudo no banho, de que caía muito cabelo. Se fizesse assim, [gesto de puxar o cabelo], vinham tufos de cabelo. Costuma estar associado a choques de stress. Bom, o primeiro stress é a minha vida…

 

Li que as motivações da alopecia são psicossomáticas.

Está ligado a um choque emocional. Em boa verdade, ninguém sabe muito bem como é que isto funciona. É um problema do sistema imunitário. É provável que haja uma componente genética, porque o meu pai já está assim – embora com ele tenha sucedido mais tarde. O lidar com isto: foi traumático. Primeiro, há o aspecto da degradação.

 

Degradação da imagem que tem de si mesmo.

Sentir o cabelo a cair àquela velocidade…, e não tendo um conhecimento científico para lidar com isso. É um sinal de perda. Há uma imagem que nos habituámos a ver durante 50 anos e que, de um momento para o outro, muda. No meio disto tudo aconteceu uma coisa engraçada: quando o cabelo começou a ficar ralo decidi cortá-lo rente. Fui a um cabeleireiro e fui atendido por uma miúda cabo-verdiana, muito simpática e bonita. Ela ia cortando… “Corte todo. Eu quero mesmo todo rapado”. Quando fiquei com o crânio vazio, ela pôs-me as mãos na cabeça e disse: “Mas sabe, tem um crânio tão bonitinho, fica-lhe tão bem!”. Conseguiu fazer-me despontar um sorriso.

 

Foi doloroso?

Não exactamente. Sou muito estóico. O que tem que ser, tem que ser. Mas ia triste.

 

Isso aconteceu há um ano e meio.

Fui ao médico, fiz os testes todos, estava tudo normal. O resultado foi alopecia. À volta, os amigos e a família foram todos apoiantes, ajudaram-me a enfrentar a situação. Normalizei. Nunca me derrotou.

 

Ainda olha para o espelho, de manhã, e pensa nisso, ou já está habituado à sua nova imagem?

Já estou habituado. Quando vejo fotografias é que reparo na diferença – “afinal eu tinha cabelo”.

 

Que grandes escolhas foram as suas, quando outros homens têm crises de meia-idade?

Que objectivos tenho? Continuar a ter possibilidades de realização profissional. É importante ter uma actividade gratificante. Sempre fui uma pessoa ambiciosa. Mas hoje tenho a ambição mais comedida. Há coisas que saem do horizonte. Cheguei a um ponto em que o número de oportunidades começa a ser mais reduzido.

 

Mais reduzido, mas mais interessante.

Quando tem 20 ou 30 anos, é um júnior num lugar qualquer e tem o universo todo para percorrer.

 

Mas aos 20 anos não se pode ser Ministro das Finanças. Aos 54, pode.

Já tive essa ambição. E já tive a oportunidade de ter sido.

 

Porque é que recusou?

Nestas coisas, é preciso ser-se realista. Há duas formas dessa ambição: uma é ter o título e outra é fazer obra. O título: ter isso no currículo ter-me-ia satisfeito. Na altura em que se concretizou, [a possibilidade] de ter apenas o título já não era o objectivo. Era necessário concretizar obra. No fundo, fazer a diferença. Achei que não tinha condições para isso. Tenho a ideia, e cada vez mais, de que a política não é para técnicos. E sobretudo, alguns cargos importantes têm de ser desempenhados por pessoas que têm poder político. O lugar de Ministro das Finanças é um daqueles em que é importante ter peso político. Um técnico é facilmente descartável se não tiver peso político, nem conseguirá que as suas ideias vão avante.

 

Foi um fito da sua vida: fazer a diferença?

Não. Há uma norma ética que é muito esquecida: fazer bem aquilo que se faz. Se quiser, fazer bem o Bem. E fazer bem, não é fazer mais ou menos; é ser excelente. Se este princípio fosse seguido por toda a gente, o mundo seria muito melhor. Portanto, não é fazer a diferença no sentido de deixar uma marca na História. É no sentido de ter utilidade. Não tenho nada contra quem faz outras opções. Achei que ocupar o lugar por ocupar, não me seria útil nem a mim nem a ninguém.

 

No lançamento do seu livro: se não fosse quem é, se não ocupasse o lugar que ocupa na SIBS e na SEDES, apareceriam as mesmas pessoas, ou nem todas?

Todos sabemos que os relacionamentos são importantes. A capacidade que as pessoas têm de se fazer ouvir depende da posição que ocupam no estrado. Admito que a voz possa conseguir mais audiência pelo facto de ter ganho notoriedade. Fico satisfeito. É muito importante em Portugal o fortalecimento da actividade cívica. A vida política depende essencialmente dos partidos. Os partidos são fundamentais para o exercício do poder e para a mobilização de projectos. Mas é fundamental que haja uma vida cívica envolvente, e que, ela própria, “condicione” a actividade dos partidos. Um dos problemas em Portugal é a pobreza da sociedade civil.

 

Donde é que lhe isto lhe vem? Isto de ser tão argumentativo, de se afirmar pela inteligência, pelo que sabe.

A minha família é humilde, não tem estudos. Fui educado, quer pela família próxima quer pelo meio, a procurar a excelência. Exactamente por ter uma origem humilde, percebi, a minha família percebeu/intuiu muito cedo, que só através da educação e do mérito conseguiria sair daquela situação e progredir socialmente. Habituei-me a tentar ser o melhor aluno.

 

Era preciso ser o melhor.

Sim. Naquilo onde entrava, tentava ser o melhor. Se conseguia ou não, dependia de mim e dos meus oponentes. Por acaso fui sempre o melhor na concorrência directa.

 

Precisava dessa concorrência para se estimular, ou era uma coisa de si para si?

Ah, a concorrência favorece. Vemos isso nos desportistas. Se não tiverem concorrência, estiolam as suas capacidades.

 

Estiolar é uma palavra inesperada num economista. É poética.

[riso] É uma coisa que acontece: as pessoas estiolam as suas capacidades. Vem-me daí essa procura.

 

A figura fundamental, nessa procura, era o seu pai?

Seria o meu pai porque na organização familiar tradicional, o pai era o chefe da família. Mas as mães tiveram sempre uma influência muito grande. As supporting role eram muitas vezes mais actuantes, penetrantes e eficazes do que quem tinha o papel principal.   

 

Como foi a sua vida? Vamos à net e temos páginas com o seu currículo. Nem uma linha sobre quem é.

Nasci em Estremoz. Tenho uma irmã. A minha vida não tem interesse nenhum. Ser de uma família de poucos recursos condicionou uma série de opções, que outros tiveram. Não fiz a viagem pela Europa no inter-rail, essas coisas. Comecei a trabalhar aos 17 anos. Quando vim para Lisboa, vim como empregado bancário, de balcão. Fiz o sexto e sétimo ano num ano, a estudar à noite, [e a trabalhar durante o dia]. Aliás: fiz o curso comercial e não o liceu precisamente para assegurar empregabilidade. Enquanto alguns colegas viveram os 18 anos de forma mais activa, eu fiz um investimento no futuro. Fiz o curso de Economia todo à noite. Desde os 18 anos que tomo conta de mim, que sou independente.

 

A sua ambição vem daí: do desejo de ter uma vida melhor?

Sim. E por outro lado, de realizar as potencialidades. Sempre senti como natural subir.

 

Quem primeiro acreditou em si e chamou a atenção para as suas potencialidades?

Não sei. Até aos 30 anos, e até ter um percurso consolidado, entrei em tudo por concurso. O emprego na banca – Montepio Geral – foi por concurso. Quando entrei para o Banco de Portugal, foi por concurso. Até quando fui assistente em Económicas, entrei por concurso. Se não tivesse sido esse sistema de concursos nacionais – que tratam toda a gente em igualdade de circunstâncias – não sei se teria tido as oportunidades que tive. Se eu tivesse estudado no sistema de ensino actual, não sei se teria conseguido o que consegui. O sistema de ensino que tem sido construído é menos facultador de progressão social do que o sistema em que estudei. Hoje, reproduzem-se mais as condições sociais de partida porque é-se mais contemporizador com o fracasso.

 

Qual foi o seu percurso?

Vivi em Évora, em Tomar, em Moçambique, em Lisboa. Vivi quatro anos em Moçambique na adolescência, com os meus pais; deixou marcas. Era um mundo diferente, alarga os horizontes. Estive em Quelimane, uma cidadezinha pequena, simpática, capital da Zambézia. A vida lá era mais aberta e mais pura. Ao regressar, notei que havia, no relacionamento entre sexos, mais reserva e segunda intencionalidade. Havia diferenciação, claro; mais social do que rácica. Um dos meus melhores amigos da altura foi vice-presidente da Assembleia da República em Moçambique; era indiano e muçulmano.

 

Estava a lembrar-me da menina que lhe rapou a cabeça, de cor. Comoveu-se quando falou dela, ao relatar esse episódio. Além da ternura, era a nostalgia de um tempo, que passou maioritariamente entre negros, em que foi feliz?

Não sei se há essa memória. A ternura, é sempre comovente. 

 

Licenciou-se em 78. O seu mestrado é de 2000/2001. Sendo um aluno de excepção, não seguiu a carreira académica porque precisava de ganhar dinheiro?

Precisava de ganhar dinheiro. Já trabalhava quando fui estudar; era natural continuar essa carreira, dar os passos seguintes. Para seguir uma carreira académica, precisaria de ter tido uma liberdade que não tive.

 

Respondeu a anúncios. Verdadeiramente é no Banco de Portugal que tudo começa a mudar na sua vida.

O BdeP era o grande think tank do país na área da Economia. Entrar no gabinete de estudos do BdeP era pertencer a uma elite.

 

O que é que sentiu quando foi admitido?

Fiquei satisfeito. E achei que merecia. Que merecia, por direito próprio. Felizmente que os processos de selecção eram cegos, isentos. Um anónimo conseguiu ter acesso àquele lugar.

 

Mérito e reconhecimento são palavras essenciais do seu vocabulário.

Ah, sim, sim.

 

Cruzou-se com Cavaco Silva no BdeP? Que relação tiveram?

Quando cheguei, era Ministro das Finanças – tinha o lugar suspenso [no BdeP]. Mas era uma referência, muito apreciado. Regressou e foi director do gabinete de estudos, durante todo o tempo em que lá estive. Era uma pessoa muito austera, reservada. O contacto com ele não era frequente; havia alguma distância. Desse tempo, a pessoa que mais em marcou e com quem mais aprendi foi a Teodora Cardoso. Tudo gente excelente. Miguel Beleza, com quem também aprendi muito. Manuela Ferreira Leite era coordenadora de uma das áreas.

 

Porque é que a relação com Teodora Cardoso foi fundante?

Talvez tenha visto em mim alguém que tinha disponibilidade para trabalhar em coisas com menos glamour. Trabalhar os números, fazer contas. Terá encontrado alguma afinidade.

 

Teodora Cardoso é também uma leitora de Jane Austen… Falavam de romances?

Não. Vamos lá ver: descrevi-lhe o meu percurso. Não tive grande tempo para fazer as leituras que os outros fizeram. Não se pode andar a trabalhar e a fazer o sétimo ano à noite e a ler os romances que é suposto ler aos 17 anos. Essas leituras fi-las, todas ou algumas, mais tarde. Mas a relação era só na Economia. Mais tarde, aprendi outras coisas com ela, fui despertado para outras coisas por ela.

 

Em que circunstâncias foi para Macau em 1985?

Tinha acabado de fazer um curso no Fundo Monetário Internacional. Estive quatro meses em Washington.

 

Como é que aprendeu inglês?

Tive o inglês escolar, que não foi suficiente; no Banco de Portugal tive aulas de inglês; e segui uma recomendação da Teodora: a melhor maneira de aprender uma língua é ler livros policiais. Li toda a Agatha Christie em inglês. E depois, foi pela prática. Regressei e teria gostado de voltar ao Fundo Monetário, e tive essa oportunidade. Mas o Fundo não admitiria as pessoas se as instituições de origem, no seguimento de um curso, não deixassem. Pedi no Banco de Portugal – se não estou em erro ao Professor Cavaco – e não me deixaram. Compreendo: se calhar, fazia falta. Ainda estava em Washington quando me telefonaram de Macau a convidar para ir para lá. Cá, coincidiu com a crise. Na minha casa era só eu que trabalhava, a situação financeira era muito apertada.

 

Foi ganhar dinheiro.

Sim. E era uma oportunidade de abrir horizontes. Já tinha sido exposto a África, fiquei a conhecer também a Ásia. Foi uma experiência útil, que valorizo muito. Habituei-me a conviver com um mercado completamente liberalizado – Hong Kong – e a ver como é que as coisas funcionavam na prática. Quando regressei, fui para o departamento de estrangeiro [do BdeP], como director adjunto; participei no processo de liberalização do mercado cambial. Com um à vontade que não teria se tivesse estado apenas cá. 

 

Quais foram as relações essenciais que teve em Macau, e que hoje perduram?

Macau, do ponto de vista político, era importante e perigosa. Havia muita gente que aqui ocupava posições menores e que ia para Macau e ficava deslumbrada. De repente, passar a ter carro com motorista…

 

Passou a ter essas coisas lá?

Sim. Havia muita gente deslumbrada. E havia interesses deliberados, agendas de interesses. Eu, basicamente, fiquei confinado à minha actividade profissional. Não tinha ligações. E tinha a noção clara que, quando voltasse, voltaria a ser a mesma pessoa que de cá saiu.

 

Ia?

Era o ponto de partida. Se fosse ou não, dependeria do mérito.

 

Não é coerente com a sua ambição. Não quer voltar para o ponto de partida.

Está bem. Voltando para cá, não ia ter, no imediato, carro com motorista. Vivia com mais conhecimentos e esperava uma colocação [compatível]. Mas tinha que ser pelo mérito. Protegi-me de alguma forma.

 

Foi por isso que não se deslumbrou? Porque não se permitiu deslumbrar.

Sim. Quando voltasse para cá, voltava a andar de comboio. O primeiro carro que tive foi em segunda mão e tive-o sete anos; vendi-o porque fui para Macau. Foi em 79, salvo erro. Vivia na linha de Sintra e usava o carro uma vez por semana.

 

Nunca teve um acesso estroina? De ter um Porsche, um carro assim.

[risos] Não. Nunca tive esse fascínio pelos carros. Talvez porque fui educado com o sentido da escassez. Ter um Porsche por quê?

 

Porque é um brinquedo.

Em Macau surpreendia-me o fascínio de ter carros potentes. Para quê ter carros tão bons se raramente se podia meter a quarta?

 

Ainda nesses anos, não sonhou mudar-se para os Estados Unidos e fazer a sua vida lá? Toda a sua vida é em função do mérito. E não há sociedade mais meritocrática do que a americana.

Sim. Voltei a ter essa oportunidade. Mas já tinha a vida arrumada de outra maneira. Também achava que não era suficientemente novo para começar uma carreira como júnior. Poderá perguntar-me porque não fiz um mestrado na área da Economia. Foi por uma razão errada e presunçosa. Eu achava que o mestrado era para ser feito por pessoas de 20 e tal anos, e não de 30 e tal. E que eu já era bom demais para ir fazer um mestrado. Já valia mais do que um aluno de mestrado.

 

O tema do mestrado, que fez na Universidade Católica, é Filosofia da Acção. Estava a tentar demonstrar que era inteligente e sabedor? Era preciso deslocar da Economia para a Filosofia.

Porquê a Filosofia? Porque a Economia não dava resposta a tudo. Precisava de encontrar respostas noutro campo. Filosofia da Acção era o que havia. E não tinha tempo para mergulhar na filosofia pura e estudar ontologia… Requeria outro tipo de imersão. Pelas leituras que me induziu e pelos conceitos adicionais que me deu, melhorou a minha compreensão do mundo. Hoje vejo a Economia de maneira diferente; como aquilo que ela originalmente foi: uma extensão da Política e da Ética.  

 

Mais do que presunçoso, parece um homem orgulhoso.

Não me considero presunçoso, ainda que possa ter actos presunçosos.

 

Orgulhoso: vê-se assim?

É muito importante para cada um de nós ter consciência da nossa dignidade. Implica ter orgulho naquilo que somos. Não vejo isso no sentido vão da vaidade, da vanitas. Vejo isso no sentido de ter respeito por mim próprio, e ter satisfação por ser quem sou. Tenho a preocupação de nunca deixar cristalizar nada, nem um entendimento sobre mim. Habituei-me a disputar-me e a disputar algumas verdades e conceitos que tenho por adquiridos. Pode parecer relativismo; não é. Tenho uma compreensão da vida que é esta: vivemos com um modelo mental de certezas provisoriamente definitivas. O que vamos aprendendo, vai-nos fazer rever essas certezas. É assim que vamos funcionando.

 

Um homem precisa de ter confiança em si mesmo para se questionar tão repetidamente.

Se não o fizer, corre o risco de quedas grandes. 

 

Fracturas, quedas, fracassos: alguma coisa significativa?

De que me consiga recordar, não. E se não consigo recordar-me, não foi importante. Terei tido seguramente coisas que ficaram pelo caminho. Há coisas que recusei e que, se tivesse aceitado, a vida teria sido outra. Mas naquelas circunstâncias foi a decisão que achei que devia tomar.

 

Foi para o Tesouro em 1994. Pela mão de quem?

Dr. Valter Marques, que era o Secretário de Estado do Tesouro. História interessante. Ele convidou-me. Melhor: havia uma certa formalidade. Primeiro sondou-me, para depois fazer o convite. Disse que não. “Não está interessado? Este é um lugar para o qual basta levantar um dedo e tenho não sei quantos [interessados] e você diz-me que não está interessado?”. “Gosto do que estou a fazer. Aquilo tem muito espaço para crescer. Estou a renovar o departamento. Não tenho atractivo para ir para essa área”. Ele foi insistindo. Reencontrámo-nos em Madrid, numa reunião do FMI. “Falei com o Ministro Catroga, que disse: “Ponha-lhe a bandeira na mão e mande-o avançar!” Foi assim que acabei por ir. Esta parte soará pretensiosa, mas foi com espírito de missão. Acabei por gostar.

 

Não era atraente porque era menos do que ambicionava? Se pensarmos numa razão mais funda, do domínio da vaidade…

Se o convite tivesse sido para Secretário de Estado do Tesouro, como depois aconteceu, teria aceite de caras. Hoje acharia que não devia ter aceite.

 

No fundo é isso: era menos do que aquilo que achava que podia ambicionar.

Percebo o seu ponto e é coerente. Mas o juízo não foi esse. Uma [coisa] fazia parte da minha linha de ambição – ser Secretário de Estado do Tesouro e Ministro das Finanças. Mas isso não fazia, era lateral. Enquanto lateral, eu gostava mais do que estava a fazer. Tinha uma componente de administração pública, burocrática, que não desvalorizo. As minhas aptidões seriam mais para outra coisa.

 

Quando é que começou a ambicionar ser Ministro das Finanças?

Isso faz parte do percurso.

 

Não se sai da universidade a pensar nisso…

Se calhar, sim. Faz parte da tal ética de mérito e crescimento ir até ao topo da carreira. Hoje já não vejo isso assim. Na altura via isso como uma progressão de um economista público-social. Mas gostei imenso da experiência do Tesouro. Tive a oportunidade de renovar a gestão da dívida pública. Foi um projecto que me deu imensa satisfação. Tenho orgulho em ter criado uma equipa que se tornou rapidamente uma referência internacional. É provavelmente, das realizações profissionais, a que mais orgulho me dá. Fui substituído por Manuel Pinho. A meio do processo tive um convite para presidir a uma das maiores empresas portuguesas – não lhe vou dizer qual foi, mas era de órbita pública – e recusei.

 

Porquê?

Duas razões. Achava que não tinha competência para esse lugar. Segundo, estava envolvido num projecto, tinha mobilizado pessoas que tinham confiado em mim, e onde alguém tinha confiado em mim para concretizar esse projecto. Essa pessoa era o Prof. Sousa Franco. Achava que seria trair os dois lados deixar o projecto a meio para satisfazer uma ambição pessoal. Se tivesse aceite, a minha vida teria sido diferente. É o único convite cuja recusa me faz interrogar se agi da melhor maneira a meu favor.

 

Ouvindo isso, é lícito pensar que talvez o dinheiro não seja a forma de gratificação que mais lhe interessa. Ainda que seja muito importante e as origens humildes. Procura uma gratificação em função daquilo que sabe ou pode fazer. É assim?

Sim e não. Seria fantasioso dizer que o dinheiro me é indiferente. Posso não ter a ambição de enriquecer, mas tenho a ambição de ter conforto, e sobretudo de assegurar o futuro. A determinada altura da minha vida reparei que tinha dedicado muito tempo à causa pública e que não tinha assegurado coisas fundamentais da minha vida e da família. Mas o factor material nunca foi o determinante nas escolhas.

 

Podia ter procurado o privado, pôr-se a jeito. Mas a linha de ascensão foi a dos concursos públicos. É sintomático.

De facto, essa parte da satisfação pesou sobre tudo. Só quando vim para a SIBS a componente material teve um peso importante na decisão.

 

Satisfação própria, reconhecimento público…

Sim. Partilho da visão do Hegel: o que move o homem é o reconhecimento. A procura do conhecimento, que é a procura da glória, é a procura da imortalidade. O homem procura imortalidade através da glória. Não conseguindo imortalidade física, procura assegurar a imortalidade na memória dos outros homens.

 

Fale-me mais da relação com o dinheiro.

Vir para a SIBS foi um shift importante na carreira.

 

E tudo isto, muito jovem. Tinha, quê, 45 anos?

Como o tempo voa! Quando vim para a SIBS, podia ter ido para um banco. Se tivesse ido para um banco, tinha-me privatizado por completo. Houve nessa escolha, ainda, a trajectória do serviço público. 

 

A relação com Jardim Gonçalves, foi importante na sua vida?

Nunca tive uma relação muito próxima com o engenheiro Jardim Gonçalves. É uma pessoa que respeito muito e admiro. É um exemplo importante. Conhecia-o circunstancialmente. Sempre me tratou muito bem. Enquanto presidente do banco e eu enquanto Director Geral do Tesouro ou presidente do Instituto [de Gestão de Crédito Público], tivemos algumas interacções. Um dia, surpreendentemente, pediu para falar comigo. Simpaticamente foi ao meu gabinete, quando o normal seria pedir-me para ir ter com ele. E fez-me o convite para vir para a SIBS. (O conjunto de bancos tinha decidido encontrar uma presidência executiva e independente para a SIBS. O BCP, como principal accionista, ficou incumbido de fazer esse convite.)

 

Aceitou em que condições?

Uma das condições que pus foi ter o apoio dos bancos todos. Todos subscreveram. Vim.

 

Como leu esse gesto de Jardim Gonçalves, de ir até ao seu território?

É uma questão de feitio dele.

 

É desde logo um sinal de reconhecimento.

O simples facto de me convidar envolve um juízo de reconhecimento. Tanto quanto sei, ele não atira moeda ao ar… Apesar da imagem e da importância que teve, tinha gestos de grande humildade. Tinha uma deferência muito grande no tratamento das pessoas, independentemente da posição das pessoas. Nunca o vi ter uma posição mais arrogante – o que seria compreensível. Tinha o estatuto que tinha, era o presidente do maior banco privado português, banco que cresceu pelo trabalho dele.

 

Era quem mandava.

Sim. Mas é uma questão de feitio. Sempre tentou mostrar que as pessoas eram importantes.

 

Ele cobiçou-o para a Opus Dei?

Não. Aliás, nem houve contacto pessoal mais próximo do que isto que lhe descrevi. Fui uma ou duas vezes jantar a casa dele.

 

A Opus Dei consagra tudo aquilo que é hereditário. O que vem no pacote. Ora isso contraria o seu percurso, e quem é.

Nunca tivemos nenhuma conversa que tocasse sequer a religião. Ele terá uma ideia de quais são os meus valores. A matriz básica será coincidente.

 

Há outro católico no seu percurso, Sousa Franco. É um homem em quem os católicos confiam.

Não atribuo nenhuma expressão especial a isso. Primeiro, este país é católico. A cultura dominante tem uma raiz católica. É natural que muitas pessoas que ocupavam lugares de destaque fossem católicas. O que não quer dizer que usassem a religião na sua actividade. 

 

Fale-me da relação com a sua filha Ana a quem dedica o livro.

[sorriso] O livro é-lhe dedicado por razões afectivas, como é óbvio, e também porque, como diz a dedicatória, o futuro me preocupa. A geração a que ela pertence vai herdar um mundo difícil. Em melhores condições, mas com menos perspectivas do que aquele que a minha geração herdou. Ela tem 28 anos. Temos uma relação normal. Nem tenho qualificação para ela… É filha única, é central na minha vida. Esta hesitação toda é para lhe dizer que o peixe não vê a água. Não vê, vive dentro dela. Aqui, tudo me é natural. Procurei transmitir-lhe um quadro de valores.

 

Facilitou-lhe a vida?

Teve uma vida mais fácil do que eu. Terá criado uma percepção de que a vida é mais fácil do que aquela que eu criei. Mas isso resulta das circunstâncias. Procurei instigar o princípio da responsabilidade e o de que as escolhas são sempre dela. Posso ajudar a formular a escolha, mas procurei nunca a condicionar. E tentei habituá-la a lidar com as dificuldades. Uma história interessante: há tempos foi com umas amigas ao Brasil e viveram uma situação complicada. Estavam numa ilhota, a maré começou a subir e ficaram isoladas. Ela dizia-me (confesso isto com orgulho…): “Apliquei o princípio que sempre me ensinaste. Em qualquer situação difícil há três princípios fundamentais a seguir. Primeiro é manter a calma, o segundo é manter a calma e o terceiro é manter a calma”. É rewarding perceber isso. 

 

Conseguiu sempre manter a calma?

Acho que sim. Quando ela fez 16, ou 18, ou 20 anos ofereci-lhe um poema. “A teia ao lado”. A metáfora era a de ela estar a construir uma teia ao lado; sendo ao lado, percebe-se que muitos dos fios da teia estão interligados.

 

Belo presente.

Acho que ela ficou sensibilizada. É o meu entendimento. Os filhos têm uma vida separada, mas vemos na teia como os fios estão interligados.

 

Começou por dizer que teve uma vida comum. Às vezes lamenta não ter tido uma vida de romance?

Não necessariamente. Não tenho angústias com a minha vida. Foi o que foi. Utilizo o passado não como demissão mas como facto. Não tenho “regrettes” como a Edith Piaf ou como o Frank Sinatra – “Regrets, I had a few”. Comigo é mais Edith Piaf do que Frank Sinatra. Não sei se tenho algum “regrette”. Seguramente terei tido muitas decepções. Mas estão incorporadas. As coisas só são o que foram. Não adiante discutir o que poderiam ter sido. Admiro pessoas que tiveram vidas mais exóticas. Não sei se são mais felizes ou menos felizes. Percebo que será satisfatório ter essa marca, essa diferença. E depois, o que fica na História, não são os comportamentos regrados.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008